… O ESSENCIAL É INVISÍVEL AOS OLHOS — The Spirit of Beehive (1973)
— ANA BELCHIOR MELÍCIAS & ELSA COUCHINHO —
Na impossibilidade de realizar um Frankenstein moderno, Víctor Erice preserva do original o encontro Frankenstein-criança, do qual recorta uma fotografia, que para ele condensa tudo (2). E essa imagem com valor onírico vai tecendo insaturadamente os caminhos narrativos. A cortina abre-se com a chegada do cinema itinerante à aldeia, transportando-nos para a magia da sétima arte.
Realizado no final da ditatura espanhola, o filme transcorre no tempo pós Guerra Civil, época da infância dos argumentistas, buscando formas de ludibriar a censura política e psíquica face à brutalidade do trauma coletivo. Somos expostos aos espaços deixados vazios pelos mortos e pelos milhares de desaparecidos, às paisagens repletas de solidão, aos segredos e silêncios dos adultos.
Duas meninas – Isabel e Ana – numa família. E o filme do monstro… E o espírito do monstro… no “espaço onírico que o diálogo com a obra de James Whale permite, e que as experiências da infância expandem, (…) na forma como Erice constrói o lado alegórico do seu filme em torno daquilo que Maurice Maeterlinck (La Vie des Abeilles, 1901) chamou o “espírito da colmeia: princípio enigmático, paradoxal, de conteúdo indefinível que norteia a vida e organização das colmeias e nelas, das abelhas.” (1) Caberia a metáfora das obreiras Espanha-colmeia e sua rainha Franco-Frankenstein? O antagonismo entre a união das abelhas e a divisão dos homens, na Guerra Civil?
Os favos da colmeia no padrão das janelas, emitem a luz dourada-uterina, que sintetiza a palavra-chave do filme: atmosfera-ambiente, instalando o espaço potencial intermediário de Winnicott e as questões da terceiridade na psicanálise contemporânea. O filme desenrola-se pausadamente, em capacidade negativa. No lugar do roteiro-palavras, a narrativa compõe-se em padrões de som e fotografia, atmosfera transicional entre a experiência subjetiva e a realidade externa. “Nunca tentei alcançar a beleza da imagem. Eu tentei alcançar a beleza da verdade” (2), diz Erice, como se com Keats/Bion dialogasse.
Frankenstein é o gatilho, para adentrarmos o mundo interno das irmãs. Amedrontadas pela ansiedade e excitadas pela curiosidade, buscam compreender os mistérios da vida e da morte, espíritos e fantasmas, traumas e rotinas, com o terror da culpa nos dois tempos, da infância e da vida adulta.
O realizador pede que nas filmagens nos espaços interiores toda a equipa comunique em murmúrios ou sussuros, atmosfera silenciosa intuitivamente apreendida e reproduzida pelas crianças. São os segredos que os adultos e as crianças guardam, organizando uma separação entre o mundo infantil e o mundo adulto. No espaço criado por essa separação surgem as incógnitas e os tabus, susceptíveis à projecção dos fantasmas-fantasias.
Erice tem com as pequenas atrizes uma especial sensibilidade, em particular com Ana, a quem passa horas a narrar histórias, muitas vezes permitindo-lhe estar no seu colo, ilustrando como ao adulto cabe preservar o lugar da infância e o espaço para o imaginário.
Encontramos as questões essenciais a organizar na infância: o traumático (desamparo), a excitação (sexualidade), a curiosidade (epistemofilia) e a permanente articulação fantasia e realidade, de onde nasce o pensamento. O monstro – o estranho familiar – introduz esteticamente: a inocência e o seu fim, a ilusão e a realidade, o isolamento e a solidão, o abandono e a alienação, o amor dos pais e a origem, o medo da morte, o sadismo, a rivalidade e o fim da infância (latência).
Que espírito tão amedrontador é afinal procurado? Talvez a necessidade de compreender e organizar subjetiva e intersubjetivamente o terrorífico-estranho-familiar: o casal desligado amorosamente, pais “parcamente” bons na relação com as filhas, os jogos perigosos que estas brincam. No final, a fuga-agida-onírica de Ana, será a tentativa de reescrever a história assustadora e salvar-se criando uma narrativa diferente?
Na aula de anatomia, ilustrando quem sabe a necessidade da construção do objeto total, as crianças devem colocar os diferentes órgãos (suprimidos os genitais pelo recalque…) elucidando a sua função. Cabe a Ana, cujo olhar impressiona pela capacidade reflexiva que espelha, colocar os olhos (objeto parcial no par voyeurismo-exibicionismo). A única pergunta que os alunos não souberam responder foi: para que serve o coração?
“Só se vê bem com o coração, o essencial é invisível aos olhos…” (3). Será a possibilidade de ver/sentir da criança, que permitirá criar a sua alteridade, reescrevendo a sua história diferente do filme assustador (a própria infância?) e dos pais na sua autonomização progressiva? No final, Ana abre a janela, fecha os olhos e diz: “sou Ana, sou Ana”.
“Esse fim é também o fechamento de um ciclo de infância (…) Das suas memórias nos anos 40 (…) ficam-nos as aulas de anatomia, as tabuadas cantadas em voz alta, mas também o saltar das fogueiras, o apanhar cogumelos pelo bosque ou o pintar os lábios com o sangue de uma ferida que nos fez o gato.” (1)
AUTORAS
Ana Belchior Melícias & Elsa Couchinho
Psicanalistas. Membros Associados da Sociedade Portuguesa de Psicanálise (SPP) e da International Psychoanalytic Association (IPA). Psicanalistas da Criança e do Adolescente.
E-mail — ana.melicias@gmail.com \ E-mail — elcouchinho@gmail.com
REFERÊNCIAS
1. Carlos Natálio, Nov. 20, 2012. https://www.apaladewalsh.com/2012/11/el-espiritu-de-la-colmena-1973-de-victor-erice/
2. Eric in Geoff Andrew’s BFI Interview, Sept. 2003
3. Saint-Exupéry, A. (1946). O Principezinho. Círculo de Leitores, Lisboa: 1987.
4. Filme discutido no dia 09.11.2020 no Grupo Reflexão Infância & Cinema (2020-21) da Sociedade Portuguesa de Psicanálise, coordenado por Ana Belchior Melícias e Elsa Couchinho.
FICHA TÉCNICA
Título original — El Espíritu de la Colmena
Título inglês — The Spirit of Beehive
Título português — O Espírito da Colmeia
Ano produção — 1973
Duração — 97 min
País — Espanha
Direção — Víctor Erice
Argumento — Víctor Erice e Ángel Fernández-Santos
Fotografia — Luis Cuadrado
Música — Luis de Pablo
Produção — Elías Querejeta P.C.
Elenco — Ana Torrent (Ana) – Isabel Tellería (Isabel) – Fernando Fernán Gómez (Fernando) – José Villasante (monstro) – Teresa Gimpera (Teresa) – Queti de la Cámara (Milagros)
Género — Ficção
Estreia — 1973
SINOPSE
Em 1940, em plena ditadura franquista e na esteira da devastadora Guerra Civil, duas meninas – Ana de 6 anos e sua irmã mais velha, Isabel – assistem Frankenstein numa exibição de cinema itinerante que chega a uma aldeia da meseta central espanhola. Ana fica impressionada e fascinada com o monstro e com o fato da morte tanto da menina como do monstro. Isabel diz-lhe que, pode convocá-lo com a simples frase: “Sou Ana, sou Ana”. Isolados e alheados, os pais encontram-se fechados em seus próprios devaneios. O pai dedica-se a criar, investigar e escrever sobre abelhas e colmeias. De tonalidade mais melancólica, a mãe escreve cartas a um homem que ficará por revelar. Ana investiga ativamente os mistérios da vida e da morte, repleta de dúvidas e perguntas. O filme é considerado visualmente uma obra prima do cinema – espaços, cor, luz, som, silêncio, tempo – e é, sem dúvida, um sensível retrato da vida interior de uma criança.