ULISSES NA DANÇA DO VIR A SER — I’m no longer here (2019)

— REGINA MARIA RAHMI —

Ao assistir a um filme, mergulhamos no escuro, no inusitado, em um universo tantas vezes próximo do onírico. O filme Ya no estoy aquí (2019), escrito e dirigido por Fernando Frias de la Parra, tem uma rica qualidade estética que possibilita uma atmosfera de muitas associações: ritmos, imagens, personagens, paisagens… A ideia de que a arte move a alma, já presente na Poética de Aristóteles (1993), também se faz presente na narrativa do filme dirigido por La Parra.

O cenário inicial é a cidade de Monterrey, no México, imersa em violência e no tráfico de drogas, lugar de gangues e subgangues. No filme, tem-se uma visão panorâmica que percorre a cidade até ao subúrbio. O protagonista da história é Ulises (Juan Daniel Garcia Treviño), um adolescente de 17 anos que vive na periferia em uma comunidade marginalizada – nesse ambiente, pertencer a um grupo e ter um lugar na coletividade é uma questão de sobrevivência.

Uma condição essencial da adolescência é a construção da identidade, a aquisição da capacidade de pensar como sujeito dotado de mente própria e liberta das identificações parentais e grupais. Acompanhamos Ulises nessa trajetória.

O protagonista é líder de um grupo chamado Los Terkos, cuja origem do nome significa obstinado, irredutível, resistente a mudanças. Esse grupo lhe oferece pertencimento, existência e, essencialmente, o reconhecimento da sua própria identidade.

Los Terkos também oferece a Ulises a possibilidade de conhecer a si mesmo e o mundo, bem como novas relações e identificações que estão fora do ambiente familiar.

Nesse grupo, existe uma espécie de ritual de passagem por meio do corte dos cabelos e de roupas coloridas, um estilo extravagante. Os integrantes do grupo falam entre si um dialeto e dançam cumbia, uma dança colombiana marcada pelo ritmo do tambor, de flautas e de melodias indígenas que os conduz a um encontro com suas raízes.

Na roda aos pares, Ulises entra e dança o ritmo marcado com vitalidade e leveza. É inevitável a associação: seria uma tribo? Um indígena? Um guerreiro asteca? Talvez a associação surja pela influência indígena e, anteriormente, pela civilização asteca (mexicas, povo de Aztlan) no século xii, que constituía um dos diversos povos que viviam no norte da cidade de Tenochtitlán, atual cidade do México.

A dança fazia referência a experiências arcaicas, da sua história, que emergiam através do som e do ritmo. Existem inúmeras experiências que estão aquém da linguagem: sensações corporais, odores, sons, que continuamente são sentidos e que por vezes evocam associações e lembranças, mas que não são necessariamente convertidas em forma verbal. Estamos na dimensão do inconsciente.

Certo dia, um fato aterrorizador acontece. Ao presenciar um embate entre gangues e o extermínio de alguns homens, Ulises é jurado de morte e tem que fazer uma emigração forçada; escondido no chão de uma van, entra nos Estados Unidos de forma ilegal.

Ulises perde suas referências; já não lidera mais nada, fica à deriva das circunstâncias, ao contrário do que ocorria quando estava em Monterrey, onde era admirado pela dança e respeitado pela comunidade.

Ulises é também o mesmo nome do herói da Odisseia – uma narrativa épica escrita pelo poeta Homero no século VIII a.C. que relata a longa jornada da viagem de regresso do protagonista a Ítaca, sua terra natal. O personagem de Homero também não partiu por escolha própria: teve que deixar sua terra natal por lealdade a seus irmãos.

As experiências de não pertencimento são dolorosas e determinam o exílio e a busca de novas parcerias.

Freud (3) considerava o desamparo original do ser humano advindo da própria condição humana. Ao nascer, o recém-nascido depende totalmente de um outro para acolher e satisfazer suas necessidades. As vivências do desamparo atual favorecem a aproximação com o desamparo original.

Ao nascer, o ser humano precisa ser amparado primariamente por alguém disponível, continente, amoroso. Isso facilitará ao bebê se tornar um indivíduo com possibilidade de desenvolver uma mente criativa.

Ulises resiste. Leva consigo colado ao corpo um gravador, que lhe foi dado por uma amiga do grupo. Em muitos momentos frente ao desamparo, ouve a música que o animava e lhe dava vida – cumbia. Um som, um fio que o levava de volta para casa, para sua essência. O seu desamparo encontra amparo no som, no pulsar, na dança que reverbera, na tolerância de sentir o prazer de recriar (o prazer criativo). A sua jornada ganha cores próprias. Ulises não abandona sua dignidade tampouco sua origem.

Nesse momento, acredito ser inevitável a associação com os astecas, que resistiram durante dois anos na luta contra os espanhóis liderados por Hernán Cortés. Ulises resiste com suas armas: a língua, a dança e seu estilo próprio. Não se esquece de quem ele é – ao contrário do que acontece na Odisseia, em que os lotófagos, seres amáveis que se alimentavam dos doces frutos de lótus que causavam esquecimento, deixavam de saber quem eram e de onde vieram.

No decorrer da jornada, na sua odisseia, viagem marcada por aventuras e imprevistos singulares, Ulises encontra dois abrigos temporários.

No início, o encontro com a personagem Lin (Xueming Angelina Chen) parece ser um oásis que acolhe o viajante, mas não é. Ela se encanta, tem um olhar de admiração e de interesse pela clareza que Ulises tem sobre quem ele é, entretanto ela se revela perigosa, pois o usa para ter importância e popularidade no grupo da escola.

Em outro momento, o protagonista vagando procura pela colombiana Gladys (Adríana Arbelaez). Ulises buscava uma referência, um objeto primário, que o acolhesse e tecesse um sentido sobre tudo aquilo que vivia. Entra em contato com a dor e a sua precariedade.

Frente à dor e ao desamparo, bebe, cheira cola, talvez numa tentativa de anestesiar a dor que sentia… O guerreiro desmorona é encontrado pela polícia – e é deportado.

E agora, na cena final, nosso herói retorna a Monterrey, sua cidade de origem. Ele se dá conta de que havia mudado, trazia também o que aprendera com as experiências vividas em sua odisseia.

Assim como o grego Ulisses que, na volta da guerra de Troia, ao regressar das aventuras e desventuras com feiticeiras sedutoras, canibais gigantes, monstros marinhos, videntes, mágicos, fantasmas, retorna a Ítaca, sua cidade natal, após vinte anos. Na sua chegada, se dá conta de que Ítaca já não era mais a mesma, pois na verdade ele tinha mudado; agora, seu filho Telêmaco estava no limiar da vida adulta, enquanto a paciente esposa Penélope começava a perder as esperanças e considerava a possibilidade de casar-se outra vez.

Tem todo o tempo Ítaca na mente.
Estás predestinado a ali chegar.
Mas não apresses a viagem nunca.
Melhor muitos anos levares de jornada
e fundeares na ilha, velho enfim,
rico de quanto ganhaste no caminho,
sem esperar riquezas que Ítaca te desse.
Uma bela viagem deu-te Ítaca.
Sem ela não te punhas a caminho.
Mais do que isso, não lhe cumpre dar-te.

Ítaca não te iludiu, se a achas pobre.
Tu te tornaste sábio, um homem de experiência,
e agora sabes o que significam Ítacas.
— Kaváfis (4) (p. 619)

AUTORA
Regina Maria Rahmi
Psicanalista Efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP) e da International Psychoanalytical Association (IPA).
E-mail — reginarahmi@uol.com.br

REFERÊNCIAS
1. Artigo apresentado no debate junto ao diretor Fernando Frias de la Parra e o jornalista Luiz Rivoiro no Ciclo de Cinema e Psicanálise, realizado no Museu da Imagem e do Som (MIS) em parceria com a Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP) e o Jornal Folha de S. Paulo, em 9 de Fevereiro de 2021.
2. Aristóteles (1993). Poética. Ars Poetica.
3.Freud, S. (2014). Inibição, sintoma e angústia. In S. Freud, Obras completas (P. C. Souza, Trad., Vol. 17, pp. 13-123). Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1926).
4. Kaváfis, K. (1911). Ítaca. In Homero, Odisseia (Paulo Paes Trad.). São Paulo: Cosac Naify. 2014.

TRAILER

FICHA TÉCNICA
Título original — Ya no estoy aqui
Título inglês — I’m no longer here
Título português — Não estou mais aqui
Ano — 2019
Duração —112 m
País — México
Direção — Fernando Frias de la Parra
Roteiro — Fernando Frias de la Parra
Produção — Rob Allyn, Fernando Frias, Gerardo Gatica, Guerry Kim, Alejandro Mares, Alberto Muffelann, Regina Valdés
Fotografia — Damián Garcia
Música — Javier Umpierrez
Editor — Ybrián Asuad
Figurino — Malena de la Riva, Gabriela Fenandez
Direção de Arte — Luke Carr, Monica Mayorga
Elenco — Juan Daniel Garcia Treviño, Coral Puente, Angelina Chen, Jonathan Espinoza, Leo Zapata, Leonardo Garza, Yanir Aday, Fanny Tovar, Tani Alvarado, Yocelin Coronado
Género — Adolescência — Emigração

SINOPSE
O filme narra a trajetória do adolescente Ulises, líder de um grupo e também apaixonado pela dança cumbia. Para salvar a própria vida após um desentendimento com uma gangue da cidade de Monterrey, no México, é obrigado a imigrar para os Estados Unidos e viver no exílio. O diretor Fernando Frias de la Parra considerou a Odisseia de Homero, com as aventuras e desventuras de desbravamento do desconhecido, na longa trajetória de retorno à terra natal e ao lar.