DO EROTISMO AO PESADELO EM BRANCO E PRETO — Two Distant Strangers (2021)

— MIGUEL SAYAD —

Pernas sensuais, estão sobre ele. Há o gozo erótico na cama e em seguida na morte.  
                                                         
Seus sonhos de morte sucedem-se em seguida a “la petite mort”.

O filme sugere uma visada bem familiar, o racismo e a perseguição aos negros. Sem dúvidas o filme denuncia esta trágica realidade. 

Porém, esta é a camada mais superficial e encobridora dos pensamentos do sonho e do filme. Seduz pela facilidade de interpretação, e assim encobre a verdade latente do sonho, ou do filme ou do mundo que nos envolve.   
                
É como uma lembrança encobridora apresentada aos grupos extremamente traumatizados, pelos governos  que se empenham em manter o status quo de suas lideranças, ainda que tenham sido cúmplices ou perpetradores da ação traumática. 

Quase não precisamos pensar para concluir: o policial branco tem ímpeto e prazer em matar um negro. Mas o filme apresenta um enigma a ser desvendado. Muito além do Princípio do Prazer.

Qual o pensamento do sonho ? e do filme ?

Sabemos que o filme apresenta um sonho, sonhado em seguida à relação sexual entre dois estranhos e que dos restos diurnos o trabalho do sonho transforma os pensamentos latentes no conteúdo manifesto. 

A atmosfera é de liberdade sexual, prazer sem compromisso com o amor ou a fidelidade. Uma brincadeira sexual. Um desafio ao Patriarcado. 

Ele tenta escapar enquanto ela dorme. Ela acorda e eles travam um diálogo engraçado e amistoso. Ela convida-o a ficar e mantem a atmosfera erótica. Ele vai embora para dar de comer a seu cão.

Na saída do prédio, encontra um policial branco que o mata, cuja face, por um momento, lembra muito a de um cão raivoso, e que será seu parceiro constante de sonhos. 

Pensamos que aconteceu na realidade, mas ele acorda muito assustado. Um sonho! Um sonho que se torna repetitivo:  sempre acaba morto pelo policial. 

O sonho é o condutor do filme. E o filme e o sonho tratam da realidade contemporânea do racismo e da compulsão a matar. Distinguimos as cenas do filme que são imagens do seu sonho, e as que são do diálogo em que ele conta o sonho a ela. 

Foi o sonho que conduziu Freud ao inconsciente e à Psicanálise. A mente adormecida, como uma tela em branco, e livre da censura moral, vai sendo preenchida pela produção inconsciente de imagens visuais. A partir de uma sessão onírica, de um “cinema da mente”, distante da consciência do mundo, surgiu “A Interpretação dos Sonhos”.

Sua interpretação e comunicação ao outro, dá-lhe o sentido específico e sua subjetividade, descoberta que inaugura e regula o processo psicanalítico. Não se trata de que um sonho indica, ou revela, uma realidade, uma previsão ou um futuro, mas desvela sim, uma subjetividade inconsciente: um desejo censurado e disfarçada sua realização…

É nesta harmonia psicanalítica que escrevo para vocês, distantes estranhos, no mesmo leito atemporal do Inconsciente, sobre dois casais estranhos e distantes: dois desconhecidos que se conhecem fugazmente na relação sexual e dois desconhecidos em relação consistente e firme, nos sonhos em que um sempre mata o outro. 

Erotismo e sexo livre na relação entre dois desconhecidos, em contraponto com uma relação onírica alimentada pela Pulsão de Morte numa relação estável e compulsiva. 

Quais são os pensamentos latentes do sonho que nos dão gosto ao assistirmos o filme? Qual será o inconsciente do roteiro? 

O sonho expressa um impulso à realização de um desejo, que se recusa a manifestar-se diretamente devido à resistência e à censura do sonho. 

O que está manifesto nas cenas do filme e nos deixa curiosos e “presos” à tela, em tensão contínua? Não há dúvidas que é um impulso que se realiza incessantemente nas repetições da ação eletrizante e nos satisfaz: a repetição de um policial branco matando um rapaz negro. 

Como se justifica na teoria dos sonhos o rapaz ficar sonhando repetitivamente sua execução? Qual o sentido fílmico de tal repetição, que entretanto é o fio condutor e a força de atração do filme e do sonho. 

Sonho que foi gestado durante a relação sexual com uma desconhecida. Ele tem esses sonhos assustadores, de terror, após e no próprio leito de uma noite de gozo sexual. 

Freud (1), relembra-nos que em todo sonho, um impulso inconsciente se realiza, satisfazendo um desejo. Entretanto, devido ao trabalho do sonho, este desejo realizado é manifesto de forma fortemente disfarçada, por deslocamentos e condensações. 

O que no sonho manifesto tem grande presença e aparece em primeiro plano é o que tem participação menor nos pensamentos do sonho, que aparecem apenas de passagem e quase despercebidos, disfarçados e até mesmo representados pelo seu contrário. 

Acrescentemos mais um elemento, um condimento da receita de preparação de sonhos manifestos: se uma pessoa aceita uma punição, podemos concluir que ela pode ir adiante e realizar seu desejo proibido ou ato imoral condenado pelo seu Superego e pelas forças morais que compõem sua personalidade. 

Neste mosaico complexo que se vai compondo ao conhecermos o trabalho do sonho, os sonhos de punição são realização de desejos, “embora não de impulsos instintuais, mas daqueles desejos da censura e da agência crítica e punitiva da mente.”(2)

Desejo de punir / Desejo de ser punido. 

É claro que além de uma homenagem a G. Floyd, o filme expõe, não apenas um incidente racista revoltante e perpetrado habitualmente, mas também, e principalmente a Compulsão à Repetição estrutural do modelo americano de segurança pública e racista que magnetiza não só os negros, como aos policiais brancos, presos a uma compulsão histórica e repetitiva, de senhor e escravo, de perpetrador e sua vítima, de modo que cada um em sua compulsão, dela não pode escapar: o rapaz sempre morre, o policial branco, mesmo quando filmicamente, tudo indica que está estruturada uma cena para um desfecho diferente, atira e mata, claramente tomado por um clímax. Aí, justamente no auge da Compulsão à Repetição, forma-se o mapa de África na poça de sangue do negro: desvela-se no sonho, filme, pesadelo, a revelação do presente pretérito deste futuro contemporanâneo, do sado-masoquismo colonial originário sustentando o modelo de sucesso americano e eurocêntrico. 

Fora do sonho, numa conversa em que ele conta-lhe o sonho, a moça diz: “por que você não reage e o mata?” oferece seu revólver ao rapaz. Ele responde inteiramente dentro dos valores do “way of life americano”: que sua beleza, inteligência e dinheiro será o bastante para enfrentar o policial ignorante e pouco dá atenção à ideia de romper a relação repetitiva de morrer baleado por seu parceiro no sonho, matando-o.

Mais à frente, em mais uma conversa sobre os seus sonhos repetitivos que não cessam, e a propósito de sua não reação, a erótica garota lhe diz: “E então! Você vai deixá-lo ficar te matando para sempre?” 

Aí está o elemento central do pensamento do sonho! Aquele que dá força e energia ao sonho e ao filme: o seu desejo de matar o policial branco, representado, no sonho, por ser repetidamente morto pelo policial. Tanto mais repetitivo quanto maior é seu desejo de matá-lo. 

Assim, o rapaz negro realiza o seu sonho de matar o policial, sendo morto por ele no sonho; possibilidades do sistema inconsciente, em que o não e o sim convivem e em que simultaneamente realiza-se o desejo de punição pela realização onírica do desejo de matar. 

Porém, outro desejo significante, desejo de apasssivamento, está sustentando esta relação, que se realiza como uma alternativa à realização de desejo não suportado na realidade não onírica. 

Testemunhamos a dinâmica da relação de dois casais.

O rapaz e a moça, de quem ele tenta fugir e recusa receber a arma dela que lhe é oferecida para romper a compulsão da relação com o policial,
e
a do rapaz com o policial que compulsivamente não conseguem se separar e sempre a relação termina no gozo da morte, pela penetração de uma bala fálica. 

O gozo sado-masoquista, que parece ser também fator estrutural de parte significativa de uma sociedade, de sua ordem e progresso, está presente na relação com o policial. 

Sabemos, pelos estudos psicanalíticos, que a fonte de prazer sado-masoquista tem grande estabilidade e é muito difícil ser desconstruída; é extremamente estável e competitiva com as outras formas de relações eróticas, quando é rejeitado o elemento masculino da mulher, sua arma oferecida (o sentido fálico aqui é inegável) e recusada. Oferta que estaria a serviço de romper a relação compulsiva com o policial branco. 

Para terminar, o filme ainda apresenta, em contraponto social, fortíssima crítica à ideologia pacifista a qualquer custo que, inconscientemente, ao serviço da manutenção da lógica do senhor e do escravo, supervaloriza a violência como mal, e diminuí o salutar recurso, recurso do impulso de vida, do uso justo e preciso da violência para sair da posição de escravo, ou de vítima respeitosa e eternamente submetida pelo Outro da violência vinculada ao respeito ao Patriarcado e à lógica colonialista. 

AUTOR
Miguel Sayad
Médico \ Psicanalista \ Membro Titular da IPA \ Membro Efetivo e Vice Presidente da SBPRJ \ Coordenador da Comissão da SBPRJ para a CPLP \ Diretor e Curador do Largo das Artes_Espaço Vazio Residências Criativas.
E-mail — mi.sayad@gmail.com

REFERÊNCIAS
1. Freud, S. (1900). A Interpretação dos Sonhos. London: The Hogarth Press, 1975.
2. Freud, S. (1932). Novas Lições Introdutórias. Lição XXIX: Revisão da Teoria dos Sonhos. London: The Hogarth Press, 1975.

TRAILER

FICHA TÉCNICA
Título original — Two distant strangers
Título português — Dois estranhos
Ano — 2021
Duração — 32 min
País — EUA
Direção — Travon Free, Martin Desmond Roe
Argumento — Travon Free
Produção — Dirty Robber, Now This
Fotografia — Jessica Young
Música — James Poyser
Edição — Lawrence Bender, Chris Uettwiller, Jesse Williams
Elenco — Joey Bada$$ (Carter), Andrew Howard (Merk), Zaria Simone (Perri), Ana González (Executiva), Mona Sishodia (Vendedora Fruta); Trevor Morgan (Polícia); Cameron Early (Polícia); Annie Hsu (Amante); JeremY Rivette (Polícia); Aizhan Lighg (Yoga)
Género — Drama
 
SINOPSE
1 – A atraente jovem Perri (Zaria Simone),  após uma noite de sexo e prazer, com Carter (Joey Bada$$), um desconhecido conhecido na noite, acorda quando ele estava tentando ir embora sem acordá-la, para ir dar de comer a seu cão. Ao chegar à rua é morto por um policial desconhecido que sempre o mata em seus sonhos. Entre os sonhos repetitivos eles conversam e ela sugere-lhe como reagir.
2 – O atraente jovem Carter (Joey Bada$$), após uma relação sexual prazerosa com Perri (Zaria Simone), uma desconhecida conhecida na noite, acorda de um sonho, que se torna repetitivo: ao sair para ir dar de comer a seu cão, encontra um policial desconhecido que sempre o mata em seus sonhos. Entre os sonhos repetitivos eles conversam e ela sugere-lhe como reagir.