A PLASTICIDADE DO VIDRO — My Life as a Dog (1985)

— ANA BELCHIOR MELÍCIAS —
A vida de uma pequena aldeia, gira ao redor de uma fábrica de vidro e acolhe Ingemar, o cativante e inesquecível personagem principal do filme Vida de Cão, em Portugal, e Minha Vida de Cachorro, no Brasil.
O eixo da narrativa parece espelhar o provérbio africano “é preciso uma aldeia para criar uma criança”. Mas, do outro lado do espelho, o título do filme, reflete a dureza sobre-humana que representa a perda dos pais na infância/adolescência, tema recorrente dos contos de fadas e assiduamente visitado pelo cinema.
Sendo a separação a angústia basilar a todas as outras formas de desassossego – pânicos, fobias, stresses e ansiedades de diversificadas roupagens – e sendo a morte a derradeira e incontornável separação, o luto na infância parece correr pari passu com o luto da infância e a turbulência da entrada na adolescência e seus imperativos sexuais e identitários.
Ingemar vê-se obrigado a separar-se da mãe doente, do seu cachorrinho Sickan e do irmão mais velho, para ir morar com os tios.
Como matéria de fundo temos o vidro que, segundo Lalique (2), parece falar da resiliência e plasticidade de que é feito Ingemar: “…simultaneamente a mais delicada das matérias preciosas e o mais maleável dos materiais; a sua fusibilidade, maleabilidade e extraordinária resistência quando é solidificado; a faculdade de se deixar moldar, gravar, colorir, irisar, tornar-se opaco ou translúcido, rugoso, fosco ou polido; permite um jogo de reflexos e de transparências…”
Como cenário de fundo, Ingemar transporta-nos recorrentemente a duas imagens, uma arrastando consigo a outra: jogo entre um “souvernir écran”/lembrança encobridora e uma comparação, como lembrança recobridora. O que encobre ou recobre as nossas lembranças? Freud (2) investiga a fragmentação das lembranças da infância e se indaga “por que se suprime precisamente o que é mais importante, retendo o irrelevante” e porque a essência de uma experiência é representada por outros elementos triviais, longínquos. Diz-nos que a força psíquica da experiência é esquecida (recalcada) e deslocada para uma outra lembrança encobridora.
Da dor da doença da mãe, da mudança da cidade para o campo, da perda do cão, do abandono do pai, da passagem da infância para a adolescência, Ingemar protege-se da sobrecarga psíquica pois, como nos diz: “nunca devemos pensar que somos o Tarzan…”, herói-órfão sobrevivente na selva.
De um lado temos a boa-mãe na saborosa e idílica lembrança da exclusividade de um prazer a dois — Ingemar e a mãe na praia, ele fazendo uma “teatralização cómica” e ela, bonita, rindo deliciada, num harmonioso “não-conflito-estético”. Ela que se refugiou da sua dura vida des-acompanhada de marido e se des-acompanhou de um contato afetivo com os filhos, mergulhando nos livros. Conjugalidade e parentalidade desarticuladas. Mãe que guarda as histórias para si e não tem prazer em contar ou ouvir as divertidas e fabulosas narrativas, através das quais Ingemar busca ativar os seus afetos – o riso e por vezes também a fúria – para usufruir de uma companhia viva.
Na oscilação dos movimentos psíquicos (PS-D), à lembrança da mãe-ideal, atrela-se a lembrança recobridora do desamparo da mãe-abandônica: imagem do universo infinito e a perplexidade com Laika, a primeira cachorrinha a orbitar a Terra, enviada numa missão russa para o espaço sideral, sabendo-se a priori que não haveria esperança de sobrevivência e morreria de fome. Também Sickan foi enviado para morrer num suposto canil… Também Ingemar foi deixado perdido no “cosmo” de uma “mudança catastrófica”, desnutrido pelo silêncio dos adultos.
Balançando entre a tragédia e o humor, Ingemar diz que “é importante comparar”. Busca novos vértices e correlações para a sua vida colocando-a em perspectiva e tentando assim alcançar aquilo a que Bion chamou visão binocular. A cada dor, uma comparação compensatória e deslocada de uma tragédia maior e longínqua: da morte de uma freira missionária na Etiópia; do transplante mal-sucedido de um rim em Boston; de um acidente de combóio algures; etc.
Mas, diz-lhe uma amiga, a sua tragédia é a falta do pai… Lançando mão da sua imaginação tragicómica, prontamente justifica o abandono deste: “alguém tem de cuidar das bananas no Equador”. Talvez a falta-do-pai-depressão, não mentalizada na mãe, transborde no seu corpo em forma de tuberculose.
O irmão mais velho, não o protege. Ao contrário rivaliza abertamente: acorda-o com “um tiro” na testa; dá uma “aula” exibicionista de sexualidade submetendo Ingemar a uma “quase-castração”; diz-lhe cruelmente que a mãe morrerrá.
Os tios na cidade não querem receber os sobrinhos. Os tios na aldeia recebem-no mas, quando se torna definitivo, o seu lugar caberá a uma família de inquilinos imigrantes gregos. E grego vê-se Ingemar quando o enviam para casa de uma viúva idosa. “Não é fácil ser deixado sozinho” diz, deitado a seu lado, resiliente e empaticamente identificado à solidão da senhora.
A família estilhaçada.
A puberdade em fusão, a ser soprada e a ganhar forma.
No início, ainda morando com a mãe, num buraco-cena-primitiva debaixo da linha de combóio, uma amiguinha sela um casamento imaginário com a troca do sangue dos dedos de ambos; já o sangue tossido pela mãe, é confusamente identificado à menopausa; desorientado, pega fogo a um monte de lixo num descampado e, assustado, pede socorro gritando pela mãe. Movimentos exploratórios de independência vão moldando o segundo tempo da sexualidade a ser progressivamente integrado.
Experimenta uma vida diferente na casa os tios, onde a emergência da sexualidade transpira por todos os poros: imita o tio brincalhão, ladrando atrás da tia, até que a porta se fecha com o sabor da exclusão; lê revistas de roupa íntima feminina para um hóspede idoso, cujo desejo ainda o martela internamente e que se desespera com o compasso do martelo (do fim da vida?) no telhado do vizinho; a fábrica de vidro produz kleinianos jarros com fartos seios de onde jorra o leite e o mel; o tio mostra-lhe o álbum da sua viagem ao Rio de Janeiro repleto de mulheres sensuais; Berit, a jovem mais cobiçada da fábrica é edipicamente “disputada” entre o tio e Ingemar; por sua vez, ela usa-o para se proteger da própria sexualidade ao posar como modelo para um escultor; Ingemar vai passando da inocente passividade em relação à nudez de Berit, para sucumbir ao impulso voyeurista do desejo, caindo pela clarabóia; sente-se no entanto claramente compensado pelos cuidados de Berit aos pequenos cortes-castrações; Saga, a sua amiga boxeur pede-lhe ajuda para enfaixar os seios nascentes e manter-se no futebol entre os rapazes, armadilhada nas desarticulações sexo e género; e o sintoma de Ingemar – tremor da mão ao beber qualquer líquido, entornando-o – revela o (re)equilíbrio do transbordamento da pulsionalidade em afinação.
Também o mecanismo regulador da temperatura sofre desequilíbrios, não lhe permitindo tirar o casaco-pele continente do frio na despedida da mãe no hospital. Quer dar-lhe um presente de Natal, dando-se a si mesmo a prenda ilusória de esticar o tempo a findar. A sábia resposta da mãe – “Tu sabes o que eu quero!” -, reverbera num quente e aconchegante asseguramento do objeto internalizado. Ingemar pode então tirar o casaco-de-pele, símbolo agora do seu crescimento e autonomia. Sabendo a mãe em si, sabe melhor de si.
E é no/ao “abrigo” do tio, que se consegue livrar da culpa narcísica pela doença e morte da mãe e chora a sua dor: late e enraivece-se, identificando-se ao seu Sickan perdido e não mais à mitológica Laika; lembra-se, aceitando a ambivalência, da mãe-objeto-total – doente, cansada e zangada – sem o recobrimento da mãe sorridente; e verbaliza finalmente para o tio: “Eu não a matei. Diz-me que eu não a matei. Porque ela não me quis?” Este tocante momento compartilhado, integra as duas vias do diálogo analítico: a escuta e a “palavra justa” (4) permitindo o alinhamento do real (morte), do imaginário (culpa) e do simbólico (fala-palavra).
Tal como o vidro, a aldeia constitui um teatro interno maleável e plástico de personagens e histórias, acolhendo a diversidade e favorecendo as boas trocas nos vários níveis do funcionamento mental – corporal, sensorial, simbólico e criativo: Ingemar, como o “louco” da aldeia, também se viu em malabarismos na corda bamba e também é salvo do lago-dor-gelada e aquecido nos fornos-afetos da fábrica de vidro; a viagem de Laika torna-se uma experiência real infantil, uma viagem na cápsula do inventor-Professor-Pardal da aldeia, aterrizando na lama-analidade num pasto de vacas-oralidade; “De onde vem o amor”, é o título da escultura, à moda das estátuas do Vigeland Park, ligando a mulher-sensual à mulher-materna, a nudez erótica ao mistério do nascimento e da vida que ela engendra; e finaliza com toda a aldeia a torcer pelo pugilista sueco Ingemar Johansson que se tornou, nesse ano de 1959, campeão mundial dos pesos pesados.
E nós na torcida pelo nosso pequeno Ingemar. E ele, vencedor das provas iniciáticas da adolescência. Depois do luto da infância (mãe), caminhando na clarificação da identidade sexual e da integração da bissexualidade psíquica, pode dormir abraçado à sua Saga, e seguir o seu destino.
E o martelo no telhado marca a pulsação do tempo e, simultaneamente, a manutenção dinâmica exigida pela vida.
AUTORA
Ana Belchior Melícias
Psicanalista Associada da Sociedade Portuguesa de Psicanálise \ Analista da Criança e do Adolescente \ Docente do Instituto de Psicanálise \ Formadora do Método Bick.
E-mail — mail@anamelicias.com
REFERÊNCIAS
1. René Lalique – Guide-album de l’Exposition internationale des arts décoratifs et industriels modernes. Paris.: Édition Moderne, 1925. In Calouste Gulbenkian: Exposição “René Lalique e a Idade do Vidro”. Abril 2021.
2. Freud, S. (1899). Lembranças encobridoras. In: FREUD, Sigmund. Primeiras publicações psicanalíticas (1893–1899). Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Volume III. Rio de Janeiro: Imago, 2006. p. 285–304.
3. Sérgio Vaz (2010). 50 Anos de Filmes. http://50anosdefilmes.com.br/2010/minha-vida-de-cachorro-mitt-liv-sond-hund/
4. Dolto, F. (1990). Seminário de psicanálise de crianças. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan.
5. Filme discutido no dia 12.04.2021 no Grupo Reflexão Infância & Cinema (2020-21) da Sociedade Portuguesa de Psicanálise, coordenado por Ana Belchior Melícias e Elsa Couchinho.
FICHA TÉCNICA
Título original — Mitt liv som hund
Título inglês — My life as a dog
Título português — Vida de Cão (PT) e Minha Vida de Cachorro (BR)
Ano — 1985
Duração — 101 min
País — Suécia
Direção — Lasse Hallström
Argumento — Lasse Hallström, Per Berglund, Brasse Brannstrom e Reidar Jonsson
Baseado no livro de Reidar Jonsson
Produção — Waldemar Bergendahl, Svensk Filmindustri e FilmTeknik
Fotografia — Rolf Lindström e Jörgen Persson
Música — Björn Isfält
Edição — Christer Furubrand e Susanne Linnman
Elenco — Anton Glanzelius (Ingemar), Anki Liden (Mãe), Manfred Serner (Erik), Melinda Kinnaman (Saga), Tomas von Bromssen (Tio), Ing-Marie Carlsson (Berit), Kicki Rundgren (Tia Ulla)
SINOPSE
Ingemar, de 12 anos, vive com o cão, o irmão e a sua mãe, que sofre de tuberculose. Com o agravamento da doença, Ingemar é separado do seu irmão e vai morar com os tios numa pequena aldeia no campo. Solitário e confuso, saudoso da mãe e do seu cachorro, entre memórias tristes e felizes, vai encontrando outras crianças e inesperadas alegrias, com a ajuda do seu tio brincalhão. Uma história rica e realista, sobre a infância e o despertar da adolescência, repleta de personagens cativantes e cenas memoráveis.