BATALHA NAVAL OU F, DE FACA, 1, 2 e 3 — Knife in the Water (1962)

— MIGUEL CALMON DU PIN E ALMEIDA —

“E então havia este romance em sua vida: um homem morrera por ela. Quase já não o magoava pensar no pouco que ele, marido, representara em sua vida. Observava-a enquanto dormia, como se nunca houvessem vivido juntos. (…) Pensou como aquela mulher, adormecida a seu lado ocultara por tantos anos a imagem do seu amado a afirmar-lhe que não queria viver. Um pranto generoso invadiu-lhe os olhos. Nunca se sentira assim por uma mulher, mas sabia que isto era amor.(…) Sim os jornais estavam certos: a neve cobria toda a Irlanda. Caía em todas as partes da sombria planície central, nas montanhas sem árvores, tombando mansa sobre o Bog of Allen e, mais para o oeste, nas ondas escuras do cemitério abandonado onde jazia Michael Furey.”

James Joyce (1)

B, de bola, 12 e 14; e C, de cavalo,13.
Afundou um hidroavião.

Ele sabe de tudo. É inútil tentar se esconder, ele sabe onde você está. Ele troca com ela na direção do carro. Não há lugar para hesitação, vacilos ou espanto. Ele sabe e por isso não há mais lugar para o espanto. Não há tolerância com os outros, mulheres, jovens e crianças, que, por não deterem este saber sobre as coisas, hesitam e se espantam. Por que um adulto sabido ainda se espantaria?

L, de leite; M, de Maria; e N, de Nair, 8.
Afundou um destróier em M e N, 8.

Ele corre a 130 quilômetros por hora. Um rapaz atravessa o caminho do carro e permanece parado. Ele freia, o carro derrapa. Ele se irrita. Não fosse sua perícia o rapaz teria sido atropelado. Recompõe–se do susto retomando a soberania. De súbito, quase o espanto. A surpresa de não imaginar um sujeito ali. De súbito a revelação que se transformará em convite, em jogo. Urge apagar os traços onde se desenhou, mesmo que de longe, a possibilidade do espanto. Ele provará isto. Nos adultos, o espanto está clivado.

D, de dado; E, de elefante; e F, de faca, 4.
Uma parte de um cruzador.

Ele dirige novamente a 130 quilômetros por hora; a eficiência no preparo do barco; a mulher, bonita e jovem; ele, forte e experiente. Ele o convida para o passeio. O rapaz já o previra. O quase atropelamento reaproximara o adulto do espanto clivado. Exibir-se para o rapaz espantaria o espanto. Nas competições, nas rivalidades, o espanto retorna quase que com hora marcada, quase sem espanto, em um movimento já esperado por ele. Cada parceiro deve estar lá onde o outro espera, como em um diálogo especular que trata de confirmar para os sujeitos o que eles pensam que são, ao mesmo tempo em que apaga as marcas do novo, do susto, da surpresa, do inusitado, do necessário outro por intermédio de quem eu me constituo. “Eu te observo e nada em você me é estranho. Posso antecipar cada um dos seus movimentos”. Definem-se os papéis: ao rapaz cabe surpreendê-lo, estar onde ele não poderia supor, onde ele não o espera. Tudo no seu lugar, tudo parece simples, fácil. Rapaz pega o leme e descobre as dificuldades do timão. Eles riem. O rapaz sobe no mastro. A mulher ri. O rapaz exibe sua destreza no uso da faca. Ele o observa atento. Ele o imita com a faca. Contra as expectativas, ele não se corta.

D, de dado, 1, 2 e 3.
Uma parte de um encouraçado.

A refeição. O mergulho. Os risos na água. A tranquilidade da espera da tempestade. O barco à deriva timoneado pelo rapaz. A corrida atrás do barco que teima em lhe escapar. Estaria o rapaz gozando? Mergulha a cabeça no mar e nada o mais rápido que pode. Cada uma das vezes que ele levanta a cabeça para lhe adivinhar o rumo, o barco lhe escapou, está onde ele não está. A corrida dá ao barco o estatuto de invisibilidade. Ele alcança o barco. Ele quase mergulhou no espanto. O refúgio. A faca fincada na parede. Precisa. Desafiadora. Como um aviso para o rapaz de que não tente nada pois a resposta será pronta e firme. Ele não repara que errou o alvo e cravou a faca na parede do próprio barco.

F, de faca, 1, 2 e 3.
Água.

O ciúme. A opressão do tudo saber identificam o rapaz e a mulher. A faca no bolso. A discussão. A faca na água. Um furo no ser. Erra o mastro, erra o rapaz. Nem o mastro nem o rapaz. Nem a destreza nem a maldade. Nem mau ele é. Ele é apenas alguém que se diverte espantando pardais. O soco. O rapaz na água. “Onde você se escondeu? Onde você está que não lhe encontro?” O espanto é sempre sentido como se fosse a primeira vez. Não se trata de um ato de rememoração, mas o espanto é o estado que testemunha o momento da fundação, testemunha de nossa dívida com o outro. “Ah, quem dera aos adultos poder brincar com a mesma seriedade com que as crianças brincam!”, dizia Nietzsche. A criança quando brinca não o faz por pura diversão. Em cada um de seus movimentos, ela põe em jogo um desejo que tem a capacidade de engendrar o real. Desse modo constrói o real e a si mesma, em um jogo sem descansos. Sua intenção não é espantar o tédio dos seus cotidianos, uma vez que para ela, o cotidiano é fonte permanente de criação e de espanto. O rapaz se esconde. Está onde não se suspeita. A mulher mergulha. Ele mergulha e não volta para o barco. O rapaz volta. O rapaz e a mulher juntos consagram a deposição do macho com uma trepada. O rapaz vai embora. A mulher timoneia o barco de volta ao encontro dele. Em sua “morte”, o rapaz espantou-o de sua própria condição. Ele novamente espantado diante da questão ‘quem sou eu?”. Mais uma vez dono de uma dívida. Impagável. A mulher é testemunha.

AUTOR
Miguel Calmon du Pin e Almeida
Membro Efetivo, ex-Presidente e ex-Diretor do Instituto da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro (SBPRJ).
E-mail — mcalmon.trp@terra.com.br

REFERÊNCIAS
1. Joyce, J. (1914). Os mortos, in: Dublinenses. Lisboa: Relógio d’Água, 2012.
2. Vaz, S. (2010). https://50anosdefilmes.com.br/2010/a-faca-na-agua-noz-w-wodzie/
3. Almeida, M. C. P. (1999). Batalha Naval ou F, de Faca, 1, 2 e 3. Comentário ao filme “A Faca na Água” (1962) de Polansky, originalmente apresentado em Junho de 1999.

TRAILER

FICHA TÉCNICA
Título original — Nóz w wodzie
Título inglês — Knife in the Water
Título português — A faca na água
Ano — 1962
Duração — 94 min
País — Polónia
Direção — Roman Polansky
Argumento — Jakub Goldberg – Roman Polansky – Jerzy Skolimowsky
Fotografia — Jerzy Lipman
Música — Krzysztof Komeda
Elenco — Leon Niemczyk – Jolanta Umecka – Zygmunt Malanowicz

SINOPSE
O primeiro longa metragem de Polansky, caracterizado como um “ménage-à-trois psicológico” tem um roteiro simples com uma densidade inquietante. Um casal quase atropela um jovem. Convidam-no para passar o dia velejando. Surge então o confronto pela mulher, colocando em evidência os conflitos na relação.