ENTRE O IDEAL E O REAL — I Was Born But… (1932)
— ELSA COUCHINHO —
O período Showa (1926-1937) estabelecerá as condições políticas e económicas que definirão o papel do Japão na II Grande Guerra Mundial. O impacto social da rápida industrialização do país encontra-se retratado neste filme de Ozu, num ambiente onde convivem a tradição e a hierarquia social rigidamente definidas, juntamente com a promessa de mobilidade social, assente na alfabetização e na inovação tecnológica. Dois polos onde se constrói uma nova identidade nacional e social.
Pontuado por momentos de humor, será o seu carácter pessimista que atrasará a estreia do filme.
É em busca da promessa de uma vida melhor e de mobilidade social que a família Yoshi faz a sua mudança para os subúrbios de Tóquio. Talvez o filme comece como se desenrola: uma mudança que encontra obstáculos e entraves, tal como o carro atolado. Uma família que habita dois lugares. O lugar do passado na sua casa e nas suas vestes tradicionais. O lugar do futuro, do mundo ocidentalizado com as suas fábricas, os fatos, os jogos de ténis ou os filmes.
O título “An adult´s picture book view” sugere uma certa ironia, a maior parte da acção é preenchida com o mundo das crianças, talvez a inveja, a rivalidade, o domínio e submissão, as ilusões e desejos das crianças sejam fragmentos que dão um vislumbre sobre o mundo dos adultos. Revelando como o infantil continua a deixar a sua marca nas experiências dos adultos e como a realidade exige um trabalho permanente de integração e elaboração dessas experiências.
Os irmãos Keiji e Ryoichi encontram um grupo de pares fortemente hierarquizado e ritualizado. Os grandes dominam os pequenos e o maior domina todos. O mais forte executa o ritual de morte e ressurreição, através do qual com um simples gesto reafirma a hierarquia, o domínio e o poder. Como um retrato do Japão feudal onde os senhores detinham o poder da vida e da morte sobre os seus dependentes. O retrato da omnipotência infantil que controla e triunfa magicamente sobre a morte.
Observamos neste grupo de crianças a importância das identificações com a figura paterna e a idealização desta, nutrindo e sustendo o narcisismo de cada um dos rapazes. O pai enquanto prolongamento narcísico dos filhos, cada um deles é mais forte e importante na medida em que o seu pai o é por comparação com outros e cada um dos rapazes exibe a proeza do seu pai.
O curso do desenvolvimento infantil torna esta dependência narcísica insuficiente e os irmãos terão que encontrar outras soluções para se sentirem mais fortes perante o grupo e para construir a sua identidade, aproveitando as identificações que se fazem dentro desse mesmo grupo o pensamento mágico fornece a solução: fortalecerem-se com ovos de pardal!
De qualquer forma será mais seguro testar esta solução com o seu cão… A realidade desfaz a ilusão… os ovos não conferem força mas serão o passaporte para a sessão de projecção de filmes em casa de Taro.
O confronto com a imagem do pai subalterno e infantil fere a sua representação idealizada do pai e o narcisismo das crianças que abandonam a sala desiludidas, frustradas e humilhadas.
“Todas as crianças têm que fazer traquinices”, desafiar a lei e os limites para que estes sejam repostos: faltar à escola, fumar o cigarro, participar na briga…
Em casa, a raiva narcísica desagua, os irmãos rebelam-se contra o pai e decidem fazer uma greve de fome. Negam a dependência infantil e fantasiam o parricídio. Ryoichi questiona o pai sobre como o mundo funciona? O que torna uma pessoa importante? De que é feito o poder?
No seu lugar infantil mantém a ilusão que basta o desejo para transformar a realidade, bastaria ao pai pagar o salário do director da empresa para inverter a situação.
Os pais observam as crianças adormecidas, ainda com o punho fechado da revolta e as lágrimas da desilusão, interrogam-se sobre o seu futuro, sobre a escolha que fizeram para conquistar uma vida melhor.
Na manhã seguinte é hora de reconhecer a dependência infantil e abrir caminho à reparação dos ataques realizados contra os pais. Deliciam-se com os bolos de arroz e talvez com a possibilidade que o pai abre de poderem, cada um deles, sonhar com o seu futuro: Keiji gostaria de ser general mas aceita que esse será o lugar do irmão mais velho e a ele caberá ser tenente.
No caminho para a escola retomam os seus jogos com os amigos, reconhecem a autoridade do professor e sobretudo, o valor intocado do pai na realidade do mundo infantil e dos adultos.
AUTORA
Elsa Couchinho
Psicanalista, membro associado da Sociedade Portuguesa de Psicanálise (SPP) e da International Psychoanalytic Association (IPA). Psicanalista da Criança e do Adolescente.
E-mail — elcouchinho@gmail.com
FICHA TÉCNICA
Título original — Otona no miru ehon – Umarete wa mita keredo
Título inglês — An adult´’s picture view – I was born but…
Título português (BR) — Meninos de Tóquio
Ano — 1932
Duração — 90 min
País — Japão
Realização — Yasujiro Ozu
Argumento — Yasujiro Ozu, Akira Fushimi
Direcção de arte — Takashi Kono
Cenários — Yoshiro Kimura; Takejiro Tsunoda
Edição — Hideo Shigehara
Produção — Shochiku, Shôchiku Eiga
Música — Donald Sosin
Elenco — Hideo Sugawara; Mitsuko Yoshikawa; Tatsuo Saitó; Takeshi Sakamoto; Tomio Aoki; Teruyo Hayami; Seiichi Kato; Shôichi Kofujita; Zentaro Iijima; Seiji Nishimura; Chishu Ryu; Masao Hayama
SINOPSE
A família Yoshi muda-se para os subúrbios de Tóquio em busca de uma vida melhor. Assistimos ao confronto da estrutura cultural do Japão com a sua ocidentalização. Acompanhamos a integração dos filhos do casal à medida que encontram o seu novo lugar na família e entre os pares: os seus conflitos, as suas desilusões, as suas conquistas.