ESQUEÇA JAKE. É CHINATOWN! — Chinatown (1974)

— NELSON ERNESTO COELHO JUNIOR —

Como qualquer obra de arte, um filme possui muitas camadas de sentido. Convoca muitos níveis de experiência, gerando diferentes formas de sensação, percepção e cognição. Em geral, provoca emoções e pensamentos simultaneamente, abrindo novos veios de sentido, ou ainda, renovando sensações corporais e lembranças retidas em nossos corpos e em nossas mentes.

O filme Chinatown produziu em mim, nas diversas vezes em que tive ocasião de assisti-lo, as mais inquietantes experiências sensoriais e cognitivas. Para esse ciclo (1) promovido pela SBPSP meu foco (ou o meu pensamento) estava voltado para o tema da corrupção, mas o filme, uma vez mais, mexeu em planos e níveis que não tive como controlar, ou mesmo, que não quis evitar. Como psicanalista, me vi convocado pelas esferas perversas de ação e controle intersubjetivo, que geram ligações e desligamentos afetivos. Temi por todos nós, sem nem me dar conta. Sofri com o que há de mais humano e, ao mesmo tempo, de mais desumano em cada um de nós. E, ainda, há a sombra do Édipo e muito mais.

É tentador tratar da corrupção a partir de uma frase que ecoa durante todo o filme: all is possible! Referência explícita à força da corrupção e do poder que percorrem vários níveis de expressão nesse envolvente filme: corrupção política, corrupção financeira, mas também o extremo da corrupção e da violência humana, realizadas por aquele que faz a sua própria lei, que decide que está acima de toda e qualquer lei. Mas, all is possible é também a marca indicativa de alguma esperança, já que se tudo é possível, também é possível combater e derrotar a corrupção. Como é possível perceber no filme, essa não é a posição ou convicção com que saímos no final.

Mas, Chinatown, é também mais do que “all is possible”. Procura desvendar o que humanamente subjaz ao grande cenário da corrupção. Motivações, desejos, pequenas e grandes tragédias.

De resto, vale lembrar que o filme foi realizado no período do escândalo político de Watergate (período marcado pelo cinismo com relação ao alto nível de corrupção na sociedade norte-americana) que levou ao impeachment do presidente Nixon, ocorrido em agosto de 1974, depois de amplas denúncias de conspiração política que começaram a se tornar públicas em 1972.

O roteiro de Robert Towne para Chinatown ganhou o Óscar (o filme teve 11 nomeações, mas só ganhou melhor roteiro). A trama construída por Polanski e Towne trata, em uma de suas dimensões, da corrupção na política: um escândalo no Departamento de Água (Watergate?) em Los Angeles na década de 1930. Mas há outros níveis de corrupção humana, profundos, extensos e violentos. E a mensagem de Chinatown, com sua aparente atualidade, é por fim muito pessimista e talvez realmente niilista. Polanski expõe a corrupção sexual, financeira e política sem oferecer muita saída. Tudo se transforma em sangue (ou em água ou em dinheiro) neste mundo. Polanski toca em alguns dos medos mais profundos que possuímos em nossa psique. Assim, ele transforma Chinatown — o bairro, bem como a ideia — em um símbolo da corrupção humana, do caos, e da imoralidade. Há outra frase, nesse sentido, que acompanha o filme do começo ao fim: sobre certas coisas é melhor não saber, “é melhor não perguntar…”

A trama de Chinatown resultou em uma história bifurcada. Para alguns estudos, dominados por modelos psicanalíticos, a trama da filha, com seus ricos motivos edipianos, é o foco de análise crítica. Mas o filme também tem uma longa vida, ainda que menos extensa, na tradição dos comentários que se centram no mundo do debate de políticas públicas, onde a trama da água mantém como nunca sua atualidade (Los Angeles, São Paulo etc.). Para os primeiros, a trama da água é uma distração, uma espécie de tela que obscurece o funcionamento real do filme, cuja conformidade com os paradigmas freudianos é tida como certa. Já os segundos, pelo contrário, tratam o enredo da filha como uma distração sensacional do principal interesse do filme, que seria tratar da corrupção política a partir do tema da água. Os crimes em “Chinatown” incluem incesto e assassinato, mas o maior crime é contra o próprio futuro da cidade, por homens que vêem que para controlar a água é preciso controlar a riqueza. Em um ponto Jake Gittes (Jack Nicholson) pergunta ao milionário Noah Cross (John Huston) por que ele precisa ser mais rico: “Quanto melhor você pode comer? O que você pode comprar que você não comprou?” Cross responde: “O futuro, Mr. Gittes, o futuro.”

Chinatown nos perturba. Consegue penetrar em muitas de nossas defesas. A partir da sequência de abertura vemos uma série de imagens semi-pornográficas de um casal, que serve para despertar nossa curiosidade e nos envolve como voyeurs. Somos como crianças que tentam descobrir o que estes adultos estão fazendo sexualmente, o que está acontecendo por detrás da porta do quarto dos pais, ou na cena primária. O que descobrimos que acontece faz justiça às nossas mais profundas fantasias. O crítico Norman Holland (2) comentando Chinatown afirmou: Não quero ser um “freudiano” caricatural, mas este é um filme cheio de símbolos fálicos (o nariz, a câmera, carros, armas, facas, chapéus, cigarros). “É um filme fálico”, no sentido amplo. Ou seja, o herói de Polanski cutuca as coisas. Ele é intrusivo em seus modos de agir, em sua profissão, com seu corpo, etc. Apesar de não sabermos até perto do fim, este é também “um filme edípico”, tanto em um sentido singular, o pai tirânico também é o amante de sua filha e em um sentido muito geral: este é um filme sobre gerações e gerar a vida. (…)Pode um homem ter tanto o poder sexual como o social? Pode um homem ser um pai e um amante da mesma mulher?

Mas, Chinatown, é um filme sobre corrupção. É também um filme que apoia a corrupção no poder ou na loucura do poder, que sustenta um onipotente direito ao incesto e aos mais diferentes crimes. O personagem poderoso e penetrante representado por John Huston (Noah Cross) caracteriza na Los Angeles pré-segunda grande guerra a síntese perfeita do desrespeito por fronteiras sociais, fronteiras de intimidade e fronteiras políticas, aspecto típico de muitas formas de poder. Um poder que cria sua própria respeitabilidade. Noah Cross diz: “Claro que sou respeitável. Eu sou velho. Políticos, prédios feios e prostitutas se tornam respeitáveis ​​se durarem o suficiente.”

Considero que quem controla todos os eventos do filme é o personagem Noah Cross. Na primeira vez em que aparece encontramos um velho rico e rabugento. Durante o almoço com Gittes temos pouca noção de sua crueldade e total poder. Ele é o pai de Evelyn Mulwray (Faye Dunaway), ele é o homem que é dono de Los Angeles. Cross é um patriarca bíblico (Noé Cruz?), uma espécie de homem originário? Cross é o primeiro proprietário do Departamento de Água de Los Angeles (que depois seu sócio decide dar ao Estado, contra sua vontade) e não está satisfeito em possuir dez milhões de dólares, quer possuir o futuro. No final, ele recebe exatamente o que quer, e porque ele é dono da polícia, é invulnerável. Ele é o verdadeiro Senhor da Terra, um homem tentado a fazer o que os outros homens, como o detetive Jake Gittes (Jack Nicholson), dificilmente podem imaginar. Ao final Cross nega qualquer culpa e onipotentemente leva embora a filha-neta. Para Gittes sobra ouvir “Esqueça Jake, isso é Chinatown…” É a compulsão à repetição, mas também o cinismo da aceitação da inevitabilidade da corrupção humana em todos os níveis.

Muitas vezes, a verdade é algo que simplesmente não queremos saber. Nós sempre pensamos que nós queremos conhecer a realidade, as reais motivações por trás das coisas, os fatos da vida, mas muitas vezes a única coisa que a verdade pode fazer por nós é nos deprimir. Jake Gittes descobriu não só sobre a corrupção de mulheres inocentes, mas sobre como Los Angeles tornou-se podre e dominada pelo poder de homens como Cross. Jake gostaria de corrigir esta injustiça, para reparar os erros, para derrotar o mal. Mas percebe que é muito mais complicado que isso. Para derrotar o mal, o bem seria prejudicado. A corrupção é muito profunda, muitas pessoas envolvidas, e nada pode ser feito. Este é o estado das coisas em Los Angeles, nos Estados Unidos e, por que não, o estado das coisas no mundo inteiro. Tudo que podemos fazer é desistir e dizer: “Esqueça, Jake. É Chinatown. Faça o mínimo possível”, diz Gittes bem no final do filme ao tenente Escobar, mas também como uma verdade final para si mesmo, parte raiva e parte sarcasmo. No entanto, é também um reconhecimento da realidade. A única maneira de eliminar o mal é levar o bem com ele? É essa realmente a justiça? Vale a pena? Ou é melhor fazer o mínimo possível?

AUTOR
Nelson Ernesto Coelho Junior
Psicanalista, pesquisador e professor do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP)
E-mail — ncoelho@usp.br

REFERÊNCIAS
(1) Coelho, N. (2015). O que o filme Chinatown (1974) tem a nos ensinar sobre a corrupção. Texto originalmente apresentado no ciclo Cinema e Corrupção, organizado pela SBPSP, em 2015, com a coordenação de Liana Pinto Chaves.
(2) Holland, N. – Essays on film by Norman Holland – https://www.asharperfocus.com/chinatow.htm

TRAILER

FICHA TÉCNICA
Título original — Chinatown
Ano — 1974
Duração — 130 min
País — E.U.A.
Direção — Roman Polanski
Argumento — Robert Towne
Produção — C. O. Erikson e Robert Evans
Fotografia — John Alonso
Música — Jerry Goldsmith
Edição — Sam O’Steen
Figurino — Anthea Sylbert
Elenco — Jack Nicholson, Faye Dunaway, John Huston, Diane Ladd, Perry Lopez, John Hillerman, Darrell Zwerling, Joe Mantell, Richard Bakalyan, Burt Young, James Hong, Bruce Glover, Roman Polanski, Roy Jenson, Nandu Hinds, Ida Sessions, Belinda Palmer
 
SINOPSE
Los Angeles, 1937. O detetive particular J. J. Gittes (Jack Nicholson) recebe a visita de uma mulher que acredita que seu marido, engenheiro-chefe do Departamento de Águas e Energia, tem uma amante. Gittes logo descobre que a mulher era uma farsante e encontra a verdadeira Evelyn Mulwray (Faye Dunaway), filha de Noah Cross (John Huston), um dos homens mais poderosos da cidade. O engenheiro aparece morto e Gittes, envolvido com Evelyn, se vê no meio de um perigoso jogo de poder, com muitos segredos e mistérios. O filme se passa no peculiar ambiente moral da ensolarada e seca Califórnia, antes da 2ª Guerra Mundial. O detetive contratado por uma bela senhora para investigar as actividades extra-matrimoniais do seu marido é arrastado para uma intriga de negócios duplos e enganos mortíferos, descobrindo uma teia de escândalos pessoais e políticos, que se vão juntar todos, numa inesquecível noite em Chinatown.