EM ESSÊNCIA… O BRINCAR — The Territory of Play (2015)
— ENEIDA M. FLECK SUAREZ —
É no brincar, e talvez apenas no brincar, que a criança ou o adulto fruem sua liberdade de criação. (Winnicott, 1975, p.79)
Este belíssimo documentário de Renata Meirelles e David Reeks, retrata o brincar em diversas regiões brasileiras. Contrasta diferentes comunidades e culturas: a indígena e os descendentes de alemães, os moradores dos mangues e os moradores de cidades urbanas.
O filme faz parte de um projeto de pesquisa sobre brincadeiras infantis, do Instituto Alana e poderá ser assistido após cadastro na Videocamp (5).
Acompanhados pelos filhos, os documentaristas percorrem por mais de um ano, de Abril de 2012 a Dezembro de 2013, oito estados brasileiros numa viagem pelo universo infantil, apresentando com sensibilidade uma realidade expressa pelas crianças através da espontaneidade do brincar.
De norte a sul do Brasil, na geografia do brincar, são os jogos e as brincadeiras de rua, junto da natureza e ao natural, com fios, pedaços de madeira, galhos, tampas de garrafa, barro, facas, martelos, sucatas, utilizadas numa brincadeira experimental, criativa, artesanal, de acordo com os hábitos e os modos de vida de cada região e cultura, que transformam tudo numa grande e alegre invenção, a construção do brincar.
Os tablets e videogames não são o que motiva e prende a atenção das crianças, mas o balanço, a bola de gude, a sapata, as pipas, as petecas, os carrinhos de madeira, os carretéis, a gangorra, as construções criativas que através dos jogos e brincadeiras liberam as energias, transformam a realidade, organizam as emoções, promovem o desenvolvimento cognitivo e motor, a autonomia, a afetividade, a criatividade, a liberdade para criar e construir em estreito contato com a natureza.
Pés descalços, corpo rolando na areia, molhando-se na chuva, mãos habilidosas embalando bonecas, transformando pedaços de madeira em carros, em barcos, papel, fios e galhos em pipas, moldando o barro em bolos e comida como as feitas em casa.
Território do brincar não possui um enredo convencional. Prima pelo não-verbal, pela imagem que nos capta, nos abduz ao passado, a ingressar num voo imaginativo, um brincar conhecido, familiar. São imagens que despertam lembranças, que dão asas à imaginação, à fantasia, proporcionando uma emocionante viagem criativa, imaginativa.
É incontestável a influência da atividade lúdica na aprendizagem e no desenvolvimento infantil. A criança necessita brincar. Se ela não tem o brinquedo, ela encontra uma forma de brincar, ela usa o que estiver ao seu alcance, ela constrói com a sucata, molda com o barro, pula com os fios, qualquer coisa pode se tornar um brinquedo. A brincadeira pertence à criança. É pelo brincar que a criança ordena o mundo à sua volta, cria e recria seu mundo interno e externo, atribui sentido a eles, se apropria de conhecimentos que auxiliarão a lidar com o meio em que está inserida, reproduzindo em suas brincadeiras situações que vive nesse meio.
“O brincar está diretamente vinculado ao mundo infantil: a criança, no seu dia-a-dia, investe grande parte de sua energia nas atividades lúdicas. Ao observá-la, vê-se que tudo tende a se transformar em brincadeira.” Foi dentro dessa concepção que Winnicott (1975) afirmou que “a brincadeira é universal e própria da saúde, uma vez que o brincar facilita o crescimento.” (2. p.19)
Segundo as autoras (2) “a brincadeira infantil refere-se a uma atividade muito ampla, envolvendo níveis diversos que vão desde o brincar com o próprio corpo, passando pelo brinquedo livre, até chegar ao jogo estruturado”. (p.19)
No filme, as bonecas banhadas com cuidado, a partir de um ritual familiar, conhecido, irão dormir com “canções de ninar”.
As chefs de cozinha elaboram seus pratos com o talento culinário adquirido da observação-aprendizado-experiência caseira. Desenformar e enfeitar o “bolo de areia” requer habilidade.
As designers de moda vestem suas bonecas com maestria e disposição.
As noções de medida, profundidade, altura, distância, são exercitadas com maestria, brincando.
Os engenheiros “mirins”, civis, elétricos, navais, tem um upgrade caseiro, que lhes dá confiança para construírem seus carros, barcos, pipas que voam pilotadas através dos fios conduzidos por hábeis pilotos.
O que é descartado, poderá ser recuperado, reconstruído, recriado. A beleza não está na estética, mas na possibilidade de experimentar, transformar, criar, realizar, na satisfação e alegria da criação.
A fantasia corre solta, ancorando-se em realizações, na realidade da realização. A brincadeira não é apenas diversão, mas também um veículo que estabelece uma ponte elaborativa imaginária entre a fantasia, a subjetividade e a realidade.
A cultura é exercida através dos rituais conhecidos. A experiência lúdica se alimenta de elementos que vêm da cultura e essa influência começa no ambiente familiar. O Território do Brincar espelha os hábitos, os valores sócio-culturais, as normas, o modo de agir e pensar de um grupo social.
Ao longo de gerações a modernidade e o avanço tecnológico tem contribuído e influenciado as mudanças nas brincadeiras infantis.
Tem-se observado na atualidade, cada vez menos crianças brincando nas ruas. A insegurança, a violência, sem dúvida, criam barreiras, mas vale ressaltar que os pais têm se mostrado menos disponíveis a acompanhar as crianças nas brincadeiras tradicionais de rua-praças.
É inevitável traçarmos um ponto de contato com o brincar espontâneo e o “brincar tecnológico”. Do possível afastamento que os aparatos tecnológicos vêm ocasionando a possibilidade do brincar criativo, espontâneo, natural.
O “infantil ao vivo” (1), espontâneo, sem roteiro, favorecendo o simbólico, contrapõe-se ao imediatismo, o mundo “na palma da mão”, pouco ou quase nada construído, experienciado. Nos remete a dialogar com os dois mundos, o real e o virtual-digital, como muitas crianças brincam atualmente.
Que influência a tecnologia exerce no comportamento das crianças durante o seu desenvolvimento? Quais os impactos na saúde, no comportamento, nas vivências experienciais, no lúdico, nas relações sociais?
Entre os usuários de dispositivos eletrônicos, os chamados “nativos digitais”, é notória a predominância do público infanto-juvenil.
Assim como o acesso às diferentes ferramentas tecnológicas pode contribuir para o desenvolvimento de habilidades cognitivas, o uso desenfreado pode produzir efeitos nem sempre benéficos e conduzir ao isolamento, dependência, alterações no comportamento e nas relações interpessoais.
Quando jogamos estamos praticando um exercício de coexistência e de reconexão com a essência da vida. De acordo com Teixeira (3, p.49) a criança, ao brincar com outras crianças, encontra seus pares e interage socialmente, descobrindo, dessa forma, que não é o único sujeito da ação, e que, para alcançar seus próprios objetivos, precisa considerar que outros também têm objetivos próprios.
A escolha de comentar o Território do Brincar, após assistir o documentário, surgiu do impacto que me causou ver crianças de diferentes realidades, envolvidas nas mesmas brincadeiras, com similar disposição e, por outro lado, acompanhar na atualidade crianças com um cotidiano em transformação, com uma realidade de espaço e relações reduzidas, mas uma virtualidade sem limites muito determinados.
AUTORA
Eneida M. Fleck Suarez
Psicóloga \ Psicanalista da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre – Brasil (SPPA) \ Analista de Crianças e Adolescentes
E-mail – r_suarez@terra.com.br
REFERÊNCIAS
1. Guignard, F. (1997). O Infantil ao Vivo: reflexões sobre a situação analítica. Rio de Janeiro: Imago.
2. Kopp, A. et al (2016). Aspectos Teóricos Sobre o Brincar e o Jogar. In: Duarte, I. et al (2016). O Brincar e o Jogar. Compreendendo significados. Porto Alegre: Artes e Ofícios.
3. Teixeira, S. (2010). Jogos, brinquedos, brincadeiras e brinquedoteca: implicações no processo de aprendizagem e desenvolvimento. Rio de Janeiro. IN: MOREIRA, P. R. Psicologia da Educação. Interação e Individualidade. São Paulo: FTD, 1999.
4. Winnicott, D. W. (1975). O Brincar e a Realidade. Rio de Janeiro: Imago.
5. Videocamp – Território do Brincar – https://territoriodobrincar.com.br
FICHA TÉCNICA
Título original — Território do Brincar
Título inglês — The Territory of Play
Ano — 2015
Duração — 90 min
País — Brasil
Direção — David Reeks e Renata Meirelles
Roteiro — Clara Peltier e Renata Meirelles
Argumento — David Reeks, Ganddhy Piorski, Marcus Ferreira Santos, Renata Meirelles e Soraia Chung Saura
Produção — Estela Renner, Luana Lobo e Marcos Nisti
Produção Executiva — Juliana Borges
Coord. de pós-produção – Geisa França
Fotografia — David Reeks
Desenho de som – Dan Zimmerman
Som direto – Fernanda Guimarães, Fernanda Valdivieso, Francisco Bahia Lopes, Gabriel Staeger, Hugo Bodanski, Marcos Gatinho
Música — Artur Andrés Executada por Grupo UAKTI e músicas coletadas em campos das festas retratadas
Edição — Marilia Moraes
Línguas disponíveis – Português (legendas em inglês, espanhol e francês)
SINOPSE
O documentário assume o brincar infantil como narrativa que sustenta uma história na íntegra. Ao longo de vinte e um meses, diversas crianças e seus movimentos, foram representadas, revelando as variadas realidades do Brasil. O Território do Brincar é um trabalho de pesquisa, documentação e sensibilização sobre a cultura da infância e sua expressão mais genuína: o brincar.