O LABIRINTO DA ADOLESCÊNCIA — Into the Wild (2007)


— ANA BELCHIOR MELÍCIAS —

“Paradigmático da adolescência”(1), o filme entrecruza a dimensão mítica como travessia labiríntica, através da metáfora do mito de Teseu e o Minotauro (2), e a dimensão fantasmática da integração pulsional da sexualidade. Diferentemente da infância, a fantasia incestuosa e parricida tem agora os elementos para concretizar-se, propondo ao adolescente uma turbulenta re-significação a posteriori das configurações narcísica e edípica reativadas.

A palavra Into condensa a direção de uma trajetória mas também o movimento de imersão. Wild agrega a natureza pura (ambiente não habitado ou cultivado) e também o incontrolável (selvagem, indomável) da pulsão.

Baseado na história real de Christopher McCandless (4), narrada no diário da viagem até ao Alaska no início da década de 90, Sean Penn propõe-nos, com notável maestria, a angústia contratransferencial das emoções não só do adolescente como dos seus pais e irmã.

Entrelaçam-se ao mito as vicissitudes da adolescência enquanto ponte-travessia-trajetória da infância à idade adulta: a entrada no labirinto-adolescência pela necessidade de re-significar a origem e construir a identidade; o labirinto e a luta com o minotauro-pulsional e a sua desejável integração; e a saída que se tornará possível através do fio-de-Ariadne-bons-objetos-internalizados.

Na etimologia, trajectus significa passagem e transporte: o lugar onde há passagem, mas também o caminho e ainda a coisa levada além.

Trajetória, definida por Newton como linha retilínea ou curvilínea – circular, elíptica ou parabólica – torna-se relativa a um sistema particular de referência com Einstein. Posteriormente, o conceito de aleatoriedade ou princípio de incerteza de Heisenberg, apresenta o que os físicos atuais chamam de estados coerentes emaranhados (faixa de Moebius).

Poderíamos, “poético-cientificamente”, tomar emprestado da física a concepção de trajetória para pensar a adolescência como um “estado coerente emaranhado”?

Equilíbrio instável, um pé na re-significação da infância e outro projetando-se nas escolhas adultas, encontramo-nos num espaço potencial, intermediário e transicional, cuja trajetória (in)coerente será paradoxal, incerta, indeterminada, emaranhada.

Qual seria então a coerência desse estado, considerado por vários autores como ritual, crise, revolução, fratura, surto do id ou psicose transitória? Winnicott (3), considera-a “um tempo de alternância entre a independência rebelde e a dependência regressiva e a coexistência dos dois extremos num mesmo momento.”

As tarefas implicadas são da complexidade de um segundo nascimento: renunciar ao corpo infantil, abandonar a posição narcísica, suportar a ambivalência, integrar a bissexualidade psíquica, fazer o luto dos objetos de amor primordiais, integrar o renascimento do complexo de édipo e construir a identidade, através do amor objetal e da escolha profissional.

O adolescente, qual Teseu, entrará no labirinto emocional de lutos (experiência de vazio interior e renúncia) e paixões (sensação de completude), suspenso entre progressões e regressões.

Enfrentará o minotauro pulsional para integrar na organização psíquica, “o seu novo poder de destruir ou mesmo de matar, poder que, até então inexistente, não complicava os sentimentos de ódio na infância.”(3)

Nesse estado (in)coerente como se desemaranha o adolescente desse labirinto? De quais recursos lança mão para construir a sua identidade? Saberá (re)encontrar o caminho?

No mito, Ariadne dá a Teseu, a espada-paterna e o novelo-materno cujo fio lhe permitirá encontrar a saída do labirinto-claustro, de volta à luz.

A adolescência como travessia labiríntica, ritual de passagem e prova iniciática, será para o psiquismo: o teste entre o princípio de prazer e o princípio de realidade; o triunfo de Eros sobre Thanatos; a reorganização dos objetos internos em identificações egossintónicas e não alienantes; a autonomia através da independência relativa; a elaboração da ambivalência e integração da bissexualidade psíquica.

A ENTRADA

Anunciando a trajetória do filme e a da adolescência, como se do refrão de um coro grego se tratasse, é na festa de celebração da formatura, que Chris imagina os próprios pais a formarem-se e a casarem, buscando a verdade sobre a origem:

Quero ir ter com eles e dizer: Parem, não façam isso. (…) Mas não o faço. Quero viver. Pego neles como se fossem dois bonecos de papel, macho e fêmea e bato um contra o outro como duas lascas de pederneira como que para fazerem faísca. Digo-lhes: façam aquilo que vão fazer e eu o contarei.

Chris entra no labirinto com este poema onírico-fantasmático de Sharon Olds (I go back to May, 1937). Tenta apreender a transgeracionalidade e o interior enigmático dos objetos, enfrentando a esfinge e deparando-se com uma cena primitiva sádica — macho e fêmea pulsional-narcísico — de cuja faísca sente ter nascido.

Parafraseia Thoreau — “mais do que amor, do que dinheiro, do que fé, do que fama, do que justiça, dêem-me verdade” — conduzindo-nos a Bion.

Chris-Édipo inicia a sua errância into the wild em busca da verdade, passando de Chris a Alexander e de Super-man a Super-tramp, “um viajante estético, cuja casa é a estrada…”
Super…, resquício das idealizações narcísicas?
Tramp…, rejeitando os pré-conceitos e os papéis pré-estabelecidos?

O LABIRINTO

A universidade, foi o último tributo. Abandona tudo e parte em busca do seu verdadeiro self, longe do homem e em comunhão com a natureza selvagem e pura.

Não amo menos o homem, mas mais a Natureza (Lord Byron)

Atravessa erráticamente a América, passando pelo México, à boleia, a pé, de caiaque ou clandestinamente de comboio. Arranja empregos temporários. Relaciona-se com pessoas que encontra. Busca na literatura novos modelos identificatórios: Tolstoi (Family happiness and other stories) Jack London (The call of the wild) e Thoreau (Walden or life in the woods).

A sua errância retrata os sofrimentos próprios à adolescência, evocando os caminhos no labirinto: hesitações, progressões e regressões vão tecendo o fio significativo da trajetória, patente na divisão em capítulos que o próprio filme propõe — o meu próprio nascimento, adolescência, idade adulta, família e alcançar a sabedoria.

Antes do destino final, encontra um viúvo idoso e sábio. Como o ditado oriental, não lhe oferece o peixe e sim os instrumentos de pesca. Ensina-lhe ainda o seu ofício, e Chris crava-historicizando (espaço-tempo) a sua trajetória num cinto de couro. Fala-lhe do perdão-reparação-transformação da posição depressiva. E propõe adotá-lo, mostrando a importância das relações afetivas que se organizam em linhagens — familiar, social, profissional.

A LUTA COM O MINOTAURO-ALASKA

“Após dois anos de errância chega a última e maior aventura. A derradeira batalha para matar o falso ser no seu interior” (irmã em off).

Chris alcança o Alaska-minotauro.

Defronta-se com a natureza pura e revisita o misterioso e enigmático objeto. O encantamento com a beleza exterior é dissonante com a frieza desértica. E, sabemos com Borges, que o deserto é o maior labirinto…

Encontra e habita o icônico magic bus, in-corporando o ideal do bom selvagem, isolado de tudo e de todos por catorze semanas, caçando, pescando e colhendo bagas silvestres para se alimentar.

Constrói uma ponte exterior para atravessar o rio. E constrói pontes-ligações internas, através de leituras e da redação de um diário, objeto transicional entre o day-dreaming e o mundo objetal em transformação.

Utiliza defesas típicas da adolescência: isolamento; ascetismo inibidor da vivência pulsional; intelectualização; tendências masoquistas de esforço, dor e esgotamento.

Age a separação-luto interno, cortando com a família onde vivenciou continuamente a implosão-explosão da transgeracionalidade encriptada, acedendo ao desmentido traumautizante.

A SAÍDA

Como encontrará Chris a saída do labirinto-trajetória-adolescente? Do tal “estado de confusão emaranhado”?

Através das palavras de Tolstoi experiencia uma epifania, um insight integrativo, apercebendo-se do “que é preciso para ser feliz”: natureza, cultura, trabalho e amor. Pilares estruturantes do psiquismo adulto, dão conta da consolidação identitária entre pulsão e ego, entre pulsão de vida e de morte.

Chris, mais integrado, encontra finalmente a saída do labirinto.

Mas chegando ao rio, é obrigado a voltar e escreve: “Desastre. Travessia do rio impossível. Isolado pela chuva. Só. Assustado”. Surge a vulnerabilidade: emagrecido e pouco nutrido, nomeia a falta —“Tenho fome!” — entrando em contato com a dependência, frente ao cenário pseudo-ultra-independente.

Aprisionado no labirinto selvagem encontrará Chris o seu fio de Ariadne? Conseguiu na sua trajetória, reparar e transformar os seus objetos internos? Poderá neles confiar?

Confiança vem do latim confidentia, confidere, e significa acreditar plenamente, com firmeza. Como poderia Chris con-fiar, fiar/tecer internamente, na companhia de alguém, o seu próprio caminho? A con-fiança torna os pais fiadores dos filhos, pela revêrie e pelo holding na sustentação da turbulenta trajetória transitória da adolescência.

Chris entra no labirinto quando imagina a sua origem, o casamento dos pais. Percorre o labirinto-errância, lutando com o minotauro-pulsional-traumático. Tendo re-significado o que se encontrava cindido e forcluído, encontra-se pronto para sair.

Profundamente só, sem mantimentos nem forças para lutar. Escreve…

A felicidade só é real, quando é compartilhada.
Chamar cada coisa pelo seu nome.

Re-inscreve-se na sua matriz identificatória, triangularizando o seu nome próprio com os sobrenomes materno e paterno. Os objetos internos mais reparados, pode agora vincular-se amorosamente não mais ao macho e fêmea da díade narcísica, mas à mãe e ao pai numa boa cena primitiva e segue internamente este fio condutor de retorno…

E se eu estivesse a sorrir e a correr para os vossos braços? Veriam então o que eu vejo agora?

Na complementariedade inevitável entre o mundo interno e o externo, na ténue linha que une vida e morte, sem fiadores da sua trajetória adolescente, Chris perde o fio de Ariadne que, paradoxalmente, conseguiu construir internamente.

“Vivemos demoniacamente toda a nossa inocência” Herberto Hélder (6)

AUTORA
Ana Belchior Melícias
Psicanalista Associada da Sociedade Portuguesa de Psicanálise \ Analista de Crianças e Adolescentes \ Docente do Instituto de Psicanálise \ Formadora do Método Bick
E-mail — ana.melicias@gmail.com

REFERÊNCIAS
1. Melícias, A. B. (2015). Into the Wild: o labirinto da adolescência. Revista de Psicanálise da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre (SPPA) – Realidades e Ficções, XXII(3), 693–706. — Ídem. Revista Portuguesa de Psicanálise da Sociedade Portuguesa de Psicanálise (SPP), 35(2), 60–67.
2. Bayard, J.-P. (2003). Symbolique du labyrinthe sur le thème de l’errance. Paris: Huitième Jour.
3. Winnicott, D. (1993). A família e o desenvolvimento individual. São Paulo: Martins Fontes, p.117.
4. Christopher McCandless: https://www.christophermccandless.info
5. Filme: https://www.paramount.com › movies › into-the-wild
6. Hélder, H. (2013). Servidões. Lisboa: Assírio & Alvim.
7. Filme discutido no dia 15.11.2021 no Grupo Reflexão Adolescência & Cinema (2021-22) da Sociedade Portuguesa de Psicanálise, coordenado por Ana Belchior Melícias e Elsa Couchinho.

TRAILER

FICHA TÉCNICA
Título original — Into the Wild
Título português — Na Natureza Selvagem (BR) e O Apelo Selvagem (PT)
Ano — 2007
Duração — 148 min
País — E.U.A.
Direção — Sean Penn
Argumento — Sean Penn
Baseado — Livro Into the Wild de Jon Krakauer (1996)
Produção — Sean Penn, Art Linson, William Pohlad
Fotografia — Eric Gautier
Música — Eddie Vedder
Edição — Jay Cassidy
Figurino — Mary Claire Hannan
Elenco — Emile Hirsch, William Hurt, Marcia Gay Harden, Catherine Keener, Hal Holbrook, Kristen Stewart, Vince Vaughn, Jena Malone

SINOPSE
Chris McCandless, empreende uma errância de dois anos pelos E.U.A. cujo destino é o Alaska. O filme é baseado no livro homónimo, e este conta a história através do diário de viagem. Recém formado e destinado a ser profissionalmente bem-sucedido, cansado do materialismo e da hipocrisia familiar, sai em busca de si mesmo e da sua verdade. Expõe-se abertamente a muitas situações: belas paisagens naturais; perigosas aventuras; novas relações e amizades; trabalho para sobreviver; leituras e contemplação, numa trajetória que lhe vai permitindo insights sobre a essência da vida e lhe permite construir a sua identidade.