FERIDAS OU CICATRIZES? — Pain and Glory (2019)
— CINTIA BUSCHINELLI —
Som de um clarinete solitário. Acompanhamos, com nosso olhar de espectadores um caminho de ladrilhos no fundo de uma piscina. Na sequência, seguimos lentamente a extensa cicatriz que atravessa o peito de um homem. Uma linha reta, de alto a baixo, um tanto rosada, como se quisesse nos dizer que, além de tudo, ela é recente.
E nos perguntamos, seriam as marcas em nossos corpos, sentidas como atemporais? E uma vez lá, pulsarão como lembrança da dor?
E a cicatriz invisível, aquela que os olhos não alcançam, mas nossos sentimentos sim. Aquela que a vida, “a vida como ela é” como nos diz Nelson Rodrigues (1) se faz presente sem trégua.
Acompanhamos passo a passo a marca no corpo desse homem submerso na piscina, testando sua capacidade de respirar fora de seu habitat. A água azul estagnada dá lugar as águas turvas e movimentadas de um rio onde o encontramos na infância.
Mergulhamos naquele corte, e encontramos uma vida. A vida, ali traçada, como todas, com seus percalços, glórias e dores tal qual nos anuncia o título do filme.
Saímos do corpo e vamos para a memória, esta um corpo invisível, íntimo e particular. E assim começamos a compreender como aquela vida foi se construindo…
Nossa memória conta a história de cada um de nós como um filme, um longuíssima metragem que se constrói a cada dia. O mundo das recordações de todos nós, tingido por todas as cores possíveis. Mas, agora, estamos mergulhados no mundo de lembranças criado por Pedro Almodóvar.
As cores exuberantes, sua marca de identidade, estão lá como sempre. Mas, quem o conhece sabe que o mundo deste cineasta sempre nos fez rir de nós mesmos mostrando a vida pelo filtro tragicômico.
Não é demais lembrar que Almodóvar, diretor e de certa forma personagem do filme, não pôde estudar cinema, pois não tinha recursos para pagar os estudos. Antes de dirigir filmes, foi funcionário da companhia telefónica estatal, fez desenho em quadrinhos, foi ator de teatro avant-garde e cantor de uma banda de rock.
Mas, o Almodóvar de “Dor e Glória” é outro. Salvador, seu alter ego no filme é um homem triste, que não sorri e não nos faz sorrir. Um homem que sucumbiu à dor no corpo e faz uma viagem de volta ao passado, pequenos flashes, que poderiam, quem sabe, nos fazer compreender sua tristeza.
Em “Dor e Glória”, acompanharemos a vida de Salvador, desde seu início, em um vilarejo espanhol até o momento em que saberemos o porquê daquele extenso corte em seu corpo.
E não custa lembrar que uma cicatriz é o tecido novo que se forma durante o processo de cura de uma ferida.
As feridas, portanto, têm cura e as tristezas também.
AUTORA
Cintia Buschinelli
Psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP) \ Organizadora do Ciclo de Cinema e Psicanálise — Cinemateca de São Paulo (2012) \ Editora da Revista IDE (2009-2010) \ Editora Associada da Revista Brasileira de Psicanálise de São Paulo (2015-2016)
E-mail — cintiab@uol.com.br
REFERÊNCIAS
1. Nelson Rodrigues — escritor e jornalista, considerado o nome mais influente da dramaturgia brasileira. Seus enredos eram polêmicos, mesclando tragédia e humor.
FICHA TÉCNICA
Título original — Dolor y Gloria
Título inglês — Pain and Glory
Título português — Dor e Glória
Ano — 2019
Duração — 113 min
País — Espanha
Direção — Pedro Almodóvar
Argumento — Pedro Almodóvar
Produção — Agustín Almodóvar, Esther García
Fotografia — José Luís Alcaine
Música —Alberto Iglesias
Elenco — Antonio Banderas, Penélope Cruz, Asier Etxeandia, Leonardo Sbaraglia, Raúl Arévalo, Julieta Serrano, Nora Navas
SINOPSE
Veterano diretor cinematográfico, atravessa crise de solidão e inspiração e passa a refletir sobre as escolhas que fez na vida. Entre lembranças e reencontros, ele reflete sobre sua infância na década de 1960, seus processos de migração, seu primeiro amor maduro e sua relação com a escrita e com o cinema.