EM BUSCA DE UM MILAGRE — The Sound and Fury (1988)
— ELSA COUCHINHO —
“À medida que as nuvens avançavam fugazes em ondas sucessivas, as lúgubres vidraças acendiam-se e apagavam-se em fantasmagórica alternância” William Faulkner (1)
Através do nevoeiro da enorme crise social e económica dos anos 20 nos Estados Unidos, surge a história da decadência e desagregação de uma família, nesta obra maior da literatura, William Faulkner dá voz à apreensão subjectiva da realidade de diferentes personagens e os seus discursos estabelecem-se como um prisma que vai dissipando o nevoeiro, o mistério da sua tragédia.
“O Som e a Fúria” é também o título do filme de Jean-Claude Brisseau, um filme cujo ambiente sucessivamente onírico, fantasmagórico, místico e brutalmente real, nos desorienta, em que as cenas se sucedem como que emergindo do denso nevoeiro que é tudo o que desconhecemos sobre as personagens.
Brisseau constrói o argumento a partir da sua experiência como professor nos subúrbios de Paris. Ao longo do filme a cidade está omnipresente e distante, como se houvesse uma inversão entre o centro e a periferia, entre o que habitualmente se encontra iluminado e o que se encontra nas sombras. Nesta comunicação entre luz e sombra, individual e colectivo, periferia e centro, consciente e inconsciente, estabelece-se o curso da acção e de uma narrativa com sentido.
O jogo desta comunicação é parte da dinâmica da adolescência: construir um sentido para a existência individual (identidade própria) junto do colectivo familiar e humano; estabelecer um diálogo entre sexualidade infantil e sexualidade adulta; encontrar um lugar para os desejos e os sonhos numa realidade que não é feita à sua medida. Enquanto esta harmonia não se estabelece a experiência de fragmentação domina, trazendo uma enorme desorientação e incompreensão, e é com essa experiência que vamos assistindo a “O Som e a Fúria”.
Vemos Bruno chegar com o seu olhar triste e uma indumentária que nos faz duvidar se é uma criança vestida como um rapaz ou um rapaz vestido como um pequeno adulto, a dúvida da travessia da infância para a puberdade e desta para a adolescência.
Vindo de uma infância de negligência e abandono que se prolongam agora, chega sozinho do funeral da avó, à casa desconhecida da mãe que marcará a sua presença/ ausência ao longo de todo o filme com os recados escritos na parede.
Bruno carrega uma enorme gaiola com um pequeno pássaro. A sua parte infantil que lhe coube cuidar e preservar como um Super-Homem ao longo da infância, evocando os super-poderes necessários para sobreviver perante as experiências na casa de acolhimento e perante a ausência recorrente da mãe. Pequeno pássaro/ parte infantil da personalidade que a todos cabe preservar vitalizada ao longo dos diversos ciclos da vida.
Numa atmosfera onírica, Bruno fantasia o encontro com o materno/ feminino, em fantasmagórica alternância entre a ternura e o erotismo, ondas sucessivas de desejos infantis e de desejos púberes, impregnando-se mutuamente. Nessa atmosfera de conflito estético (Meltzer), emergem o anjo, a fada, a mulher e a santa, os diversos femininos que Bruno busca para ancorar a sua necessidade de amparo, de protecção e a emergência da sexualidade genital. A omnipotência infantil alicerça os objectos da fantasia com a força que a ausência de objectos reais alimenta.
Bruno vem habitar numa zona suburbana, uma paisagem desumanizada onde se “arrumam” os que não pertencem à cidade-luz e onde as sombras da exclusão e da negligência se adensam em cada detalhe: os elevadores avariados, os descampados abandonados e a escola para alunos sem futuro.
Observamos a falha sucessiva do ambiente familiar e dos ambientes em volta (pares, escola, comunidade) que se deveriam constituir como continentes que permitissem conter, nutrir e proteger o adolescente, fornecendo uma base sólida para a experiência da turbulência da adolescência.
Entre o ruído da puberdade, do desamparo e do luto, Bruno busca vínculos que lhe permitam sobreviver. A jovem professora emerge como a figura que contacta com a parte mais sensível de Bruno, traz-lhe a poesia onde esvoaçam aves que lhe são queridas e parece permitir-lhe escrever as composições onde vai organizando a narrativa da sua história feita de perdas e separações. É também um bom continente para a pulsão epistemofílica, dando suporte á descoberta de um mundo para além da gaiola limitada da infância, onde existem outros povos (chineses), a força da gravidade que agarra à mãe-terra os seus habitantes e a criatividade que permite que os aviões levantem voo.
Emerge também Jean-Roger, o seu vizinho e colega, com o qual procura um lugar entre os seus pares e o contacto com uma família com pais, tio, irmãos e avô.
Jean-Roger apresenta-se incendiando os tapetes do prédio, num misto de prazer e fúria, esvoaça pela história como um intocável, a lei dos homens não o alcança, apenas a lei da força bruta e omnipotente do pai. É uma fúria incendiária fruto da exclusão social e da exclusão do afecto privilegiado do pai.
Este é o adolescente para o qual não é possível tornar-se um rebelde, a rebeldia saudável e criativa da adolescência que busca a transformação da realidade herdada dos adultos para criar um mundo melhor. Jean-Roger é antes um revoltado e a sua revolta deixa um lastro de terra queimada à sua passagem. Ondas sucessivas de inveja destrutiva e de ódio arrastam-no para o território do agir atacando os vínculos criativos e amorosos entre objectos e os próprios objectos.
Jean-Roger é uma criança em busca da admiração paterna, constrói a sua identidade em torno da mimetização do pai, privilegiando objectos similares (o gangue e a sua líder), é uma criança num corpo de adolescente, corpo que confere à perversão e ao agir um enorme poder destrutivo. O seu destino é anunciado no início do filme com a citação de Shakespeare em “Macbeth” sobre o destino maldito dos que não reconhecem as leis humanas.
Imaginamos o irmão de Jean-Roger (Thierry), como uma criança que teve acesso a uma família que existiria antes da partida do pai para o cenário destrutivo da guerra (referência à guerra da independência da Argélia ou ao conflito entre o Chade e a Líbia?). Uma família que parece ter implodido com o regresso de Roffi (o pai), já não um operário dos arredores de Paris, mas um ex-combatente que perdeu toda a esperança quanto à possibilidade de paz e talvez de ascensão social.
Thierry projecta o seu futuro à luz da lei dos homens, com a força da pulsão de vida a prevalecer sobre a pulsão de morte: estuda, trabalha e ama. Com os seus investimentos afectivos, estabelece os vínculos que lhe permitem construir e criar.
Sob a ameaça de perder o seu primogénito para a lei dos homens, Roffi quebra o longo silêncio gerado pelos traumas da guerra e apresenta a sua narrativa que capta a injustiça e a exclusão social, revelando como os operários combatem as guerras dos senhores de Paris (do poder), mas que se elabora sob o signo da perversão: recusando a lei dos homens, reconhecendo apenas a lei do domínio e da submissão, a lei do mais forte.
“O Som e a Fúria” coloca-nos frente ao destino individual e colectivo delineado pela forma como se elabora e integra a exclusão (edipiana e social), os traumas das perdas e das separações (da infância e da guerra), perante a impossibilidade de elaboração e integração psíquicas ficamos face a ondas sucessivas de dor mental agida em direcção ao exterior (Jean-Roger e o pai Roffi) ou em direcção ao próprio (Bruno).
O pequeno pássaro de Jean-Roger preso na gaiola da perversidade e o pequeno pássaro de Bruno despedaçado na ausência de protecção fazem-nos pensar: qual será o milagre que evita a tragédia?
AUTORA
Elsa Couchinho
Psicanalista, membro associado da Sociedade Portuguesa de Psicanálise (SPP) e da International Psychoanalytic Association (IPA). Psicanalista da Criança e do Adolescente.
E-mail — elcouchinho@gmail.com
REFERÊNCIAS
1. William Faulkner, O Som e a Fúria, D. Quixote, Lisboa: 1994. pp 265.
2. Filme discutido no dia 13.12.2021 no Grupo Reflexão Adolescência & Cinema (2021-22) da Sociedade Portuguesa de Psicanálise, coordenado por Ana Belchior Melícias e Elsa Couchinho.
FICHA TÉCNICA
Título original -— De Bruit et de Fureur
Título inglês — The Sound and Fury
Título português — De Barulho e de Fúria
Ano — 1988
Duração — 95 min
País — França
Realização — Jean-Claude Brisseau
Assistente de realização — Edouard Girardet
Argumento — Jean-Claude Brisseau
Produção — Margaret Ménégoz
Fotografia -— Romain Winding
Som — Louis Gimel
Design de produção e Guarda-roupa — Lisa García
Maquilhagem — Florence Cossutta
Elenco — Bruno Cremer, François Négret, Vincent Gasperitsch, Fabienne Babe, María Luisa García, Fejria Deliba, Thierry Helene, Sandrine Arnault, Albert Montias, Aurélie Sterling
SINOPSE
Bruno muda-se para os subúrbios de Paris após a morte da sua avó, onde irá encontrar Jean-Roger um adolescente em fúria incendiária. Os dois debatem-se com a sua adolescência num ambiente de abandono e desamparo que os encaminha para a tragédia.