A FIGURABILIDADE em “SONHOS” de AKIRA KUROSAWA — Dreams (1990)

— JOÃO BAPTISTA N. F. FRANÇA —

O fim do século XIX presenciou duas grandes descobertas e revoluções culturais, o cinema e a psicanálise. O cinema foi uma evolução da arte da fotografia; esta começou no início do século e o cinema, que é a fotografia sequencial formando uma narrativa, só surgiu no fim do mesmo, com os irmãos Lumière. Esses irmãos trabalhavam com o pai, que era fotógrafo e industrial e conseguiram criar a adaptação que resultou no cinema, não tendo ideia do imenso alcance dessa nova arte.

No século XX ocorreu o florescimento e a grande expansão do cinema. O papel das notícias e novelas de rádio se transferiu para o cinema e o envolvimento dos ouvintes e espectadores tem como razões psicológicas principalmente a identificação com os personagens e suas histórias.

O cinema se presta a uma figuração exemplar do mundo interno e das relações deste com a realidade externa. Os sonhos foram comparados com um teatro da mente e nesta tela vemos uma projeção que, embora enigmática, é linguagem a que estamos familiarizados, como reflexo da vida cotidiana e da vida de fantasia.

O início da psicanálise ocorreu também em fins do século XIX, com os desafios terapêuticos; e se deu graças ao senso de observação, trabalho perseverante e criativo do seu inventor, Sigmund Freud; nosso pioneiro porém tinha noção da grande importância de sua criação, que se tornaria um grande enriquecimento científico e cultural do século XX, além da motivação inicial que perdura: o tratamento de adoecimentos psíquicos.

Freud dedicou-se a estudar a grande tela do interior da alma, onde se projetam sob forma de representações e imagens, personagens, conflitos, vivências e emoções.

O cinema foi uma grande realização cultural do século XX e com a fascinação que desperta, conjugou-se com o boom da nova teoria da mente, a psicanálise, que despontou no início do século.

Umas poucas palavras sobre Akira Kurosawa…

O cineasta japonês viveu de 1910 a 1999. Em sua obra, uniu influências da cultura oriental e ocidental. Ficou famoso ao trazer à tela a saga dos samurais. Conhecedor e admirador de grandes obras da cultura ocidental produziu versões de dramas shakespearianos; e em um dos episódios do filme “Sonhos”, traz uma bela imersão no mundo de Van Gogh acompanhado da musica de Chopin, representantes que são da pintura e música do Ocidente.

O cineasta tinha 34 anos quando Nagasaki e Hiroshima sofreram um bombardeio atômico. Alguns dos filmes de então refletiram suas inquietações; ele ficou envolvido com a destruição e horror da guerra. A seu modo, prosseguiu seu projeto de vida, que era fazer cinema, no meio a tudo que se desenrolava em seu país e no mundo: a guerra, a catástrofe nuclear e a rendição do país ao inimigo. Alcançou enorme sucesso com uma série de filmes sobre temas da antiga cultura japonesa.

Nos anos 70, admirador que era do cinema americano, tentou realizar um interessante e criativo desafio na produção conjunta do filme “Tora, Tora, Tora” (1970) sobre a visão binocular japonesa e americana sobre a guerra entre os dois países, mas abandonou pela metade a sua parte na produção do trabalho, que foi completado por outros cineastas.

“Sonhos” é um filme da última fase da vida atribulada e criativa de Kurosawa. Obra de 1990, compõe-se de oito sonhos, oito episódios que, ao que parece, foram sonhados de fato pelo próprio Akira.

Alguns deles referem-se ao universo da criança: o primeiro sonho — As raposas — é uma bela figuração da situação edípica. Outros versam sobre aspectos da vida adulta, como aventuras e o domínio da natureza, episódios sobre guerra e a consequência dos desastres nucleares; há dois sonhos muito belos e com muita cor, um deles sobre uma viagem ao passado e encontro com o pintor Van Gogh e o último, sobre uma sociedade pacifica, humanista e utópica vivendo em uma aldeia de moinhos d’água e encarando com naturalidade a vida e a morte.

A propósito do sonho-episódio “Corvos” sobre “Van Gogh”:
Neste sonho, nos deparamos com a insólita viagem para dentro de uma obra de arte e a visualização do diálogo com o personagem Van Gogh.

Este sonho é muito figurativo e expressivo na história, nos detalhes, nas cores da região da Provence no Sul da França, paisagem que encantou o artista, que lá morou até morrer.

Neste episódio, o cineasta constrói a estória de um estudante de arte que, ao ver um quadro de Van Gogh, entra no quadro e vive a experiência de encontro com o pintor. O talento e criatividade do cineasta e o feliz resultado na tela é mostrado na cena em que o estudante encontra as lavadeiras junto à ponte de Langlois.

Em 1888, Van Gogh pintou a obra, intitulada “A Ponte de Langlois em Arles”, também conhecida como “A Ponte em Langlois com Lavadeiras”.

A composição retrata uma ponte com uma pequena carroça amarela e um grupo de lavadeiras, um estudo no qual a terra é laranja brilhante, a grama é muito verde, a água e o céu azuis.

No episódio focalizado, elas dialogam em francês com o estudante e indicam o caminho para este encontrar Van Gogh que acabou de passar por ali. Mas ‘cuidado’, adverte uma lavadeira com um sorriso malicioso estimulado pelas colegas, ‘ele tinha acabado de sair do hospício!’

E o estudante atravessa a ponte e passa pelos cenários maravilhosos construídos como réplicas dos quadros do pintor.

A música que o acompanha neste trecho da caminhada é a primeira parte do Prelúdio Op.28 nº15 “Gota D’água” de Chopin, belo e tranquilo.

A seguir, Kurosawa, nos mostra o encontro com o personagem Van Gogh visualizado como se fosse “em carne e osso”, e interpretado pelo cineasta Scorsese, amigo de Akira.

Aos poucos a música vai se tornando mais reticente e na expectativa da aproximação e do encontro, o jovem vê ao longe a silhueta de Van Gogh e dele se aproxima.

E encontra Van Gogh, muito bem caracterizado e que fala inglês e não francês; nos outros sonhos, fala-se em japonês com legendas em outro idioma; coisas do diretor de um filme que alcançou mais sucesso até mesmo no Ocidente do que no Japão. O momento em que aparece Van Gogh na tela coincide com uma pausa, suspensão que nos faz prestar atenção ao clímax do encontro e a partir daí a narração se acompanha da segunda parte do Prelúdio da “Gota D’água”, muito mais dramática.

Esses detalhes veiculam significativas emoções. Junto à cor e à figurabilidade vemos o aspecto narrativo. Como em nossos sonhos, há uma história a ser contada e que desperta sentimentos e poderosas emoções estéticas.

O recurso ao hipertexto, próprio do cinema, foi ressaltado no filme de Woody Allen “A rosa púrpura do Cairo” (1985), no qual personagens e espectador saem e entram na tela. Este tratamento ocorre em nossos sonhos habituais, quando o impossível se torna uma possibilidade.

Na literatura, “Alice no País das Maravilhas” e “Alice Através do Espelho”, constituem exemplos conhecidos de mergulho em um espaço mágico e a experiência de viver uma outra realidade.

Um outro espaço, um outro tempo, e o contato com o pintor genial, perturbado e perturbador, possibilitado pela magia do cinema.

Nossos sonhos habituais representam quebra de barreiras, de identidades, rupturas no tempo e espaço, que Freud descreveu como as regras do processo primário.

Esta imersão em um espaço próprio que nem é o da realidade objetiva e nem é a do espectador é uma réplica feliz do que acontece com os processos primários e secundários do pensamento na criança e em momentos da vida adulta, como no sonho e em obras de arte; ressaltamos que o que importa é a presença concomitante e dinâmica entre os dois processos.

No consultório de psicanálise, os analistas tem acesso e como que entram no mundo interno dos pacientes.

Lá encontramos de tudo. Flores, tragédias, presságios, cenas de enorme valor estético, sensoriais, ora pungentes, ora parecendo banais; narrativas de experiências de toda a espécie.

AUTOR
João Baptista N. F. França
Membro Efetivo e Analista Didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP), da FEPAL e da IPA \ Docente do Instituto Durval Marcondes da SBPSP
E-mail — jb-franca@uol.com.br

REFERÊNCIAS
1. Dodgson, C. L. (pseudônimo: Lewis Carroll) (1865). As aventuras de Alice no país das maravilhas. Lisboa: Bertrand, 2010.
2. França, J. B. & Cortezzi, C. M. (2016). Sobre os Sonhos de Akira Kurosawa: “Você viu o que não deveria ter visto…”. Trabalho apresentado em Reunião Científica da SBPSP em 30/04/2016.
3. Sonhos (1990) de Akira Kurosawa, filme completo legendado em português – https://youtu.be/kP7uzkXEmyw
4. Corvos, excerto filme Sonhos (1990) – https://youtu.be/iWwZDBDWyQ

TRAILER

FICHA TÉCNICA
Título original — Yume
Titulo inglês — Dreams
Título português — Sonhos
Ano — 1990
Duração — 119 min
País — Japão
Direção — Akira Kurosawa, Ishirô Honda
Argumento — Akira Kurosawa
Produção — Mike Y. Inoue e Hisao Kurosawa
Fotografia — Kazutami Hara, Takao Saitô e Masaharu Ueda
Música — Shinichirô Ikebe
Direção de Arte — Yoshirô Muraki e Akira Sakuragi
Elenco — Akira Terao, Toshie Negishi, Mitsunori Isaki, Mitsuko Baisho, Mieko Harada, Toshihiko Nakano, Yoshitaka Zushi, Chosuke Ikariya, Chishu Ryu, Martin Scorsese (Vincent Van Gogh), Mieko Suzuki, Hisashi Igawa

SINOPSE
O filme apresenta oito sonhos/episódios que, embora independentes, são cenas ou narrativas com alta densidade metafórica, que focalizam o desenrolar da vida. São eles os seguintes, pela ordem: 1. A raposa — 2. O jardim dos pessegueiros — 3. A nevasca — 4. O túnel — 5. Corvos (Van Gogh) — 6. Monte Fuji em vermelho — 7. O demônio chorão — 8. Povoado dos moinhos.
Nos diversos sonhos, a linguagem se expressa com narrações nas quais se podem ler aspectos de pensamento primário descritos por Freud, como na linguagem dos sonhos. A figurabilidade se impõe em todos eles, uma linguagem onírica, que ao contrário dos sonhos se acompanha de expressivas cores e nuances de cor. O tratamento musical aparece no início de diversos sonhos, com musicas orientais e um clímax de suspense e angústia; segue-se uma mudança de clima quando o cineasta opta por melodias ocidentais, românticas, mas que perdem a força dramática. A referência a arquétipos, o recurso ao hipertexto e a beleza da obra como um todo encantam o espectador.