FOLIE-A-DEUX — Heavenly Creatures (1994)
— ANA BELCHIOR MELÍCIAS —
‘Criaturas celestiais’, ‘Amizade sem limites’ e ‘Almas gémeas’, são os títulos romanceados do filme realizado através dos diários de Pauline Yvonne Parker (Melanie Lynskey) com 15/16 anos, entre 1953 e 1954, cuja amizade com Juliet Marion Hulme (Kate Winslet) culmina numa improvável e aterrorizadora tragédia, numa pacata cidade neozelandesa com o irónico nome de Christchurch.
Soma-se a intrigante e enigmática letra inicial coincidente nos nomes dos pais de ambas: Honorah e Herbert (Pauline) Hilda e Henry (Juliet). Enunciará o vínculo H(hate), originariamente ali encriptado?
A história é real e, como tal, desprotege-nos face à estranheza familiar (2), sem que consigamos escudar-nos no conforto do “ah, é imaginação…” das narrativas ficcionadas. A realidade é sempre mais hedionda, cruel e terrorífica do que a literatura ou o cinema podem conceber.
Os roteiristas, fascinados pelo uncanny (2), mergulham desassossegados na reconstrução ‘obsessiva’ dos fatos, dos lugares, entrevistam pessoas que conheceram as protagonistas e buscam nos inúmeros casts a maior semelhança física.
Para recriar o universo paralelo imaginado por Pauline e Juliet, o realizador, permite-se “abusar de todos os tipos de recursos” (1), criando um universo paralelo cinematográfico repleto de imagens surreais-oníricas, homenageando ainda os seus ícones do cinema e da música.
Pauline e Juliet tecem um devaneio de terror crescente, repetitivo e claustrofóbico onde se vão aprisionando uma à outra e uma na outra. Negam a separação sem conseguirem aplacar a angústia e, contrariamente, fermenta uma folie-a-deux, também conhecida como ‘psicose compartilhada’: cada uma potencia as partes primitivas da outra. Armadilhadas na própria teia, sentem excitando-se, criam esterilizando, imaginam agindo.
O filme começa com um filme. Publicita uma idílica cidade do interior nos anos 50, puritanamente ‘limpa’ dos difíceis lutos do trauma coletivo da II Guerra Mundial ainda a ressoar.
Segue-se, abruptamente, o sumário condensado em três “frases” cinematográficas dos três atos-chave deste drama: o desespero traumático na corrida desenfreada das adolescentes seguido, a P&B, do (in)feliz desejo de simbiotização, de não-separação no navio e, finalmente, a en-carnado, grandes planos dos rostos ensaguentados a pedir ajuda.
Algo terrorífico aconteceu…
Vítimas ou algozes?
Do terror passamos ao rigor do escudo no chão à entrada da escola onde as duas se conheceram — sapientiae et veritas. A civilização e os seus mal-estares…
Pauline, de caracóis negros, entre meninas loiras na escola que lhe permitiria expandir o seu meio sócio-cultural. Os pais, de classe média baixa, alugam quartos, condição que muito a envergonha, incapaz de empatizar com o sacrifício envolvido. Família afetiva, sem aconchego familiar: os hóspedes devem ser priorizados. O segredo da fuga aos dezassete anos da mãe, grávida de Pauline, e o não casamento dos pais, atestam uma ‘bastardia social’ figurada no sobrenome, apenas materno. Forcluído o nome do pai…
Juliet, loira, como todas as meninas loiras daquela escola, desafia altivamente essa rigidez. Fá-lo à sombra do privilégio da sua família de classe média alta. Mudaram funcionalmente de Inglaterra para a Nova Zelândia, cujo clima ameno favoreceria a saúde da filha sem chegar, no entanto, a amenizar o ambiente familiar disfuncional. O pai, reitor da universidade e a mãe “terapeuta de casal” sem alcançar, na sua deep therapy, o mal-estar do seu casamento. Juliet escancara o (des)amor dos pais desvelando o segredo: o amante da mãe e o consequente divórcio.
As clivagens propiciadoras do funcionamento psicótico, adensam-se:
Pauline, rebelde, desmancha-se com o amor ideal cantado por Mario Lanza. Solitária, sem amigos, tímida, com gosto pela leitura e escrita (diário), expressa o seu sofrimento pela hostilidade de teor mais esquizóide.
Juliet, irreverente e arrogante, excessivamente imaginativa, expressa a dor regressivamente, desorganizando-se e somatizando. Em fuga para a frente, o seu eu-ideal-Antoinette, apresenta um colorido mais maníaco.
Unem-se ‘corporal-mente’, pelas cicatrizes no corpo e na alma. Pauline sofreu várias cirurgias por uma osteomielite severa carregando uma visível cicatriz na perna. Juliet, além da invisível cicatriz no pulmão, por uma grave tuberculose, tem tatuada na alma a separação, por 5 anos, dos pais.
Unem-se por traumas precoces não mentalizáveis.
Os conflitos típicos da adolescência são vivenciados pré-genitalmente. A sexualidade é vivida em termos infantis através de excessivas e excitadas corridas pela floresta, longe da descoberta adolescente do corpo – seu e do outro – consequente ao luto da infância. A intensidade da amizade, tende à simbiose fusional, e não à integração da homossexualidade na constituição da identidade sexuada e da bissexualidade psíquica. As identificações adesivas, não permitem a diferenciação e o funcionamento verdadeiro, em gesto espontâneo, do self. A idealização sacraliza-se no altar aos ídolos (atores e cantores). Escrevem um romance e romanceiam a realidade, atribuindo-se super-poderes sem possibilidade de pensar, transformar e integrar as histórias pregressas e progredirem. O habitual diário-continente da construção da identidade, torna-se um lugar de planos perversos e conspirações maquiavélicas para afastar o “terceiro”, que se opõe à simbiose promovendo a separação. Engendram fugas roubando valores, escondidos debaixo da cama, como nas inconsequentes aventuras infantis.
Não concordam em discordar, matam na fantasia — Juliet o padre e Pauline o psiquiatra — e descartam, tanto a culpa pela moralidade super-egóica como a vulnerabilidade pela necessidade de apoio.
Vangloriam-se de terem descoberto a chave para entrar no ‘Quarto Mundo’ — portal para as nuvens — que descrevem como “uma espécie de paraíso, só que melhor, sem perguntas. Um paraíso absoluto de música, arte e puro prazer.” Sem o princípio de realidade e, portanto, sem a possibilidade da imaginação. Sem perguntas-curiosidade ou dúvidas-incerteza resta-lhes a tirania, o anti-sonho.
Nos antípodas do funcionamento criativo em tri e tetradimensionalidade, o ‘quarto mundo’ constitui-se antes como portal para a “loucura” progressiva em bidimensionalidade.
O reino de Borovnia será o lugar do “romance familiar” (3) para o qual fogem quando se deparam com os limites da realidade e da alteridade. ‘Vão-se embora pra Passárgada’…(4) Lá podem ser irmãs, amantes, casal, homens e/ou mulheres, reis e rainhas, enquanto a Família Real e a família real vão sendo desprezadas.
Os personagens multiplicam-se/fragmentam-se e vão assumindo diversas identidades fantasiadas/simbiotizadas. Juliet passa a ser Deborah. Pauline, chamada Yvone em casa, passa a ser Charles ou Gina e torna-se “filha adotiva” da família de Juliet/Deborah, tão mais idealizada, quanto mais inferiorizada se sente.
Passam a viver obsessivamente dentro do romance que escrevem. A ferida narcísica/edípica é encenada. Não são elas as excluídas, e sim as que têm um bebé, teatralizando o parto. E o fruto desse acasalamento enlouquecido e enlouquecedor – Yellow – “tem 10 anos e já matou 57 pessoas e não quer parar…” Não quererá parar de agir a zanga pelos abandonos sofridos na sofrida roda da compulsão à repetição? Testemunhamos o funcionamento das partes psicóticas da mente a invadir perversamente as partes não-psicóticas? O que deve ser atacado e aniquilado? A realidade, a ligação, o pensamento?
O maior obstáculo à loucura é a mãe de Pauline: a parte que discrimina, a que corta o conluio das partes doentes fusionais não permitindo que a filha parta com a família de Juliet, a que se emociona devastada quando percebe o drama que se instalou, a que alimenta a filha num gesto de sentida ternura e diz não ter esquecido o seu sofrimento. Lembrar para não repetir.
A adolescência, como “doença transitória”, solicita aos pais que a ela resistam. Mas, assim como entre saúde e doença mental a linha é tênue e a oscilação incessante, entre a salutar não interferência e a eventual abandónica negligência (5) também os contornos se tornam difusos, exigindo um trabalho de rêverie parental: a construção de um espaço de tolerância e diálogo. Sem ele, a complementariedade da folie-a-deux mina o potencial amoroso do pensamento e acentua-se o funcionamento regressivo, esquizo-paranóide, conspiratório.
Os personagens saem da tela e perseguem Pauline e Juliet e nós, perseguidos pela intensa negação da realidade, prenunciamos a tragédia. Um filme de terror – The third man (1949) – é invocado. Mas o “third” não cumpre a função de separação-mediação. Evoca sim o horror da confusão-difusão entre fantasia e realidade, verdade e mentira, vida e morte.
O anel, elo entre as partes não-psicóticas e as partes psicóticas da mente, transborda da realidade para dentro de Borovnia e quebra-se instalando a ruptura. Contratransferencialmente ecoa a música “o anel que tu me deste era vidro e se quebrou / o amor que tu me tinhas era pouco e se acabou”.
E é justamente a pedra do anel quebrado, que a mãe de Pauline encontra no “passeio final”, enquanto toca o belíssimo Coro a Boca Chiusa de Puccini.
De boca fechada, uma harmonia é entoada.
De boca aberta, um silêncio abismal é detonado… pela violência simbólica do matrícido. Matar a origem da vida…
E solta-se o grito pelo que não foi elaborado na infância e pela maior das angústias, a de separação.
Grito a P&B, pela dor da inevitável separação no navio, convocando as dores e separações anteriores.
Grito a cores, en-carnado e ensanguentado, tingindo o inominável crime e fazendo-se palavra: Help!
O choque de qualquer crime, só se torna pensável como surto psicótico: o terror sem nome da passagem ao ato do trauma impossível de simbolizar.
AUTORA
Ana Belchior Melícias
Psicanalista Associada da Sociedade Portuguesa de Psicanálise \ Analista da Criança e do Adolescente \ Docente do Instituto de Psicanálise \ Formadora do Método Bick
E-mail — ana.melicias@gmail.com
REFERÊNCIAS
1. Filme discutido no dia 21.03.2022 no Grupo de Reflexão Adolescência & Cinema (2021-22) da Sociedade Portuguesa de Psicanálise, coordenado por Ana Belchior Melícias e Elsa Couchinho.
2. https://50anosdefilmes.com.br/2014/almas-gemeas-heavenly-creatures/
3. Freud, S. (1919). O Estranho in Freud, S. (1976). História de uma neurose infantil e outros trabalhos (1917-1919): Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, Vol. XVII (Vol. 17). Rio de Janeiro: Imago. pp.273-314.
4. Freud, S. (1909[1908]). Romance Familiar in Freud, S. (1976). “Gradiva” de Jensen e outros trabalhos (1906-1908): Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, Vol. IX (Vol. 9). Rio de Janeiro: Imago. pp.241-247.
5. Bandeira, M. (1930). Vou-me embora pra Pasárgada in: Libertinagem. Global.
6. Sabbadini, A. (2014). Moving images: psychoanalytic reflections on film. (The New Library of Psychoanalysis & L. Institute of Psychoanalysis, Eds.). Hove, East Sussex, UK: Routledge. pp.61-64.
FICHA TÉCNICA
Título original — Heavenly Creatures
Título português — Amizade sem Limites (PT) e Almas Gémeas (BR)
Duração — 99 min
Ano — 1994
País — Nova Zelândia
Realizador — Peter Jackson
Roteiro — Fran Walsh e Peter Jackson
Fotografia — Alun Bollinger
Música — Peter Dasent
Edição — Jamie Selkirk
Figurino — Ngila Dickson
Produção — Jim Booth
Elenco — Melanie Lynskey (Pauline) – Kate Winslet (Juliet) – Diana Kent – Sarah Peirse – Clive Merrison – Simon O’Connor – Jed Brohphy – Peter Elliott – Gilbert Goldie
SINOPSE
Pauline Parker e Juliet Hulme conheceram-se na escola de uma pacata cidade neozelandesa nos anos 50. Tornaram-se grandes amigas e criaram um romance cheio de personagens e fantasias onde passaram mais e mais a viver obsessivamente, afastando-se da realidade, até culminar na conspiração de um crime cruel que chocou o mundo.
Por serem menores, não foram condenadas à taliónica pena de morte e cumpriram ambas penas de cinco anos de prisão. Juliet (como Anne Perry) mora na Escócia, escreveu 80 livros de mistério e criou dois personagens detetives que aparecem em 49 deles. Pauline (como Hilary Nathan) mora em Kent, tornou-se católica devota, dirigindo uma escola de equitação para jovens numa fazenda e dedicando-se a crianças com necessidades especiais.