METAMORFOSE DE UM SEGREDO — History of a Secret (2003)

— ANA BELCHIOR MELÍCIAS —

Não há nada em que paire tanta sedução e maldição como um segredo. (Kierkegaard)

Multifacetado e caleidoscópico, o segredo faz emergir diversos planos oscilantes entre o fenomenológico e o “meta-psico-lógico”: o silenciado e o expresso, o atual e o originário, o bendito, o mal-dito, o não dito, o inter-dito.

Como linguagem metafórica e metonímica, o segredo configura uma metapalavra, alicerçado no espaço intermediário-paradoxal cujos elos associativos criam atmosferas emocionais ambivalentes.

Na sua dimensão subjetiva, constituinte da alteridade, protetor da integridade narcísica, da intimidade do sujeito, inalienável ao funcionamento psíquico como espaço separado de pensamento, é ressaltado como “direito ao segredo”.

Já o segredo, na sua dimensão intersubjetiva, determina e é determinado pelos abrangentes vértices da teia de relações: seja no âmbito psicanalítico (secreto), como lugar inconsciente-onírico-mítico-originário, com a sua vida fantasmática; seja no âmbito fenomenológico (segredo) “…o que se recusa por razões morais; tudo o que toca à sexualidade e seus interditos; a dor, o luto, a morte, a loucura, o ridículo, os golpes do destino, as fraquezas, a doença, passados difíceis, origens humildes ou sórdidas são outros tantos fatos escondidos.”(1)

A própria psicanálise é a história da descoberta do funcionamento ‘secreto’ do psiquismo.

Da intricada relação entre segredo e funcionamento psíquico (1), sobressai o mito fundador de Édipo, onto-filogenéticamente, como história de um triplo enigma a ser decifrado: a própria esfinge em si mesma “um enigma que propunha enigmas”(1); o enigma proposto a Édipo, cunhando as diferentes etapas da evolução; e, transversal à tragédia, o enigma que lhe foi subtraído: “Ele não sabe que não sabe.” (1).

Será a apropriação da herança, que define o trabalho do psiquismo? Como poderá uma pessoa, que não sabe que não sabe, compor o lugar da sua origem?

Visitaremos assim: o segredo (consciente-moral ou inconsciente-transgeracional), o tabu (mito fundador) e a lei (interdito/ cultura/ social).

Entre o filme e o documentário, o autobiográfico e o ficcional, o segredo e a revelação, entre Mariana e a irmã Isabel, entre Mariana e o pai, tudo se desenrola no espaço potencial intermediário.

Mariana empreende uma viagem de historização — de reencontro com uma mãe onipresente pela ausência, através da revelação do segredo guardado pelo pai — como se entrasse no espaço analítico de (re)construção e transformação, espaço de uma metamorfose e suas vicissitudes.

Não deseja expor o espectador ao conteúdo do segredo, mas que ele a acompanhe emocionalmente e com ela ‘viva a experiência singular deste segredo e da sua revelação‘. (3)

Tal como uma dupla analítica, entramos com Mariana num carro. Não sabemos o destino. Dia chuvoso e cinzento, de paisagens sombreadas, por estradas secundárias e vilarejos estreitos. No horizonte recortada a torre de uma igreja e uma placa — Tribehou — dispara deslizantes associações: tribu où?, ‘tribo onde?’, ‘de que tribo?’, ‘qual tribo?’ Linguagem enigmática, como a do bebé com a mãe, a ser transformada em linguagem simbólica do mundo da cultura. Por enquanto as palavras ‘Notre Dame de Tribehou‘ pré-figuram o enigma…

A atmosfera nostálgica da ausência é perpassada por uma luz tênue, como nos consultórios. Os cenários são íntimos, continentes. A temporalidade alongada, perlaborativa. Os diálogos modulados pelo silêncio. Os lugares são os da infância, na esperança de que se solte algum fio do novelo da recordação.

É o apartamento habitado pela família até à morte da mãe, que Mariana transformará em casulo para dar início à metamorfose da revelação do segredo. Esvazia-o, pinta-o de branco: tela para a criação/reconstrução do cenário da vida da mãe, do cenário da sua vida com a mãe.

Nesse trabalho artístico-analítico, Mariana busca testemunhos, fatos e acontecimentos. Num abismo de perguntas vai figurando diferentes enfoques da história levando a simultâneos rearranjos desta.

GÉNESE
O que leva uma criança a inibir o impulso epistemofílico e deixar de perguntar? Mariana não perguntava diretamente, mas, lembra a tia: ‘uma vez estavas sentada ao meu colo […] e muito docemente, surgiu nos teus lábios a palavra “mamã”. E disseste, “mamã, mamã, mamã…’ Durante o filme, Mariana refere-se à mãe pelo nome próprio desta e a palavra ‘mamã’, não sendo evocada, reforça o fantasma da sua ausência, silenciando a dor da orfandade.

MNEMOSINE
Isabel a irmã mais velha tem sete anos e meio quando pergunta à avó (imperturbável) se a mãe morreu, e comunica (desesperada) à irmã Mariana de seis anos que não se lembra e nunca procurou saber. Observamos a dinâmica do recalcamento e da clivagem e seus efeitos amnésicos. Isabel, ‘convencida de que temos que conhecer o nosso passado para construir o nosso futuro’, fez o seu luto através de uma análise.

PERGUNTA ADORMECIDA
Mariana, em busca da memória, continua a sua peregrinação e visita a avó-‘personagem do próprio adormecimento da pergunta em si’, que parece intuir ser a história mais larga, ao dizer-lhe: ‘faz como eu, dorme’. Avó-fada, adormecendo o reino na tentativa de impedir que os fantasmas do segredo invadam o quarto do bebé? Sono sem sonhos… mas na parede, um quadro assinado: Clotilde Vautier, 1965.

FOTOGRAFIAS
‘O espectador procura-a e, sem saber, passa por aquilo que passei’, ao tentar identificar o rosto de Clotilde em fotografias… Angustiados como as crianças que, tantas vezes na clínica, nos comunicam o terror de não conseguirem guardar a imagem da mãe ou do pai que se vão diluindo no nevoeiro da memória.

IMAGINAR
As duas irmãs rememoram as lembranças e sonham o reencontro com a mãe perdida. Descobrem um vestido da mãe. Mariana deseja senti-la/vesti-la como segunda pele a abraçá-la, mas não lhe serve. A Isabel serve, mas ela não o deseja vestir.

LUTO
O luto adiado, revivido oniricamente, mobiliza o diálogo interno de Isabel. Passa a “falar com ela” e a mãe hospeda-se no seu mundo interno, protegendo-a e guardando-a, como um bom objeto internalizado.

NEGAÇÃO
Entre a sede de conhecimento (K+) de Mariana e o filistinismo (K-) de um amigo — ‘Não to direi. Nunca! Nunca!’ — as resistências ao novo surgem: sabe o segredo, mas nega a revelação, insuflando a violência do ocultado.

CHAVE
Mariana encontra-se com “[…] um pai devastado pela culpabilidade. Fala com verdade emocionada da perda ainda aguda da mulher que amou e porque interditou o acesso das filhas à mãe: por medo, provavelmente, que isso vos levasse a fazer perguntas às quais eu ainda não estava pronto nem preparado para responder.” (3)

METÁFORA
Mariana entra no apartamento onde morou com os pais até aos quatro anos e meio, casulo tecido para a metamorfose. Retira do armário os quadros “ao mesmo tempo que as circunstâncias da sua morte” (3) reanimando assim a presença de Clotilde.

Convida pessoas ligadas à vida e à obra da mãe, recriando e reanimando essa ausência, tentando recuperar a atmosfera emocional que ali se viveu, para através dela aceder e imaginar o interior da mãe.

Uma modelo fala da voz da mãe, do clima familiar vivenciado e do casal amoroso. Quando chega a vez do pai lá entrar, ele olha com Mariana um quadro – casal nu a abraçar-se – ‘feito no quarto’, como lhe conta, em que posou para Clotilde. Confirma-se a boa cena originária. Estão agora criadas as condições —at-one-ment— para a co-construção da revelação, para o nascimento da verdade e o insight transformativo.

REVELAÇÃO
A cinquenta minutos do início do filme Antonio Otero conta, com dor lancinante o que levou a sua mulher à morte. Entrelaça no seu discurso a perspectiva interna-subjetiva e a perspectiva histórico-social. Fala da sua inevitável culpabilidade e da evitável culpabilização social; do desamparo familiar; da morte imprevista e traumática, desencadeando um luto “sigiloso”, enquistando o trauma e o tabu; fala-nos de Clotilde ter morrido aos 28 anos envolta em secretismo, enquanto ocorria a sua vernissage.

INTEGRAÇÃO
Mariana sente que ‘o silêncio em torno das circunstâncias reais da sua morte é a negação real da sua memória’ e não quer perpetuar o pacto de silêncios. Não deseja instalar-se na mal-dita “casa assombrada” do não-dito, agora que ela sabe que não sabia.

METAMORFOSE
Empacotam os quadros, um a um, como se de um ritual fúnebre se tratasse. Mariana e o pai seguem de carro, solene e silenciosamente em cortejo, atrás de uma “van” que transporta o corpo artístico de Clotilde. Absorvidos no trabalho de luto, transformam o espaço interno de encerramento em abertura, de enterro em renascimento.

No último dia de filmagens, temendo perder essa última oportunidade e apercebendo-se ser a palavra o fio privilegiado de ligação à vida — nos antípodas do silêncio mortífero da pulsão de morte —, Antonio dá à filha “as últimas palavras da mãe”: ‘E este barco, para onde vai?’ Clotilde pressente a aproximação da Barca de Caronte. Mariana, no sentido inverso, corta o fio que liga o segredo à morte com o filme que ‘se tornou um local de encontro ou uma passagem entre os vivos e os mortos’.

RE-NASCIMENTO
Reunidos os quadros de Clotilde, Mariana prepara uma exposição: a vernissage a que a mãe não compareceu. Retoma o fio da vida interrompido pelo segredo. O casulo foi rompido. A galeria é agora ampla, luminosa e curvilínea, de acordo com a vida e com a flexibilidade do espaço mental e relacional do fim das análises.

Mariana, Antonio e Isabel reúnem-se com Clotilde, reapropriam-se da sua melodia interna – a música preenche a cena -, do corpo artístico de sua obra e do corpo feminino por ela retratado. A música em off, guarda a intimidade da família.

A vida origina-se num espaço de privacidade. Revelado o segredo, têm finalmente “direito ao segredo”.

E o que é silenciado no segredo? Não serão precisamente os mistérios da sexualidade, do amor e do ódio?

Clotilde pinta essencialmente o corpo desnudo da mulher. O nu tem suas origens na experiência infantil e, tal como o segredo, será sempre uma área mítica e misteriosa, de inquietante estranheza e estranha familiaridade.

A obra, pele psíquica artística na qual Clotilde pode finalmente habitar, não mais como mãe-fantasma do não-dito, mas agora como

mãe—Clotilde, circulando livremente no espaço psíquico da sua família e,

pintora—Vautier, transitando no espaço cultural e social.

Quebrando o silêncio e inserindo-o numa dinâmica de re-conhecimento e de sentido, como aliás acontece no processo analítico, Mariana metamorfoseou-se.

AUTORA
Ana Belchior Melícias
Psicanalista Associada da Sociedade Portuguesa de Psicanálise \ Analista da Criança e do Adolescente \ Docente do Instituto de Psicanálise \ Formadora do Método Bick
E-mail — ana.melicias@gmail.com

REFERÊNCIAS
1. Melícias, A. B. (2015). História de um Segredo: vicissitudes de uma metamorfose. Ide São Paulo, 38 [60]: 41-57. Outubro 2015.
2. Otero, M. (2003). Filme-documentário: História de um segredo. Press Book “History of a Secret”. Paris: Archipel 33>35 (www.archipel33.fr). Dossier de Imprensa “História de um Segredo”. Lisboa: Clap Filmes (www.clapfilmes.pt) / Leopardo Filmes (www.leopardofilmes.com). (Título original: Histoire d’un secret).
3. Lequeret, E. (2003). Dossier de imprensa “História de um Segredo” de Mariana Otero, Cahiers du Cinema / Clap Filmes (www.clapfilmes.pt) / Leopardo Filmes (www.leopardofilmes.com).

TRAILER

FICHA TÉCNICA
Título original — Histoire d’un Secret
Título inglês — History of a Secret
Título português — História de um Segredo
Ano — 2003
Duração — 95 min
País — França
Direção — Mariana Otero
Argumento — Mariana Otero
Produção — Denis Freyd
Fotografia — Hélène Louvart
Música — Michael Galasso
Edição — Nelly Quettier
Elenco — Jean-Jacques Vautier, Thérèse Vautier, Jeanne Vautier, Isabel Otero, Antonio Otero, Mariana Otero

SINOPSE
Por Mariana Otero: “Quando tinha quatro anos e meio a minha mãe desapareceu. A nossa família disse-nos, a mim e à minha irmã, que ela tinha ido trabalhar para Paris. Um ano e meio mais tarde, a nossa avó confessava-nos que ela tinha morrido numa operação ao apêndice. Durante a nossa infância e adolescência, o nosso pai nunca nos falou dela, a não ser para nos dizer que ela tinha sido uma pintora e uma mulher extraordinária. Fechou os quadros dela num armário e arrumou as fotografias numa gaveta, que nos proibiu de abrir. Quando o nosso pai se decidiu finalmente a falar-nos da nossa mãe, foi para nos revelar as verdadeiras circunstâncias em que ela morreu. Esse segredo que ele guardou durante 25 anos sozinho tinha-o impedido de nos falar da sua vida e de nos mostrar a obra dela. Ao quebrar esse tabu ele devolveu-nos a nossa mãe. Senti então a necessidade de reconstruir esta história e reencontrar aquela que me tinha sido duplamente roubada pela morte e pelo segredo. Ela era pintora, eu sou cineasta. À falta de lembranças, são os seus quadros que podem, com o cinema, conduzir-me até ela.”