ESSA NÃO É MINHA HISTÓRIA — Coco (2017)
— NILDE PARADA FRANCH —
Começo meus comentários com considerações sobre ‘O Dia dos Mortos’ comemorado no México, e seu significado. A comemoração feita aos mortos é originária da cultura asteca e acontecia no nono mês do calendário solar asteca, que seria o mês de agosto e, segundo a crença popular nos dias primeiro e dois de agosto os mortos teriam permissão divina para voltar à terra e visitar sua família.
No século XVI, com a chegada dos espanhóis levando o cristianismo, a comemoração do dia dos mortos passou a ser no dia 2 de novembro. Nessa mudança, algo se perdeu: o significado. Não mais se acreditava que os mortos voltariam para suas famílias! Ficou apenas um ritual, e o significado sobre os reencontros foi se apagando.
Vejamos a história de Miguel, personagem do filme ao redor do qual os acontecimentos se passam: sua tataravó, Amélia, foi casada com um músico, e com ele cantava; eram muito felizes. Quando nasceu a filha do casal, Amélia decidiu dedicar-se a ela, e seu marido partiu para tentar o sucesso profissional, com a promessa de voltar.
Mas ele não voltou!
Amélia, narcisicamente ferida, sentindo-se abandonada e traída, viveu com muito ódio e decepção essa experiência. Decide que a música era a responsável por sua infelicidade, e daí por diante a música passou a ser sinônimo de dor, de perda, de ofensa. Verdadeira equação simbólica!
Para sua sobrevivência, Amélia resolve aprender a fazer sapatos. Poderíamos conjecturar: por que sapatos? Faltou-lhe chão?
Todos os seus descendentes passaram a trabalhar na confecção de sapatos e todos deviam usar um avental marrom de couro, marca da profissão, mas também, em minha leitura, a marca do trauma, da ofensa, que toda família deveria carregar por todas as gerações, inclusive na terra dos mortos!
Miguel vivia com seus pais, sua avó, e sua bisavó, e tinha forte vocação para a música. A avó era quem carregava fervorosamente a marca do ódio à música, Miguel se recusa a unir-se à família na fabricação de sapatos. Toma um caminho diferente e vai engraxar SAPATOS! Isso lhe permitia sair da casa, ir à praça engraxar sapatos e ouvir música, transgredindo o já estabelecido. Secretamente constrói seu violão e, quando descoberto, seu violão é despedaçado pela avó, que tenta impor-lhe o avental de couro marrom. Submetê-lo ao que vem sendo transmitido de geração em geração.
Quando lhe é negado o desejo de ser si mesmo, com suas características singulares, ele recorre ao mundo dos sonhos, das fantasias e se transporta para o Mundo dos Mortos. Quer investigar os motivos que levaram a família a ter tanto horror à música, quer investigar o segredo familiar que aprisiona e submete a todos, o não dito, quer restituir a verdade, denunciando o traumático não elaborado.
Conforme diz Ana Rosa Chait Tratchenberg (1): “A patologia nos defronta com uma espécie de legado transgeracional em que impera um funcionamento narcisista, sem respeito às diferenças e aos espaços subjetivos… Heranças arcaicas podem se tornar poderosas na forma de fantasmas que habitam um ou mais membros de um grupo, predominantemente familiar, pela impossibilidade de um luto ou falhas nas regras de filiação.”
Aqui se entrelaçam as questões do narcisismo (ofensa narcísica) e do luto mal elaborado. Da tataravó ao tataraneto, gerações se sucederam sem conhecer os motivos que fizeram com que a música fosse objeto de tanto ódio.
O que vai sendo transferido de geração a geração? Segundo Kaës (2), transmite-se especialmente “configurações de objetos psíquicos (afetos, representações, fantasmas)”. Assim, os descendentes de Amélia, sem saberem por que motivo, vão transmitindo algo que não fazia parte da história individual de cada membro.
Interessante observar que no filme aparece a figura de um ‘trapaceiro’ que vai ajudar Miguel a chegar à Terra dos Mortos. Penso que se poderia pensar nesse personagem, não como um trapaceiro, mas sim como um transgressor; não um transgressor da lei social, mas sim das leis internas da família. Poderíamos pensar que sem uma certa dose de transgressão das leis familiares, não seria possível mudanças? E no processo analítico, não seria a transgressão às normas de um superego cruel e castrador, o que possibilitaria alguma mudança?
Por fim Miguel encontra a tataravó Amélia na terra dos mortos e lhe é revelada a história de seu ressentimento em relação à música. Mas, para que ele volte ao mundo dos vivos, terá que receber a benção de Amélia, e ela a dará, com a condição de que ele abandone sua vocação musical.
O que significa “dar a benção”? O que poderia significar voltar ao mundo dos vivos? Ter vida própria? Poder ser si mesmo? Viver sua singularidade?
Calvino conceituou a benção como o benefício da Redenção. A palavra grega para Redenção, ‘Lustros’, significa resgate, preço a pagar pela liberdade, e a palavra latina ‘Redimire’ significa fazer algo para que alguém se torne livre. Penso que estamos falando de uma libertação em relação às heranças arcaicas que habitam uma família pela impossibilidade de fazer o luto e superar as ofensas narcísicas vividas, no caso de Miguel, por sua tataravó.
Penso que poderíamos fazer uma analogia com o processo de análise. A busca de discriminação do que é próprio de cada um e o que é do outro, que poderia libertar a pessoa de heranças familiares, leva a sofrimento, exposição diante de um outro, o analista, que em certos momentos é odiado por ser testemunha e por possibilitar o surgimento da verdade em relação a si próprio e aos outros.
Assim, o processo analítico pode ser libertador, tanto das heranças familiares, quanto das amarras, das defesas de cada um, dificultando a busca de um caminho que lhe é próprio.
Resumindo, nesse filme podemos ver a transgeracionalidade operando as ofensas narcísicas, o ódio à realidade, a submissão e a transgressão em relação às leis familiares, a busca da verdade.
AUTORA
Nilde J. Parada Franch
Membro Efetivo, Analista Didata, Analista de Crianças e Adolescentes da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP) e da International Psychoanalytical Association (IPA) \ Ex-Presidente da SBPSP (2012-2016) \ Chair do Committee on Child and Adolescent Psychoanalysis (COCAP) – (2017-2021) \ Editora do Livro Anual de Psicanálise (IJP) \ Ex-Chair do Comitê de Working Parties da FEPAL
E-mail — nildefranch@gmail.com
REFERÊNCIAS
1.Tratchenberg, A R (et al.) (2013). Transgeracionalidade – de escravo a herdeiro: um destino entre gerações. Porto Alegre: Sulina.
2.Kaës, R. (2001). Transmissão da vida psíquica entre gerações. São Paulo: Casa do Psicólogo.
FICHA TÉCNICA
Título original — Coco
Título português — Viva: a vida é uma festa
Ano — 2017
Duração — 105 min
País — E.U.A.
Direção — Lee Unkrich
Argumento —Lee Unkrich, Jason Katz, Matthew Aldrich e Adrian Molina
Produção — Darla K. Anderson
Fotografia — Matt Aspbury e Danielle Feinberg
Edição — Steve Bloom
Música — Michael Giacchino, Germaine Franco, Adrian Molina, Kirsten Anderson-Lopez, Robert Lopez
Elenco — Anthony Gonzalez, Gael Carcía Bernal, Benjamin Bratt, Alanna Ubach, Renée Victor, Ana Ofelia Murguía, Edward James Olmos
SINOPSE
Um longa metragem de animação tece o retrato do Dia dos Mortos na cultura mexicana, focando a memória, os sonhos e a transmissão transgeracional entre várias gerações de uma mesma família. Miguel tem 12 anos e quer ser músico, mas a família desaprova seu sonho, lançando-o na descoberta do segredo encoberto.