À PROCURA DO SER — Eighth Grade (2018)
— ELSA COUCHINHO —
Um rosto e um écran. Nos vídeos que partilha numa rede da internet, Kayla surge como gostaria de se apresentar: com respostas e soluções para as suas dúvidas e medos, numa postura verticalizada revelando o seu rosto, o seu sentir e o seu pensamento. Uma jovem em busca da realização do Ideal do Ego.
Uma imagem que contrasta com a sua figura fora do écran. O andar curvado que tantas jovens adoptam como forma de esconder os seios emergentes, formando, ao mesmo tempo, uma concha onde se guardam as intensas emoções de insegurança, medo e desejo. Uma curva sob o peso da enorme inibição.
Como refere Meltzer, o adolescente isolado é o que corre maior risco. A comunidade de adolescentes tem o potencial de se configurar como um espaço de experienciação e contenção da dor depressiva, função antes desempenhada pelas figuras parentais. Na comunidade, estabelece-se um espaço de experimentação de papéis que contribuem para a construção da identidade própria, como uma casa de espelhos em que se observam diversos aspectos da personalidade.
À margem dessa comunidade, Kayla vive uma intensa ansiedade social mas o seu desejo de pertença e integração mantém-se vivo e através dos seus vídeos busca o contacto e o encontro. Esse desejo de contacto e encontro, é a força vital que diminui consideravelmente o risco do isolamento que poderia desembocar num refúgio psíquico.
Being yourself é uma descoberta penosa. A saída do período de latência, descola a dinâmica em torno do Ego Ideal (ideal narcísico omnipotente alicerçado nas identificações primárias), para o período da puberdade, numa dinâmica em torno do Ideal do Ego, na qual progressivamente se articulam e integram os ideais narcísicos e as interdições.
Os vídeos realizados estabelecem um diálogo interno, como se de um diário se tratasse, onde os medos e as angústias se enfrentam, em busca da saída que permita realizar os desejos e os sonhos. São também uma tentativa de estabelecer um diálogo externo, no encontro com os seus pares.
A cápsula do tempo do 6º ano, guarda os seus desejos para os anos seguintes, o Ideal do Eu: ser apreciada pelos pares, descobrir os primeiros namoros. A Middle School que agora termina, foi vivida em isolamento e frustração, com a experiência de ser ignorada ou não desejada pelos pares e os enamoramentos vividos apenas na fantasia. “Como viajar numa montanha russa onde nunca experimenta a descida”, tensão que se acumula mas nunca encontra alívio ou prazer.
Os modelos femininos que encontra na internet não preenchem a ausência da figura materna, que se materializa na sua pele e na sua feminilidade negligenciadas e na ausência de um bom objecto capaz de conter a sua intensa ansiedade.
Out there é o mundo enorme, além do casulo protector da infância, uma paisagem imensa e vasta para explorar. Entre a confusão gerada pelas transformações pubertárias, a inexistência de espaço grupal de pertença (comunidade adolescente) e a ausência da figura materna, Kayla sucumbe várias vezes aos ataques de pânico na vastidão desse mundo fora.
A coesão egóica é posta à prova pelas mudanças corporais, pelas forças pulsionais e tantas outras experiências nesta nova etapa. A ameaça de fragmentação é contida pela qualidade dos objectos internos e dos seus vínculos, bem como pela presença protectora e securizadora das figuras parentais, que continua a ser de enorme importância, estabelecendo-se como um eixo em torno do qual o adolescente pode afastar-se e reaproximar-se, em movimentos de autonomia e diferenciação.
Submersa nas apelativas redes sociais ou nas suas fantasias, Kayla aparenta não ter lugar para o pai. Um olhar mais atento permite observar os movimentos de autonomia e diferenciação sempre que afasta o pai, a necessidade da proximidade deste, estabelecendo limites nas suas aparições em momentos-chave e a re-aproximação no seu próprio tempo.
O pai resiste amorosamente à turbulência emocional, às oscilações de humor, às críticas e aos movimentos que ciclicamente o colocam à distância. Não cede a tomar esses movimentos como ataques, nem age em resposta ao agir, à projecção ou evacuação da filha. Talvez a culpabilidade pela ausência da mãe e a necessidade de alguma distância que medeie as tensões edipianas, sejam elementos a considerar na forma como se relaciona com Kayla.
Put yourself out there, são palavras ditas pelo pai que transitam para um dos vídeos, as palavras circulam entre o clima conflitual e permanecem, fornecem uma rota e dão suporte à sua busca de relação no mundo juvenil.
Em alguns momentos, observamos Kayla no limite do risco: a submissão às colegas que admira, a aproximação aos rapazes (nudes e sexo oral) e o jogo “verdade ou consequência”. À beira do abismo, algo a segura e protege, consegue estabelecer o limite que a salvaguarda.
O contexto de mudança de escola parece apoiar a manutenção da esperança, continuar a projectar um futuro mais realizado e satisfatório. No encontro com Olívia e o seu grupo, Kayla vive a experiência de ser olhada como um par, como uma rapariga querida, uma presença desejada.
A esperança é alicerçada pelo movimento de luto. As ilusões projectadas para a Middle School transformam-se em cinzas na fogueira. O pai assegura-se que a fogueira é um lugar de transformação criativa (Pulsão de Vida) e não um lugar de devastação destrutiva (Pulsão de Morte). Enquanto ardem as ilusões infantis, revela-se o traço de continuidade entre a infância, o presente e o futuro.
Na fala do pai habita o amor incondicional, a presença e o abandono da mãe, um olhar que revela uma filha corajosa e criativa, bondosa e educada.
A violenta turbulência da puberdade parece ter amainado nos encontros com Olívia e o pai, dando espaço para encontros em espaços relacionais mais genuínos, onde a infância e as inseguranças não se escondem sob uma carapaça pseudo-adulta.
Kayla parece intuir que crescer e mudar é um processo contínuo, que cada cápsula do tempo transporta já um fim e um novo começo: depois do liceu virá a faculdade. Um processo de realizações e frustrações que exige “capacidade negativa” perante a incerteza, o estranho e o novo. Um processo que integra de forma tolerante as frustrações e os erros, sem abandonar a esperança.
AUTORA
Elsa Couchinho
Psicanalista Associada da Sociedade Portuguesa de Psicanálise e da International Psychoanalytic Association \ Psicanalista da Criança e do Adolescente \ Docente do Instituto de Psicanálise
E-mail — elcouchinho@gmail.com
REFERÊNCIAS
Filme discutido no dia 04.04.2022 no Grupo de Reflexão “Adolescência & Cinema” (2021-2022) da Sociedade Portuguesa de Psicanálise, coordenado por Ana Belchior Melícias e Elsa Couchinho
FICHA TÉCNICA
Título original — Eighth Grade
Título português — Oitava Série (BR)
Duração — 93 min
Ano — 2018
País — E.U.A
Realizador — Bo Burnham
Argumento — Bo Burnham
Produção — Eli Bush – Scott Rudin – Christopher Storer – Lila Yacoub
Cinematografia — Andrew Wehde
Música — Anna Meredith
Elenco — Elsie Fisher – Luke Prael – Emily Robinson – Josh Hamilton – Jake Ryan – Fred Hechinger – Imani Lewis
SINOPSE
Kayla é uma pré-adolescente que tenta romper o seu isolamento e lidar com a sua intensa ansiedade social através da produção de vídeos nas redes sociais. A preparação para a nova etapa escolar (Liceu) exige a elaboração das dores e frustrações do período da Middle School, que os encontros genuínos com o pai e com os seus pares irão possibilitar. O realizador, Bo Burnham, constrói o argumento com base nas suas experiências de ataques de pânico, vividas no momento em que a sua fama enquanto comediante nas redes sociais lhe permitem catapultar-se para o universo da comédia perante audiências reais.