KRONOS, KAIRÓS E O PROCESSO PSICANALÍTICO — Drive my Car (2021)

— DÉBORA DE MELLO —

Escuto as narrativas como sonhos. Como um sonho, sonhado pelo sonhador: sozinho. Vozes que falam entre si, num mundo qualquer e no nosso.

Drive my car é um daqueles momentos, em que as tristezas episódicas intrínsecas à experiência humana transmutam-se em desespero dissonante e contínuo, onde acreditamos não poder dividir as angústias com mais ninguém; o infinito preso em algumas horas. Momentos onde a vida se apresenta sem saída, perdida, sufocada. Enquanto o “chá esfria, e esfriou. O tempo passou e não volta mais”. Quando os pensamentos acompanham o rodopiar do vinho na taça e aceleram até saírem de orbita. Espatifada, desenha uma navalha translúcida que rompe a pele e deixa a esperança escorrer até a última gota de sangue, se não do corpo, de toda a alma.

Mas e a confusão? É grande! E aquela graxa vermelha no chão, fria, calculista, pode marcar indelével o sangue de outros ainda quente. É nesse momento que ou se rasga a pele ou alguma porta se abre, de compreensão e carinho e, é então que o sangue volta a correr lentamente, a entumecer os membros, e sente-se a força dura como pau a fluir pra dentro de outro, e a coragem nasce como um bebê indefeso, ingênuo, aos berros e vai crescendo e, aos poucos criando um novo mundo, metamorfoseia aquele velho mundo, penoso, injusto e belo, de duração eterna, que sempre esteve lá.

No filme ela, Oto, avança até a morte física, mas ele, seu marido, com a alma amortecida é salvo pelas palavras. Para mim, aquele carro vermelho é como alguns divãs. O analista e sua escuta genuinamente interessada oferecendo a oportunidade das palavras rodopiarem não para o abismo, mas noutra direção, como pássaros livres a seguirem seus destinos mais próximos ao sol.

O longa do diretor japonês Ryusuke Hamaguchi, vencedor do oscar de filme estrangeiro desse ano, é baseado no livro do mesmo título, do escritor japonês laureado Haruki Murakami, e usa como base para reflexão e como tema de enredo a peça de teatro do dramaturgo russo Anton Tchekhov(1899), Tio Vanya.

Depois de quase dois anos de pandemia e mortes e, tendo cada um de nós, à sua maneira, lidado com frustrações e dificuldades múltiplas Drive my Car contribui na elaboração desse paradoxal período que intensamente vivemos e ao mesmo tempo interrompeu bruscamente nossas vidas. Momento delicado, convite maldito à melancolia e sua consequente estagnação de todos os tipos. 

A surpresa dessa vivência de um intervalo no tempo nos mobiliza a refletir e tentar compreender um tempo diferente daquele que a nossa cultura ocidental está habituada. Tempo para nós é o tique-taque dos ponteiros. No entanto, experimentamos outra passagem de tempo nos últimos dois anos, quando o relógio parou.

Nos reencontros, pós confinamento, foi comentário comum notar como todos envelhecemos, arranjamos bolsas debaixo dos olhos, riscos na face e fios brancos pelo corpo. Casamentos adiados, mortes não homenageadas.

Adolescentes comentam hoje como as tias de outrora: como estás mudada, já és um homem, já és uma mulher! Entretanto, nas telas-divãs dos analistas as palavras são não de assombro, mas de angústias, frustrações e até desespero por não terem vivido o que gostariam de viver. É aqui que o filme de Hamaguchi se torna útil dando expressão simbólica e estética, abrindo espaço para pensar a quantas andam nossa destrutividade, a estagnação em nossas vidas, nossos amores, nossas paixões, nosso trabalho, nossa criatividade, nossa responsabilidade com as crianças de hoje. Adultos amortecidos fazem crianças desnutridas simbolicamente e apavorados com a vida. Onde está nossa coragem de arriscar, para ganhar ou perder?

No filme, Kafuko, um ator e diretor de teatro é casado com Oto, que depois de perder sua filha pequena para a morte, desenvolve uma estranha e interessante mania de, após o sexo, inventar histórias e mundos paralelos. Apoiada por seu marido, uma dessas histórias ganha um concurso e vira peça de teatro. Oto passa então, a se envolver sensualmente com os atores de sua peça. Um envolvimento mecânico, repetitivo a la compulsão. De alguma maneira, seu marido Kafuku, também mantém um relacionamento distante, mecânico e compulsivo, amortecido, com as artes, em especial com a peça de Tchekhov, da qual vem ensaiando as falas por horas dentro de seu carro, sem de fato compreendê-las. A erudição sem envolvimento emocional é uma das questões tratadas na peça de Tchekhov através da figura do professor Serebriakova, que tendo passado 25 anos a estudar parece nada ter aprendido, tornou-se um “bacalhau intelectual”. Seco e burro.

Kafuku, o marido de Oto, sabe de suas aventuras sexuais, no entanto, cala-se, com medo do confronto. Enquanto isso, Kafuku assume o trabalho de montar a peça de Tchekhov no festival de Hiroshima. Não vive mal o casal. Contudo, a verdade silenciada põe fim à vida criativa e jovem de Oto. Kafuku se culpa por saber que ela queria falar e ele não podia escutar. A palavra engasgada matou Oto. Destino oposto é o de Kafuku que durante a montagem da peça é obrigado a entregar-se às mãos de uma jovem motorista calada e, dividir seu espaço santo (seu carro-divã vermelho quente) com ela. Passando os dias, será pelas muitas palavras ditas e ouvidas que Kafuku se reinventará, perlaborando o luto,  sobrevivendo à morte da infância (sua filha) e da juventude (sua mulher), já não melancólico, porém lúcido e lúdico (pode ser ator, pode sobrepor a pele de Tio Vanya sobre a sua) e segue sua vida, como nós, os sobreviventes.

A peça de teatro, o livro e o filme falam sobre o tempo. Mas, que tempo? Sobre o inevitável desgaste e decadência, quando não há reformas e criações.

É sabido que os gregos tinham duas palavras para tempo: kronos, que é como entendemos o tempo hoje em dia, cronológico, linear; e kairós, outro tipo de tempo, não linear, não como ondas, e sim, como eventos que borbulham aqui e acolá, em nossas vidas, como partículas. kairós é o tempo dos eventos, do ocorrido, das marcas. kronos é o tempo da carne, kairós é o tempo da alma. Jamais deveriam se separar.

Drive my Car elucida a subida de kairós em meio a kronos dentro de uma relação, trazendo aos personagens da motorista e de Kafuku o sentimento crucial e sine qua non de que a vida vale à pena, apesar dos inúmeros pesares. É desse encontro com a paralisia, com os sintomas, com a angústia, que kairós emerge e impulsiona viradas em nossas vidas. 

As viagens no banco do passageiro, regadas com as citações de Tchekhov muito se assemelham a um tratamento analítico, onde exclusivamente dentro de uma relação, que cresce em confiança, intimidade e cumplicidade a palavra exerce sua função e restabelece a capacidade de lidar com a existência de uma maneira realística e criativa, isto é, menos neurótica.

Dia após dia no banco de trás do carro de Kafuku, ou deitado no divã, o processo é uma imersão em quem se é. Enquanto nossos músculos psíquicos e emocionais se fortalecem para aceitar a realidade como é. Só então, caberá à força de cada um mudar e transformar o mundo em que vivemos e enfim, descansar.

O compositor Sergei Rackmaninov usou das últimas linhas da peça de Tchekhov em sua composição opus 26 no.3: “Vamos descansar”. Como descansam? Não descansam na morte os personagens, pelo contrário, descansam no trabalho criativo e nas relações de ternura.

O complexo da melancolia se comporta como uma ferida aberta, de todos os lados atrai energias de investimento (que chamamos de “contrainvestimentos” no caso das neuroses de transferência) e esvazia o Eu até o completo empobrecimento.

AUTORA
Débora de Mello
Psicóloga Clínica com especialização em terapias da infância (UNICAMP) \ Mestre em Humanidades (Pacífica Graduate Institute, CA-USA) \ Doutoranda em Estudos Românicos e Portugueses, (FLUL-Universidade de Lisboa) \ Membro em formação na Sociedade Portuguesa de Psicanálise (SPP)
E-mail — debora@deborademello.com

REFERÊNCIAS
1. Tchékhov, Anton. (1899) Quatro peças (Portuguese Edition) Penguin-Companhia. Edição do Kindle.
2. Freud, S. (1914-1916) – Obras completas volume 12 (p.165). Companhia das Letras. Edição do Kindle.
3. Campbell, J., & Fairchild, J. E. (1993). Myths to live by. Edição do Kindle.

TRAILER

FICHA TÉCNICA
Título original ー Doraibu mai kâ
Título inglês — Drive my car
Título português — Conduz meu carro
Ano — 2021
Direção — Ryûsuke Hamaguchi
Duração — 179 min
País — Japão
Argumento — Ryusuke Hamaguchi e Oe Takamasa, com base no conto homónimo de Haruki Murakami 
Produção — Osamu Kubota e Yamamoto Akihisa
Fotografia — Hidetoshi Shinomiya
Música — Eiko Ishibashi
Edição — Azusa Yamazaki
Figurino — Haruki Koketsu
Maquiagem — Atsuko Ichikawa
Elenco — Yûsuke Kafuku: Hidetoshi Nishijima – Tôko Miura: Misaki Watari – Reika Kirishima: Oto Kafuku, Yûsuke’s Wife – Lee Yoon-a:  Park Yu-rim – Kon Yoon-su: Jin Dae-yeon – Janice Chang: Sonia Yuan

SINOPSE
Yusuke Kafuku (Hidetoshi Nishijima) é um ator e diretor de sucesso no teatro, casado com Oto (Reika Kirishima), uma linda roteirista com muitos segredos, e com quem divide sua vida, seu passado e colaboração artística. Quando Oto morre repentinamente, Kafuku é deixado com muitas perguntas sem respostas de seu relacionamento e com o arrependimento de nunca conseguir escutá-la. Dois anos depois, ainda sem conseguir sair do luto, ele aceita dirigir uma peça no teatro de Hiroshima e vai com seu precioso carro Saab 900. Lá, por questões da direção do festival, ele tem que deixar o carro nas mãos da jovem motorista Misaki Watari (Toko Miura), com quem desenvolverá uma relação especial.