CALAR OU FALAR… — Parallel Mothers (2021)

— HENRIQUETA MARTINS —
Na sua última longa metragem Almodovar oferece-nos um filme denso, complexo e inquietante onde se cruzam temas de maternidade e de memórias. Duas mães, dois bebés, muitos problemas. Nele, duas histórias circulam em paralelo: a da maternidade e a da guerra civil espanhola. Um labirinto de relações íntimas onde também se retrata uma história coletiva, dolorosa e prolongada: sobre as memórias dos crimes da ditadura de Franco, que ainda afetam Espanha, mais de oitenta anos após o fim da Guerra.
Janis (Penélope Cruz) e Ana (Milena Smit) ambas nos extremos da fertilidade, engravidam ao mesmo tempo, por acidente, mas mantêm diferentes relações com o passado e o presente. A primeira conhece a verdade, a segunda desconhece-a. A relação entre as duas é ambígua. Janis está encantada com o seu papel de mãe, tendo a autonomia necessária para o enfrentar. É ela quem ensina Ana que descascar batatas para fazer tortilha, “não é difícil”. Também é ela que se colocará numa posição insustentável, impedindo qualquer desenvolvimento da relação entre as duas. E é Ana, a mãe adolescente que, impulsionada por um instinto de amor, invisível no princípio, acabará por se revelar, tornando possível ligar passado e presente e precipitar o futuro, numa cascata de revelações “difíceis de compreender de uma só vez”.
Simbolicamente, Almodovar revela-nos o grito da dor do parto, como um eco de duas Espanhas em paralelo (a que se recusa a negar o passado e a que a que se recusa a pensá-lo) e traça o difícil caminho que marca a emergência da verdade histórica, de modo a ilustrar a relação de um povo com a sua História. Calar ou falar: é disto que trata este filme. A vida e a morte entrelaçam-se, consumando-se numa tragédia. Depois da sideração de Janis, vem a dificuldade de “dizer” e, finalmente, a confissão necessária, que a permite distanciar-se e libertar-se da dor. Hanna Segal, num comentário ao seu próprio artigo Silence is the real crime, recorda o valor terapêutico de verbalizar a verdade (Segal,1987).
Em Madres Paralelas, o olhar social do realizador não negligencia a inclusão de certas tendências do atual mundo tecnológico, o ritmo de vida acelerado e as relações “liquidas” (Bauman,2003), tornando o fosso entre gerações cada vez mais pronunciado. Há uma constante procura de identidade para além dos resultados genéticos e dos vestígios em testes de saliva, revelada pela tensão permanente de Janis, que sabe que tornar-se mãe não é ADN, mas que por vezes o ADN importa. Almodovar questiona as origens e os laços de sangue, ao mesmo tempo que retrata os seres humanos “imperfeitos” e a fraca vitalidade afetiva do mundo em que vivemos. Teresa, a mãe da Ana, não rejubila por ser avó ou por finalmente poder reparar a relação abandónica com a filha adolescente, mas por ter sido escolhida para representar doña Rosita de Garcia Lorca, a “solteirona frustrada e seca” e não se coíbe em dizer que não assumiu o seu papel de mãe porque todo o seu desejo era o teatro. Esta confissão levanta um verdadeiro tabu social apresentado pelo mito do instinto materno.
Madres Paralelas encena, assim, um contexto familiar cheio de ausências, deficiências, horrores e traumas. Um bebé morre, “porque se esqueceu de respirar”. No trabalho do realizador, a transmissão geracional ocorre através das personagens femininas, figuras-arquivos da História que também são lugares de convergência de conhecimentos e segredos familiares. Almodóvar ilustra magistralmente um passado que, não sendo exumado e posto em palavras, está condenado a repetir-se no presente, em situações que não são mais do que a reprodução de um padrão ancestral. Explora o tema da transmissão às gerações seguintes como um passo necessário para quebrar o silêncio de um povo submergido pelas atrocidades da guerra. O grito das duas mães em paralelo representa, em última instância, a dor de milhares de mães que continuam à espera dos seus mortos. Nesse sentido, é um filme sobre a identidade, para além do género e do lugar que ocupamos no mundo, que legamos à nossa descendência. Muitas questões ficam em aberto, fala-se de abuso e violação, de sexo sem consentimento, sem nenhuma denúncia ou perseguição dos prevaricadores. Fala-se sobre a troca de bebés à nascença e não se abordam as responsabilidades.
Janis começa por reclamar a herança das mulheres da sua família, para justificar a sua separação com Arturo, que não está imediatamente pronto para ser pai: “Serei como todas as mulheres da minha família, uma mãe solteira, tal como foram a minha mãe e a minha avó”. Só após reverter o peso da sua herança, uma vez descoberta a vala comum onde jaziam o seu bisavô e outras pessoas desaparecidas, é que poderá começar uma família com Arturo. A abertura final desta vala comum simboliza, assim, a libertação de um inconsciente grupal, que permite aos indivíduos reconciliarem-se com o seu próprio passado e ansiarem por um futuro mais pacífico.
No final do filme, é citado o dramaturgo uruguaio Eduardo Galeano: “Não existe tal coisa como história silenciosa. Quer se queime, quebre, ou diga alguma coisa sobre o assunto, a história humana recusa-se a ficar calada.” (Galeano, 1999)
O direito de lembrar não figura entre os direitos humanos consagrados pelas Nações Unidas, mas hoje mais do que nunca é necessário reivindicá-lo e pô-lo em prática: “(…) não para que os vivos sejam os ventríloquos dos mortos, mas para que sejamos capazes de falar com vozes não condenadas ao eco perdido da estupidez e da desgraça. Quando está realmente viva, a memória não contempla a História, mas convida a fazê-lo” (Galeano, 1999).
O direito de lembrar é, assim, um pilar simbólico na luta da humanidade contra as injustiças, as desigualdades, a discriminação e a violência. Mantê-lo vivo significa admitir que já conhecemos as piores facetas da nossa história e que não estamos dispostos a vivê-las novamente.
Esta é uma oportunidade para o realizador evocar um tema ainda ardente e doloroso em Espanha, o dos crimes do franquismo. De facto, 100.000 mortos ainda estão a ser procurados pelos seus descendentes. 30.000 em valas não marcadas e o resto em valas comuns espalhadas à beira da estrada, por todo o lado.
Como sempre em Almodóvar, na sua construção, nada é naturalista, já que a escolha de trajes, músicas, cores e luzes, o ajuste de eventos, os gestos e tons emocionais e as analogias contribuem para uma proposta muito aberta que, em última análise, nos oferece a todos a possibilidade de pensar e interpretar em liberdade.
AUTORA
Henriqueta Martins
Psicanalista. Membro Associado da Sociedade Portuguesa de Psicanálise (SPP) e da International Psychoanalytic Association (IPA) \ Formadora no Instituto de Psicanálise.
E-mail —hcostamartins@gmail.com
REFERÊNCIAS
Galeano, E.(1999) De pernas pro ar. A escola do mundo ao avesso. Porto Alegre. L&PM.
Bauman, Z.(2003). Amor Líquido – Sobre a fragilidade dos laços humanos. Lisboa. Relógio d´Água Editores.
Segal, H. (1987), Silence is the real crime, International Journal of Psychoanalysis, 14, pp. 3-12.
FICHA TÉCNICA
Título original — Madres Paralelas
Título inglês — Parallel Mothers
Título português — Mães Paralelas
Ano — 2021
Duração — 123 min
País — Espanha
Direção — Pedro Almodóvar
Argumento — Pedro Almodóvar
Produção — Agustín Almodóvar e Esther García Rodríguez
Fotografia — José Luis Alcaine
Música — Alberto Iglésias
Elenco — Penélope Cruz, Milena Smit, Israel Elejalde, Aitana Sánchez-Gijón, Rossy de Palma, Julieta Serrano, Luna Auria Contreras
SINOPSE
Mães Paralelas gira em torno do encontro de duas mulheres grávidas, num quarto de uma Maternidade. Ambas estão solteiras, mas carregam sentimentos bem diferentes em relação ao parto: uma está muito confiante e a outra está extremamente apavorada. Uma, fotógrafa de meia-idade, quer escrever o seu futuro, mas suporta o legado traumático do passado familiar. A outra, muito jovem, cultiva uma entrega persistente contra a violência e a perda. Numa história de descendência perturbada e ancestralidade traumática, o trabalho de luto pelos mortos aparece como a única maneira de curar as feridas.