DEPOIS DA TEMPESTADE — Three Colours: Blue (1994)

— SÍLVIA MONTEIRO — 

Azul, é o primeiro filme da Trilogia das Cores. O realizador, inspirado pelo tema da Revolução Francesa, usa as cores da bandeira francesa para compor cada filme: liberdade (Azul), igualdade (Branco) e fraternidade (Vermelho).

O filme de Krzysztof Kieslowski começa com uma cena aparentemente banal, uma família a viajar de carro. Subitamente somos surpreendidos pela colisão do automóvel numa árvore. Dá-se a tempestade.

Como a peça de Shakespeare, a ‘Tempestade’, é uma história sobre o trauma e as experiências transformadoras que dele podem advir (1). 

Em Azul, vamos acompanhando a transformação de Julie. No começo, perguntamo-nos se conseguirá resistir. Está numa cama de hospital, deitada, em silêncio, no rosto tem a expressão de choque. Acabou de perder a família.

Kieslowski vai filmando a metamorfose de Julie, seguindo a perspectiva existencial de uma mulher enlutada. O realizador confronta-nos com a dimensão trágica da vida. De uma forma abrupta, Julie confronta-se com a morte, a finitude, o lado efémero e frágil da vida.

O realizador não nos conta uma história, não nos narra os estados de alma dos personagens. Espera que o espectador entre em relação com o actor. Para isso, vai-nos dando um espaço de liberdade para que possamos entrar neste campo de intimidade com a personagem, Julie, que a actriz Juliette Binoche desempenha com uma entrega notável. Intuímos a insuportabilidade do trauma, a dor intolerável da perda. No hospital, Julie tenta o suicídio. Mas sente-se impotente. Kieslowski detém-nos na cena traumática, onde os seus efeitos não são comunicados verbalmente, antes foram cindidos e isolados da consciência de Julie. Tela da interioridade, o realizador comunica-nos o incomunicável. 

Julie quer desesperadamente romper com o passado e apagá-lo da memória. Quando volta a casa, reassegura-se que o quarto azul da filha se encontra vazio. Vazio de recordações? Para o cineasta “a prisão é criada tanto pelas emoções quanto pela memória” (2).

São “memórias sem recordação”, quando a vivência traumática deixa rastros indeléveis, vazios, inefáveis ​​e inenarráveis; são extra-espaciais e extra-temporais, não representados como memórias, porque não havia mente subjetiva no momento que os pudesse registar, processar e, em seguida, lembrar (3). 

Depois da derrocada emocional, Julie procura constituir um ponto de partida, a partir do qual possa recomeçar. Espera que o despojamento dos seus pertences, lhe amorteça o sofrimento. Para Zizek (4), Azul não é um filme acerca do luto, mas acerca da criação das condições para o luto.

O seu encontro traumático com o real, afasta-a do real. Num estado de retraimento sobre si, vai apurando a sua sensibilidade e atenção a pequenos sinais do ambiente. Tal como na peça ‘Tempestade’, Próspero e Miranda ficaram isolados na ilha, sem contacto com outros seres humanos. A vivência traumática provocou uma tal ruptura, que a sobrevivência só pode acontecer no isolamento e no mundo da fantasia omnipotente.

Julie convida Olivier para terem sexo. Olivier ama Julie. Na manhã seguinte, quando sai esfola a mão nas pedras de um muro. Induz em si própria a dor física, para se auto-punir, ou sair de uma espécie de torpor emocional? Afinal quem é Julie neste momento da sua vida? Não sabemos. Parece bastante inacessível a si própria e ao outro. O mundo à volta não parece ter nenhuma importância. “Como se pesasse sobre ela a infelicidade de se encontrar ainda entre os vivos” (5).

Julie procura o anonimato, uma vida sem ligações. Para Kieslowski uma pessoa oprimida por um desastre estabelece uma forte ligação com os objectos. “O mundo recua, as pessoas tornam-se estranhas”. 

Para ultrapassar a dor da perda, o olhar torna-se impermeável ao mundo real, visível, mundo onde cada objecto simboliza a perda. Os objectos desempenham um outro papel. Mais do que fragmentos da história de Julie, afiguram-se como detalhes da ausência. O olhar enlutado de Julie decide não os ver. Para Beckett, ultrapassar a dor da perda passa, a um primeiro nível, por quebrar os elos com o mapa dos afectos e a geometria dos objectos do quotidiano: passa por vê-los mal, uma vez que a sua nitidez está em relação directa com a morte, presentifica a ausência do inominável.

A música de Preisner tem um lugar de destaque neste filme. Diferentes sonoridades, intensidades, assumem diversas expressões da interioridade de Julie. O som recorrente da flauta aproxima-nos da sua melancolia, o belíssimo coro parece personificar a sua voz. Este diálogo repetido entre as imagens e a música que o director nos apresenta aproxima-nos da dor de Julie.

Mas de forma inconsistente e humana, Julie não consegue deixar de contactar com uma réstia do seu passado. Escolhe um objecto. O lustre azul, um objecto com um significado profundo. Objecto transicional, onde passado, presente e futuro se podem ligar. A ambiguidade entre ficar numa posição mais omnipotente, sem passado, ou pelo contrário poder conectar-se com dimensões do seu Eu anterior? A morte a tentar espantar a vida? Ou a vida a tentar espantar a morte?

Vemos Julie a nadar numa piscina. Sozinha, nada numa água de um azul intenso. A cor azul é marcante neste filme. O azul do quarto da filha. O azul da tristeza e da melancolia de Julie. O azul expõe a frieza da introversão, o retraimento sobre si própria. 

É tocante, a cena em que Julie visita a sua mãe num lar. A mãe está demenciada, sem memória, não tem existência na vida da filha. Julie não encontra um interlocutor, como ela diz “perdi tudo”. Kieslowski não nos dá acesso à sua história. Apenas conta o tempo do trauma. O tempo da ausência do tempo, sem um presente que não nos devolve um passado, sem presenças. Julie desnuda-se neste sentimento de total solidão, só pode contar consigo mesma, não tem mais nada aonde se possa agarrar. Despojada de pertences, sem recordações, sem amigos, sem amor. Para ela são tudo ameaças. Mas sabiamente, a mãe diz-lhe: “Não se pode renunciar a tudo”. 

Como o poder transformador da escuta analítica, o cineasta leva o espectador a assistir a uma espécie de polifonia destes lugares sofridos de Julie.

O passado impõe-se. A partitura que Julie destruiu, afinal tinha sido copiada, numa procura de reabilitar esta última composição, ainda que incompleta. A música como metáfora da vida de Julie, também ela inacabada, com possibilidades de a retomar.

Julie descobre que o marido, Patrice, tinha uma amante há vários anos. Afinal já se haviam perdido muito antes do acidente.

O realizador surpreende-nos quando a partir deste momento Julie se mostra mais decidida em contactar com partes do seu passado. 

A consciência da traição surge como um ponto de viragem na vida de Julie. Alguma coisa que vem de fora atinge alguma coisa de dentro. O aprés-coup como um agente de transformação e significação de perdas anteriores (6).

Julie não fica na inveja, no ódio destrutivo. A partir deste momento decide oferecer a casa de família à amante do marido que se encontra grávida e, tem vontade de retomar a música, trabalhando com Olivier na sinfonia inacabada. No passado, quando vivia com Patrice, Julie parecia ter uma pseudo vida.

A verdadeira libertação de Julie acontece quando aceita o amor de Olivier e quando mostra afecto e generosidade para com os outros. Para Ogden (7), a capacidade individual do enlutado liberta-o na luta entre a vida e a morte, enquanto a melancolia o congela.

Talvez seja esta capacidade de amar que ajudou Julie a reconstruir-se dos destroços. 

Quase no final do filme, quando Julie vai ter com Olivier, leva consigo a partitura que tinha estado a compor. Fica a esperança de que Julie possa assumir a sua faceta de criadora, criadora também da sua vida. Parece retomar a sua vida mais real, mais vivida agora no presente. Verdadeira liberdade? Agora reúne mais condições para ser quem é, mais próxima da sua verdade psicológica. Tal como no trabalho analítico, Prochet coloca-nos dois caminhos possíveis: Repetição ou recriação? Vingança ou perdão? Omnipotência ou humanidade?

Neste filme destaca-se a força transformadora da crise. A partir daqui, surge algo de inédito, imprevisto. Julie equilibra-se e encontra-se.

Na sequência final, desprovida de diálogo e enriquecida pela música de Preisner — Song for the Unification of Europe, Julie’s version (8) — entramos numa dimensão onírica, quando Julie aceita o amor de Olivier. Lembra o espaço uterino. Renasce qualquer coisa em Julie. Esta assume a relação de amor. E termina com lágrimas de alegria.

Como nos diz Miranda chegou “O admirável mundo novo”. 

AUTORA
Sílvia Monteiro
Psicóloga \ Psicoterapeuta Psicanalítica \ Membro Efectivo da Sociedade Portuguesa de Psicologia Clínica (SPPC).
E-mail – silvia.m.monteiro@outlook.com

REFERÊNCIAS
1. Prochet, N. (2017). A tempestade de Shakespeare e a questão do perdão: lembrar sem pesar para poder ainda sonhar (p.31-38). In Sérgio, P.; Prochet, N. (org) Psicanálise e Cinema. 5(5). As paixões segundo Shakespeare: ontem, hoje, sempre. Rio de Janeiro.
2. Bernard, R.; Woodward, S. (2016). Krzysztof Kieslowski Interviews. United States of America, University Press of Mississippi.
3. Botella, C.; Botella, S. (2005). The Work of Psychic Figurability. Mental States Without Representation. London, Routledge.
4. Zizek, S. (2013). Krzysztof Kieslowski, David Lynch, Andrei Tarkovski, Alfred Hitchcock. Lisboa, Orfeu Negro.
5. Beckett, S. (2006). Mal Visto, Mal Dito. Lisboa, Quasi Edições.
6. André, J. (2008). O acontecimento e a temporalidade. O après-coup no tratamento (p. 139-167). In Psicanálise e cultura. 31(47), São Paulo.
7. Ogden, T. (2012). Creative Readings. Essays on Seminal Analytic Works. London, Routledge.
8. Zbigniew Preisner “Song fot the Unification of Europe – Julie’s version

TRAILER

FICHA TÉCNICA
Título original — Trois Couleurs: Bleu
Título inglês — Three colours: Blue
Título português — Três cores: Azul 
Ano — 1993
Duração — 94 min
País — França
Direção — Krzysztof Kieslowski 
Argumento —  Krzysztof Kieslowski e Krzysztof Piesiewicz
Produção — Marin Karmitz
Fotografia — Slawomir Idziak
Música — Zbigniew Preisner
Edição — Jacques Witta
Elenco — Juliette Binoche, Hélène Vincent, Emmanuelle Riva, Benoît Régent, Florence Pernel, Charlotte Véry

SINOPSE
Após a morte do seu marido Patrice, um grande compositor, e da sua filha Anna, num acidente de viação, Julie decide começar uma nova vida, anónima e independente, livre de quaisquer compromissos, sentimento de pertença ou amor. 
Essa existência fantasmagórica é abandonada quando decide envolver-se na obra inacabada do seu marido.