TRÊS PLANOS — Three Floors (2021)

— MARIA LUÍZA SALOMÃO —

Nanni Moretti, diretor do filme Tre Piani, é ator, roteirista, produtor. Seus filmes, são de autoficção, sátira e, em alguns, como neste, traz reflexões íntimas e profundas sobre relações familiares. Moretti é também ativista político.

Lembrei-me de uma frase que abre o romance Anna Karenina, de Tolstoi: “todas as famílias felizes se parecem entre si, as infelizes são infelizes cada uma à sua maneira.”

A metáfora espacial, três andares em um edifício, tetos que se tornam pisos para outros andares, é boa metáfora para pensar as situações de três famílias vizinhas, próximas e distantes. A cena inicial do filme mostra a violenta eclosão de uma situação a envolver as três famílias: Andrea, embriagado e desgovernado, a arrombar o andar térreo, deixando a menina Francesca abalada, e a gestante, quase em trabalho de parto, na rua, atônita, ao assistir ao atropelamento e morte de uma mulher. Três famílias envolvidas.

Família é uma instituição que guarda conflitos, um microcosmos a espelhar as misérias da condição humana — originária, precária, mas também possibilidades de crescimento, que surgem na passagem de gerações: avós, pais e filhos.

Os personagens são ambivalentes, indefinidos, como na vida. Penso na incapacidade de perdão no choque entre gerações, na dramática ausência de empatia que permeia todas as relações. O espectro de uma terrível solidão dos personagens.

As famílias pertencem a uma mesma classe social, a viver em Roma. Temos que aprender a ler as imagens, há que ler os aspectos implícitos, invisíveis, como são os conflitos mais profundos nas famílias.

O QUE NÃO PERDOO, RETORNA

Andrea, filho bêbado e inconsequente do casal de juízes, adolescente sem remorso, aparentemente, em conflito com o pai Vittorio (Nanni Moretti). O pai condena o filho, Andrea agride fisicamente o pai, e acaba preso por cinco anos. O pai exige que Dora, a mãe, escolha entre ele, o marido, ou o filho. Escolha cruel, quase perversa. O pai mata simbolicamente o filho e, posteriormente, é o filho que mata os pais, ao sair da prisão, penalizando também a mãe. Esta ruptura sugere que algo profundo acontece nesta família.

Não há referências ao passado das famílias. Acompanhamos ações e suas consequências.

Posso imaginar que houve algum tipo de privação na vida de Andrea, na relação familiar.

O TEMPO

No filme, passam-se cinco e dez anos após o acidente.

Andrea, ao sair da prisão, encontra a mãe e acusa os pais de terem sido TÓXICOS. Acusa o pai por ter agido com ele como um juiz, condenando-o, quando criança, por pegar alguns centavos de sua carteira. Os atos antissociais de Andrea revelam uma esperança, quando ele declara que quer buscar o caminho dele. Quer, e descobre outro tipo de ambiente familiar (1), longe dos pais.

Quando Andrea se torna pai, dez anos depois, vemos que encontrará outro ambiente, na figura de Luigi, seu sogro, um benfeitor que adota refugiados negros, e os ajuda, ao intermediar doações. Luigi conhece a mãe de Andrea, Dora, quando ela se torna viúva e vai doar as roupas de Vitorio, que morrera.

Luigi conduz Dora à casa de Andrea no campo, trabalhando como apicultor. Andrea não quis ir ao enterro do pai. Tem outra figura parental, Luigi, conciliador e acolhedor, um ambiente facilitador e não tóxico. A paternidade de Andrea parece contribuir para sua transformação, e posterior aceitação da mãe, Dora, agora avó de Ludovico, seu filho recém-nascido.

O SEGUNDO NÚCLEO FAMILIAR

Lúcio é pai de Francesca, de 7 anos, a criança que se paralisa com a entrada violenta de Andrea na casa da família, no térreio. Lúcio imagina, delira, que Francesca possa ter sido abusada por Renato, um idoso aparentemente com Alzheimer. Vemos uma violenta ausência de empatia em Lúcio: uma obsessão em querer provar que Renato abusou de Francesca.

Paradoxalmente, Lúcio abusa de Charlotte, neta de Renato. Consequência: a avó e a mãe de Charlotte movem um processo contra Lúcio, que se estende por 5 anos. O casal Lúcio-Sara se separa. Dez anos depois, Francesca revela ao pai, aos 17 anos, saindo para estudar fora, que Renato era como um avô querido.

Lúcio é declarado inocente e se safa de uma condenação. Charlotte convence a avó, indignada com a violência de Lúcio contra Renato, a retirar a queixa. Charlotte aconselha Lúcio a não relatar para Francesca o que houve entre eles, mostrando uma empatia, absolutamente ausente em Lúcio. Ao mesmo tempo, Francesca parece perceber que houve uma atitude perversa de Lúcio, que ela perdoa, sendo a vulnerável, e, paradoxalmente, o sistema jurídico representando a sociedade não penaliza.

A vulnerabilidade de Lúcio, sua incapacidade de administrar as intensidades emocionais, sua obsessão, podem ter impactado mais Francesca do que a própria situação vivida por ela – o próprio acidente, o se perder no parque com um idoso que ela mesma percebera, mesmo criança, que estava doente e, no entanto, ligada a ele com a afeição de neta.

O TEMPO E A PASSAGEM DAS GERAÇÕES

Nascimento, MORTE, loucura, crescimentos. Mutações, na passagem do tempo.

A EMPATIA presente, como uma esperança de novos tempos, na segunda geração.

Com Andrea, que busca o perdão do marido da mulher que atropelou e matou, dez anos depois, e uma família mais calorosamente afetiva. Com Francesca, a assegurar ao pai que Renato era um avô adotivo bondoso. Com Charlotte, que perdoa Lúcio pela perversa forma como a usa. Os laços de afeto caracterizam as relações das novas gerações.

Lúcio pede desculpas apenas dez anos depois. O que não perdoamos, retorna. Insiste, resiste, persiste. Exige trabalho psíquico.

As figuras masculinas, Vitorio, Lúcio, o marido eternamente ausente de Monica, se apresentam arrogantes, dogmáticos.

As mulheres, segundo Moretti, são mais capazes de olhar o futuro e buscarem novas relações. Talvez, melhor dizendo, a função feminina, que move também Andrea, o adolescente turbulento que sofre transformação com o nascimento do filho.

Não é o tempo que resolve as situações traumatizantes, é a forma como se desdobra o trabalho de cada família para lidar com os estragos psíquicos, com as cicatrizes, ou com as feridas abertas.

O TERCEIRO NÚCLEO FAMILIAR – A LOUCURA

Monica é a jovem mãe, que assiste ao atropelamento de Andrea, em trabalho de parto e que vive uma extrema solidão. Cuida de sua mãe internada em Casa de Repouso, e teme enlouquecer como a mãe. Vive uma solidão extrema: Giorgio, o marido, é descuidado em relação à vulnerável situação de Monica.

A única companhia de Monica é a filha Beatrice. Monica tem delírios e alucinações e, apesar de Giorgio estar ciente delas, mostra um distanciamento e acaba por exigir de Monica um isolamento. Giorgio tem um irmão, mas proíbe o contato da mulher com ele. Dez anos depois, Giorgio e Monica têm um segundo filho, meio que ignorando as dúvidas de Monica. Giorgio continua sua vida profissional apartado de Monica.

Em extremo isolamento, Monica delira que tem a companhia do cunhado, rejeitado por Giorgio. Não consegue suportar a situação de se ver novamente sozinha, com Beatrice agora com dez anos e o recém-nascido, um segundo filho.

Estar assim abandonada parece levar Monica a enlouquecer, e abandonar o marido, os filhos, como uma única resposta possível. Uma jovem mãe desamparada nesta função delicada e complexa de cuidar de um ser totalmente dependente.

Ao final, Beatrice vê Monica retornando à casa. Beatrice deixa as chaves com a vizinha, e o pai, ela e o irmãozinho vão para casa da avó paterna. Monica, em telefonema diz estar fazendo uma viagem com a mãe, mas está diante de trilho do trem. Parece uma cena alusiva ao suicídio de Anna Karenina e Madame Bovary.

Não sabemos se Beatrice alucina, delira, ou se se torna capaz de guardar a mãe. A mãe surge sorrindo para Beatrice, ao fundo dos casais dançantes, ao final do filme.

Desenlace misterioso – Beatrice enlouquecerá, tal como a avó materna, tal como Monica? Um efeito transgeracional?

O sorriso de Mônica, ao final, sugere que ela fez o possível, nas circunstâncias: fora insustentável gerar mais um bebê, a quem deveria cuidar. Fuga para a loucura? Forma última de autoproteção?

Imaginei um suicídio para Monica. Mas o que é a loucura, senão a morte psíquica?

Beatrice parece esperar o retorno de Monica, mas para onde retornaria Monica? Loucura pode ser viagem sem volta.

Na família de Monica, a fuga para a loucura parece ser a única saída protetora para a angústia extrema – representada pelo corvo, a morte psíquica.

EMPATIA

Pensei em algumas questões sobre a empatia, a partir de Stefano Bolognini (2). Como ser autenticamente empático? O que parece não ocorrer com os homens nas famílias presentes em Tre Piani.

1. Reconhecer que o Outro é um ser complexo, assim como posso ser complexa no meu julgamento, na minha percepção do outro.

2. Reconhecer que posso falhar na escuta do outro. Em geral há a angústia que impede de ouvir o outro até tentar compreender o que ele quer me comunicar e até mesmo o que ele não quer me comunicar.

3. Reconhecer que o encontro com o outro provoca uma determinada atmosfera, e ela precisa ser refletida, assimilada, pensada. Como Dora, que parece só conseguir expressar algo mais genuíno dela mesma, quando fala pela secretária eletrônica, com o marido já morto.

4. Aprender a relacionar gestos e atos, sentidos e pensamentos, aparentemente desconexos, absurdos. Lúcio não percebe como seu desvario (ou seu desejo pedófilo?), pode ter levado a filha Francesca a ficar impactada: parece ter mais projetado conflitos dele, Lúcio, na filha.

5. Pais devem se lembrar como eram quando crianças, quando adolescentes, ao criar filhos e netos. Filhos podem ser muito diferentes dos pais, mas quando pais se lembram como foram, quando crianças ou adolescentes, ampliam seu imaginário e podem acompanhar os filhos. Sem se envergonhar com pensamentos, sensações, fantasias e, assim, não acusá-los indevidamente.

6. Saber que os filhos, tal como já fomos no passado, podem projetar distorções sobre nossos sentimentos. A questão de ser pedra (quando adolescentes a atacar os pais) ou telhado de vidro (quando pais supostamente atacados).

Resumidamente: estar disposto e aberto para a complexidade requer muita capacidade para ser contrariado.

Este filme, nestes nossos tempos sombrios, veio muito a calhar para estas questões de como conviver em família.

AUTORA
Maria Luíza Salomão
Membro Efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP) \ Membro da Academia Francana de Letras, cadeira 21 \ Mediadora de Leituras na Biblioteca Pública Municipal de Franca \ Correspondente da Academia Feminina Sul-mineira de Letras, cadeira 13
E-mail — sm-salomao@uol.com.br

REFERÊNCIAS
1. Winnicott, D. W. ( 2002). Privação e delinquência. Martins Fontes.
2. Bolognini, S. (2008). A Empatia psicanalítica. Companhia de Freud.

TRAILER

FICHA TÉCNICA
Título original — Tre Piani
Título inglês — Three Floors
Título português — Três planos (BR) \ Três andares (PT)
Ano — 2021
Duração — 119 min
País — Itália
Direção — Nanni Moretti
Argumento — Nanni Moretti – Federica Pontremoli – Valla Santella — adaptação do romance Trois étages (2015) de Eshkol Nevo
Produção — Nanni Moretti, Domenico Procacci
Música — Franco Piersanti
Elenco — Alba Rohrwacher – Margherita Buy – Nanni Moretti – Riccardo Scamarcio – Stefano Dionisi – Denise Tantucci – Anna Bonaluto – Elena Lietti – Tommaso Ragno – Paolo Graziosi

SINOPSE
Tre Piani foca famílias, vivendo em um mesmo edifício, que são implicadas por um acidente que envolve questões íntimas referentes a cada uma. A cena inicial é chocante, em que um adolescente arromba o andar térreo do prédio, atropela e mata uma pedestre, e é testemunhado por uma gestante, que tem a bolsa rompida, e uma criança de sete anos, atônita, que vê sua casa invadida intempestivamente por este vizinho completamente embriagado. Comparecem três gerações – avós, filhos, netos na passagem do tempo, mostrando como cada uma das famílias irá lidar com este acontecimento trágico. Envolve questões referentes à psicose, perversão, e conflitos complexos que mostram como cada família tem seu drama particular e, ao mesmo tempo, acena para alguma esperança na geração mais jovem, mais capaz de empatia e perdão.