LOUCOS SÃO OS OUTROS — Shutter Island (2010)
— JAIME MILHEIRO —
A partir de entrevista concedida à jornalista Cláudia Azevedo (1)
Em “Shutter Island”, de Martin Scorsese, Leonardo DiCaprio interpreta um U. S. Marshall enviado para uma ilha de loucos criminosos para investigar o desaparecimento de uma doente que havia assassinado três filhos. Pouco a pouco, o espectador percebe que se trata de um doente mental fechado na sua “ilha” interior, em fuga do seu enorme sofrimento no mundo exterior. O que achou do filme?
É um excelente filme, de tema eterno e de inquieto desenvolvimento.
Não será o melhor de Scorsese, em minha opinião. Autor de culto, dos seus mais de trinta filmes distingo quatro obras primas: “Táxi Driver”, “Cabo do Medo”, “Touro Enraivecido” e “Gangs de Nova York”.
Este “Shutter Island” parece-me do mesmo nível do “Entre Inimigos” que há três anos lhe proporcionou o adiado Óscar, com a nota curiosa de ambos deambularem sobre a mente dos humanos. Mas senti-os, um e outro, excessivamente impregnados de racionalidade e pragmatismo. O espectador liga-se à narrativa e só demasiado tarde lhe percebe o fundo alucinatório e confusional.
O anagrama das quatro pessoas sobrepostas na cabeça de DiCaprio, a exemplo do que acontece nos sonhos reais, constitui uma belíssima ideia, mas falta-lhe “penumbra”.
Como assim?
Falta-lhe o sentimento de estranheza que a doença mental sempre acarreta no próprio e em quem a observa. O espectador julga-se num filme policial, sem a penumbra psicológica que noutras obras Scorsese eficazmente soube imprimir. A mira policial nunca será uma boa porta de entrada para as humanas mentalizações, diga-se de passagem.
Dito doutra forma, no filme há um inteligente mistério mas falta-lhe a misteriosidade originária, característica da mente. Com uma agravante: há indícios de que Scorsese considerou a questão mas não a desembrulhou convenientemente.
Quais indícios… não vi?
Poderá ser apenas uma interrogação minha, mas que levaria Scorsese a procurar o actor preferido de Ingmar Bergman, cineasta que magnificamente associava sonhos, simbolismos e realidades, para representar o homem da sabedoria e da consideração, naquela ilha de loucos?
Max von Sydow, que fez treze filmes com Bergman, não estará ali por acaso, em minha opinião. Foi curioso reencontrá-lo. Aportaria a penumbra de que o filme carece.
Mas quem atingiu tal patamar?
O filme da minha vida, como habitualmente se exemplifica, foi o “Oito e Meio” de Fellini. Obra prima inquestionável, representa o mais alto cume da estética, da poesia e do humano conhecimento.
Deixou-me atordoado, profundamente combalido. Sonhei com os sonhos lá mostrados, conduzi-me imaginariamente para situações semelhantes, diverti-me a pensar quanto gostaria de saber proceder como o autor, apesar de nem uma fotografia decente saber tirar.
Só largos anos depois percebi que Frederico Fellini o tinha realizado no seu terceiro ano de Psicanálise. Revi-o então com outros olhos, na misteriosidade compartilhada.
Noutra referência, lembraria que Marlon Brando, provavelmente o maior actor da história do cinema, dizia que a sua passagem pelo divã lhe teria agenciado superiores capacidades de representação.
Fellini e Brando alcançaram elevadíssimos graus de penumbra. Scorsese e DiCaprio visitam-na por vezes, tal como Scorsese e De Niro. Aguardemos a próxima sessão.
É difícil explicar tudo isto em palavras ou teorizações. A Arte transmite-se nas zonas profundas, sem racionalismos nem academias.
Mas que interpretação faz do filme?
Cruzando loucuras, realidades e simbolismos, o filme acentua duas vertentes fundamentais dos seres humanos: a relação entre a realidade externa e a realidade interna, a relação entre a psicose e o mundo dos outros.
Isolamento, marginalidade, insularidade, furacões, caracterizam o sentir do psicótico sobre o mundo e o sentir do mundo sobre si mesmo.
O radical julgamento que a sociedade faz do louco, o radical julgamento que o doente faz de si próprio, somam-se num radicalismo separador (clivagem) e numa dinâmica (des)construtiva.. Será essa a sua mensagem.
Separações… prisões?
O psicótico encontra-se irremediavelmente preso num Alcatraz de dentro, em guarda contra furacões que poderão implodir. Rememora angústias terrivelmente destruidoras, as maiores que o ser humano pode enfrentar, enquanto os outros lhe criam um Alcatraz de fora, sem chave nem fechadura, do qual só de ferry-boat poderá fugir.
O filme exemplarmente descreve essas prisões-separações.
Qual o diagnóstico da personagem interpretada por Leonardo DiCaprio?
Era um paranóico delirante, com alucinações auditivas e visuais, colocado numa ilha longe de si em busca de lobotomia.
Deportá-lo para o fim da história, para a guerra da secessão, ou para o holocausto nazi, levanta interessantíssimas reflexões. Entreabre a animalidade doentia que o ser humano transporta.
Os paranóicos podem conservar muitas partes lúcidas significativas, traduzidas em comportamentos inteligentes e ocultações das partes disfuncionais. Era o caso.
Revê esta personagem em alguns dos seus doentes (actuais e antigos)?
Vi casos semelhantes nos manicómios.
Para além dos altíssimos muros e dos electrochoques à descrição, não havia outra forma de os controlar. Eram pessoas que por serem doentes deixavam de ser.
Hoje, salvo alguns casos que na televisão mercadejam os seus próprios delírios (risos) já ninguém chega àquele ponto. Tratam-se mais cedo, em práticas adequadas. Os conhecimentos psicanalíticos e os neurolépticos alteraram tudo.
Só em especialíssimas circunstâncias será possível reencontrar aquele DiCaprio.
As pessoas normais também “enlouquecem”? No filme, a personagem “enlouquece” após a morte dos filhos e da mulher. Quem não enlouqueceria?
Tragédias e descompensações a todos podem acontecer, perturbando-lhes princípios e estruturas. Mas nem todos se desmoronam, não dependendo o deflagrar da queda do quantitativo de furacão.
Há consistências psicológicas fundamentais, adquiridas na infância e na adolescência, alturas em que todas as psicopatologias se equacionam. Os processos construtivos e as modelagens alcançadas tornam-se decisivos na resistência e na coesão. Nos acontecimentos graves, todos os humanos se automatizam em reconstruções. Conflitos idênticos poderão diferentemente resolver-se.
Há ainda a textura cultural. Deprimir-se, no passado, era adoecer psiquiatricamente. Hoje, quem não estiver deprimido não é filho de boa gente (risos).
Todas as pessoas “enlouquecem”, mas nem todas enquadram patologias de livro.
“Todos os seres humanos têm algo que os podem tornar monstros.” Concorda com a afirmação de que os traumas podem criar monstros?
Os traumas não criam “monstros”. Apenas lhe acrescentam fermentos e potencialidades.
O “stress pós-guerra”, por exemplo, depende mais da culpabilidade do sujeito, como vimos no filme, que das situações realmente vividas. Culpabilizado pelo morticínio em que havia participado, concedendo-lhe imenso espaço psicológico, será difícil sopesar-lhe a dimensão no delírio.
No início do filme é dito: “a sanidade não é uma escolha: não se pode escolher ficar curado.” Concorda?
Completamente.
A Saúde Mental nunca será uma opção consciente, nem uma compra de farmácia. Será um arranjo singular, em permanente agendamento, no edifício de cada um. Não será preciso puxar a criança para ela crescer, nem implorar para que ela tenha saúde. Será preciso, sobretudo, retirar as ervas daninhas.
O ser humano utiliza inconscientes complexidades. A evolução concedeu-lhe um aparelho de pensar, de sofrer, de emocionar, absolutamente decisivo na sua Saúde/Doença. Aparelho que sempre o “limpa” ou “intoxica”, num jogo de prós e contras.
“Há um eterno estigma à volta da doença mental”. Os loucos acham sempre que os outros são mais loucos?
O grande doente nunca estará doente. Atribui aos outros o que em si mesmo não aceita.
“Loucos são os outros” (2) como num livro com esse título os descrevi.
São banais tais projecções.
Trata-se de mecanismos que nalguns chegam a pontos de ruptura e descompensação.
Como vê a associação entre loucos e criminosos, loucura e criminalidade, doença psiquiátrica e violência/perigosidade?
A loucura sempre foi envolvida em tais associações.
Por isso se estigmatizou, mesmo que todos conheçamos crimes de loucos que apenas aconteceram por eles serem perseguidos, repudiados e agredidos.
Associar loucura a criminalidade é um erro, embora haja doentes que exijam especial contenção.
A personagem em causa inventa uma história alternativa, faz “bluff”. É comum os doentes mentais agirem assim?
Um paranóico, no seu delírio, cria histórias em que profundamente acredita. Não suporta as angústias, inventa. O seu grande problema será o quantitativo de dor e a sua subjectiva (in)suportabilidade.
A mulher do protagonista, que o próprio matou, aparece-lhe em alucinações e pesadelos a dar conselhos, a dizer que a deixe partir. Confessa que não consegue. O que será preciso fazer para “deixar partir” os mortos queridos?
Num certo sentido, não será preciso actuar. Eles partiram, deixemo-los partir.
Importa elaborar a perda, recuperar afectos e ambições, no silêncio de quem dispensa psiquiatras e psicólogos.
Só em casos especiais, quando a elaboração não flui na temporalidade desejada e o sofrimento avassala sem limite nem fim, haverá necessidade de apoio.
Mesmo quando se perde um filho?
Mesmo aí. É muito grave, mas fico contente quando a mãe me traz um sonho. Sonhar com o filho perdido rompe bloqueios e avança dinamismos. Já podem pensar de novo. “Ressuscitam-no”, alcançam convivências com a dor da perda.
O mesmo alcance irromperá na vida acordada. Todos os seres humanos têm essa capacidade.
“A psicocirurgia usa-se ainda, em circunstâncias extremas.” Falando do tratamento, o psiquiatra no final revela que o protagonista estava “a ressacar” por não tomar a cloropromazina…
Por mais absurdo que pareça, há datas falhadas no filme. A história passa-se em 1954 e o doente estaria a tomar cloropromazina há dois anos. Mas este produto, descoberto em 1952 em Paris para outros fins, só em 1954 passou a usar-se nas psicoses, na sequência dos trabalhos de Delay e Deniker. Nessa época, a França estava muito longe dos Estados Unidos. Seria pouco provável que alguém o conhecesse fora de portas.
No filme também se usa a palavra “neuroléptico”, apenas inventada em 1955.
Fica-se com a ideia de que tudo não passou de um último “teste” antes da lobotomia a executar no farol. Porquê no farol?
O farol faz parte da linguagem simbólica do filme. A psicocirurgia representaria ainda um farol terapêutico, nos Estados Unidos dos anos 50, impulsionada por Walter Freeman, mas transformava em “zombies” grande parte dos submetidos.
O Dr. Jaime Milheiro elaborou, com outros representantes dos Ministério da Saúde e da Justiça, a nossa Lei de Saúde Mental. Em que casos é possível hoje recorrer à psicocirurgia?
Segundo a Lei de Saúde Mental de 1998, um acto cirúrgico no cérebro para tratamento psiquiátrico terá de ser requerido ao Conselho Nacional de Saúde Mental. E só poderá deferir-se quando dois psiquiatras de reconhecida competência, por ele indicados, observarem o doente e emitirem pareceres favoráveis.
Fui Presidente desse Conselho durante seis anos. Tive apenas dois pedidos, ambos em circunstâncias extremas: uma perturbação obsessiva que completamente manietava a vida da pessoa, uma melancolia tão grave e crónica que a todas as terapêuticas resistia.
Apenas se poderia mitigar a brutalidade do sofrimento.
AUTOR
Jaime Milheiro
Psiquiatra \ Psicanalista \ Ensaísta \ Membro Honorário e ex-Presidente da Sociedade Portuguesa de Psicanálise (SPP) \ Ex-Presidente do Conselho Nacional de Saúde Mental e do Colégio de Psiquiatria da Ordem dos Médicos \ 12 livros publicados.
REFERÊNCIAS
1. Milheiro, J. (2015). “Shutter Island” de Martin Scorsese. Entrevista conduzida por Cláudia Azevedo (publicada no Notícias Médicas em Março 2010) in: Analista de Interiores… Misteriosidade. Lisboa: Âncora, pp.219-231.
2. Milheiro, J. (2000). Loucos são os outros… (2 ed.). Lisboa: Fim de Século.
3. Web:www.shutterisland.com
FICHA TÉCNICA
Título original — Shutter Island
Título português — Ilha do Medo
Ano — 2010
Duração — 148 min
País — E.U.A.
Direção — Martin Scorsese
Argumento — Laeta Kalogridis, baseado no Livro Shutter Island de Dennis Lehane
Produção — Mike Medavoy, Arnold w. Messer, Bradley J. Fischer, Martin Scorsesse
Fotografia — Robert Richardson
Música — Robbie Robertson – Vários
Edição — Thelma Schoonmaker
Figurino — Azalia Snail, Bettina Hastie, Cookie Lopez, Courtney McClain, David Davenport, Debbie Holbrook, Denise Andres, Juan Lopez, Rosa Colón, Samantha Shedlock Sandy Powell Tina Ulee
Maquiagem — Aimee Macabeo, Alan D’Angerio, Bridget O’Neill, Christine Fennell, Elizabeth Martinelli, Jerry Popolis, Kathryn Blondell, Manlio Rocchetti, Michael Ornelaz, Patricia Regan, Sherryn Smith, Sian Grigg, Teressa Hill
Elenco — Leonardo DiCaprio, Mark Ruffalo, Ben Kingsley, Michelle Williams, Emily Mortimer, Patricia Clarkson, Max von Sydow, Jackie Earle Haley, Elias Koteas, John Carroll Lynch, Ted Levine, Christopher Denham, robin Bartlett, Nellie Sciutto, Ruby Jerins, Jill Larson
SINOPSE
1954. Teddy Daniels (Leonardo DiCaprio) investiga o desaparecimento de um paciente no Shutter Island Ashecliffe Hospital, em Boston. No local, ele descobre que os médicos realizam experiências radicais com os pacientes, envolvendo métodos ilegais e anti-éticos. Teddy tenta buscar mais informações, mas enfrenta a resistência dos médicos em lhe fornecer os arquivos que possam permitir que o caso seja aberto. Quando um furacão deixa a ilha sem comunicação, diversos prisioneiros conseguem escapar e tornam a situação ainda mais perigosa.(https://www.adorocinema.com/filmes/filme-132039/)