MORTA OU VIVA? — The Lost Daughter (2021)

— TERESA ROCHA LEITE HAUDENSCHILD —

Leda é uma mulher de 48 anos que temia ser puxada para trás, “para a mãe e uma cadeia de mulheres mudas ou zangadas” (2-p.87). Maggie Gyllenhaal, partindo do romance homónimo de Elena Ferrante (2), repete uma imagem, do início ao final do filme, colocando a protagonista deitada de bruços à beira do mar, ameaçada pelas ondas.

Aos 18 anos foge para Florença e para uma vida acadêmica, “culta e reflexiva” que idealiza como libertadora de seu “eu”. Casa-se com um professor universitário e tem duas filhas, Bianca e Marta. Nesse momento aparece a mãe surda e muda quanto à aproximação psíquica, à falta de revêrie e à incapacidade de aprender com a experiência (1). Ao invés de escutar os sentimentos das filhas e ajudá-las a dar nome e significado emocional, impõe-lhes que decorem frases de seus autores preferidos (que falam de experiências corporais, na maioria das vezes). A turbulência emocional impera nas relações cotidianas e Leda se acalma lendo e escrevendo. Disciplina as meninas para que não roubem seu espaço. Quando se sente roubada, reage batendo na filha e assustando-se depois: “Um filho é um turbilhão de aflições.” (2-p. 46)

Foge desse “turbilhão” para Londres, onde é elogiada e torna-se amante de um escritor famoso, tem vários casos com outros, “como alguém que conquista a própria existência”. Achava que “amava as filhas demais e que o amor por elas impedia que eu me tornasse eu mesma.” (2-p.143)

Retorna “após 3 anos e 36 dias … por amor a mim mesma … percebi que eu não era capaz de criar nada meu que pudesse realmente estar à altura [da criação] delas.” (2-p.144)  

Leda continua a disciplinar as filhas como fez consigo mesma desde o início da adolescência, sente que “cumpriu seu dever de mãe: mantive-as distantes de todos os perigos de hoje em dia.” (2-p.130)

Mas conta que quando “brincava de ser a boneca de Bianca, brincava sem alegria, era muito infeliz como mãe.” (2-p. 57)

De férias na Grécia, continua a afastar as dores psíquicas, enterrando-se sob livros a partir dos quais faz sua programação para as aulas. O lugar ocupado antes pelas filhas em sua mente é agora ocupado diariamente por seus alunos.

Mas eis que a família napolitana, surge à sua frente, na praia. “Eram exatamente como a parentada da qual eu tinha fugido quando garota. Eu não os suportava e, no entanto, não me largavam, estavam todos dentro de mim.” (2-p.106)

A jovem mãe e a filha, brincando através de um objeto transicional, a boneca, atraem irresistivelmente o olhar de Leda. A cena idílica de Nina, a mãe, ensinando a filha Elena a amamentar a boneca, aproximando-a do seio. Da filha banhando a mãe e sua boneca com água do mar…

A menina desaparece na praia e Leda a encontra com a boneca, que rouba e leva para sua casa.

A busca da boneca é feita pela família napolitana e contagia a praia por vários dias. Elena adoece e sua mãe se desespera. Leda assiste a tudo, incólume.

Nina, ao visitá-la após Leda lhe devolver a boneca, pergunta: “Achou que a boneca não era boa para a gente?”, idealizando-a como uma mulher sábia. 

Penso que Leda a pegou porque achou que a boneca seria boa era para ela mesma. Poderia repor a sua boneca, descuidada pela filha a quem a dera, e despedaçada por um carro após Leda jogá-la pela janela abaixo com violência. Um objeto transicional desmantelado. Perdido.

Leda, agora, cuidando da boneca, limpara suas marcas, comprara-lhe roupas, e retirara de sua boca a minhoca enfiada por Elena dentro dela ao brincar que a boneca estava grávida. 

Leda cuida materialmente da boneca, mas para brincar, precisaria ter uma mãe genital, com rêverie, internalizada. Se a boneca é Leda e é também a mãe dela, continua inanimada, e “despedaçada”, como a mãe de Leda dizia sentir-se. Não há a vivência da experiência emocional de um brincar com um objeto animado pela rêverie de uma mãe.

Um objeto semitransicional poderia ser Leda atrair a atenção das filhas descascando a laranja sem interromper o corte, resultando numa serpentina. Essa serpentina poderia ser a continuidade da atenção das filhas a ela, dela às filhas. Estar juntas por um momento. Mas o centro das atenções é Leda e sua performance, que a filha imita, tentando “ser” como a mãe através do “fazer” (4). Não resulta em um brincar compartilhado, a cada momento, onde a rêverie da mãe ajudaria a “sonhar” o presente, nunca repetível, como a vida.

Leda satisfaz as filhas dando bens materiais, atenta em igualar quantitativamente as doações. Penso que a escuta psíquica das filhas, por ela, é ainda muito pobre. A proximidade psíquica e a linguagem íntima entre elas é rara, os diálogos são sobre as necessidades materiais ou a vida acadêmica. 

No meu entender, Leda tem uma família originária com funcionamento psíquico pré-genital, simbiótico, com predominância de relações de objeto parciais, narcísicas. Predominam defesas esquizo-paranóides onipotentes, identificações projetivas, fugas, idealizações alucinóides, controle, regidas pelo princípio de prazer-desprazer.

Foge desse ambiente, que poderia afogá-la, afogar seu desenvolvimento psíquico, mas equivocadamente pensa que a cultura e o ambiente acadêmico a tornariam uma “mulher sábia”. Como, apesar de sua sensibilidade, não introjetara uma relação primária com predominância de funcionamento mental genital, através de uma mãe que a valorizasse em sua singularidade desde o início, Leda não tinha autoestima. Assim, quando Hardy valoriza o seu talento, ela se torna imediatamente a sua amante. “Eu, eu, eu: é isso que eu sou, isso que eu sei fazer, isso é o que eu devo fazer” (2-p.119). E para “fazer” o que “deve” ela deixa a família e muda de cidade, ação tão determinada quanto quando se mudou de Nápoles na adolescência. 

Do mesmo modo que se sentira sequestrada pela vida doméstica, agora é sequestrada pela vida acadêmica, trabalhando doze horas por dia.

O lado esquerdo do cérebro, lógico-formal, intelectual, não cede espaço para o lado direito, afetivo, intuitivo. O conceitual ocupa o espaço da vivência emocional, a qual é sempre filtrada por aquele.

A partir dos fatos e cenas entre as pessoas à volta de Leda descritos de modo minucioso e muito concreto pela autora, podemos deduzir que ela ainda funciona predominantemente a partir de uma posição narcísica pré-genital, autocentrada em seu “eu”, sem atentar para a diferença e a singularidade de cada um. Confessa que gostaria de ser autossuficiente e não precisar de ninguém, (nem do marido, para gerar suas filhas). Vê-se como a atribuidora das qualidades às filhas, não reconhecendo a contribuição delas próprias e de outros na construção de suas personalidades.

Inveja a amiga que brincava com suas filhas meninas, e inveja Nina que brinca com Elena com a boneca. Inveja sua própria mãe que cuidou de suas filhas, não lhe agradece e ainda a acusa de prejudicar as meninas. Inveja a “aura encantada” das mulheres, que sente não ter (2-p.72).

Ao constatar a realização de uma experiência relacional fundamental, no brincar de Nina e Elena, o diálogo afetivo animado pela rêverie da mãe, retira a boneca do campo e acaba com a brincadeira.

A dor psíquica de Elena é expressa numa linguagem de corpo: a febre, a coriza e na regressão à identificação adesiva colando-se à mãe corporalmente.

Vivências pelas quais Leda deve ter passado em pequena e que não ganharam registro psíquico, simbólico. Por isso seu repertório onírico, afetivo-emocional, é ainda muito pobre.

Vivências que ela talvez quisesse refazer, brincando com a boneca. Mas para isso seria necessário um sujeito pensante para “brincar” com ela para que pudesse dar significado a suas experiências protossensoriais e protoemocionais (3), expressas através da linguagem do corpo e de atuações. Um psicanalista? 

Até agora, quando Leda sente alguma dor psíquica, é a linguagem do corpo que prevalece: tontura, suor, sufoco.

Quando Lille se confessa um pai cruel, ela diz ter sido também uma mãe cruel, e gruda sua cabeça no ombro dele, apoiando-se corporalmente, como fez Elena com Nina. No filme reaparece a imagem recorrente dela de bruços à beira do mar. Penso que nesse momento é invadida pelas “mulheres mudas e zangadas“ de sua cadeia transgeracional: é o inominável e o vazio de representações psíquicas que a assolam, ameaçando-a de partir para ações impulsivas, como bater nas filhas, aceitar o convite de Hardy e fugir de ser mãe. A mesma “determinação” impulsiva napolitana ocorre na reação agressiva de Nina após Leda devolver-lhe a boneca. Nina revida no ato, agredindo Leda com o alfinete que ganhara dela, fazendo-a sentir a dor aguda de sua penetração, provocando uma dor corporal equivalente às dores psíquicas infligidas à filha e a ela.

Ao trabalhar nas férias a noite toda, Leda diz que: “meu temperamento piorou, me tornei obstinada, às vezes irascível, era urgente que eu estudasse mais e com mais vigor.” (2-p.169)

Após vinte anos, continua encerrada na vida acadêmica, que a protege de estar em contato com seu self verdadeiro, escondido, ainda obscuro.

Longe das filhas, diz: “o que eu queria delas eu nunca entendi, nem mesmo agora” (2-p.65). Penso que o ser delas ainda lhe é obscuro, assim como o seu.

Entretanto reconhece o mistério da vida humana, do tempo da vida que passa, dizendo que agora suas filhas, distantes, “pertencem a um outro tempo. Eu as perdi para o futuro” (2-p.109). Reconhece que são diferentes dela, portanto terá que aceitar o desconhecido que virá delas (e dela mesma), tolerar o não saber… Contanto que permaneça no contato imediato com a realidade, não prevaleça o princípio de prazer-desprazer, e a fuga…

No final do livro, quando a filha pergunta se ela “está viva ou morta” Leda responde: “Estou morta, meu bem.” (2-p.174)

No final do filme responde: “Estou viva”.

Penso que a Leda do livro percebe que há algo morto nela, aquela “aura” de vida que reconhece não ter, soterrada sob as palavras dos livros, dos atos concretos, com pouco significado emocional.

A Leda do filme é despertada pela suave onda do mar que a salva de morrer. A autora do filme, através da imagem de Leda de bruços, como a boneca inanimada na areia da praia, nos incitou a perguntar durante todo o filme: está morta ou adormecida e pode morrer? E decidiu finalizar a história de Leda despertando-a para a vida.

AUTORA
Teresa Rocha Leite Haudenschild
Analista Didata e Analista de Crianças e Adolescentes da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP) \ Cofundadora do COWAPBrasil (Committee Women and Psichoanalysis da IPA) em 1999.
Email: thaudenschild@gmail.com
 
REFERÊNCIAS
1.Bion, W. (1963). Aprender da Experiência. In Elementos de Psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1966.
2.Ferrante, E. (2016). A filha perdida. Intrínseca.
3.Ferro, A. (2003). The Bi-Personal Field: Experiences in Child Analysis. London: Routledge.
4.Winnicott, D. (1971). O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975.

TRAILER

FICHA TÉCNICA
Título original — The Lost Daughter
Título em português — A Filha Perdida
Ano — 2021
Duração — 121 min
País — E.U.A. e Grécia
Realização — Maggie Gyllenhaal
Argumento — Maggie Gyllenhaal
Adaptação do livro The Lost Daughter de Elena Ferrante
Produção — Charlies Dorfman – Maggie Gyllenhaal – Osnat Handeslman-Keren – Talia Kleinhendler
Fotografia — Helene Louvart
Edição — Affonso Gonçalves
Música — Dickon Hinchiffe
Elenco — Olivia Colman – Dakota Johnson – Jessie Buckley – Paul Mescal – Dagmara Domińczyk – Jack Farthing – Oliver Jackson-Cohen – Peter Sarsgaard – Ed Harris

SINOPSE
Enquanto aproveita as férias sozinha em uma cidade praiana, Leda (Olivia Colman) fica obcecada por Nina (Dakota Johnson), uma jovem mãe que passeia com a filha. Logo, ela se sente desconcertada ao observar essa família que considera estranha.
Em um ato impulsivo, Leda será arrastada para as profundezas de sua mente. A própria experiência que teve com a maternidade ainda assombra a sua vida e agora ela terá que enfrentar consequências do passado. (https://cinema10.com.br/filme/the-lost-daughter)