O INOMINÁVEL DA VERGONHA — Manchester by the Sea (2016)

— SANDRA LORENZON SCHAFFA —

Tema da volta à cidade natal, da volta ao passado.

Lee deve voltar para Manchester, pequena cidade portuária de sua família de pescadores, voltar com urgência à morte de seu irmão Joe que o designou como tutor do sobrinho adolescente, Patrick.

Na cena inicial, o diálogo entre Lee e Patrick anuncia a importância decisiva do vínculo afetivo entre eles.

Lee — Se você pudesse levar um cara para uma ilha com você, e soubesse que estaria a salvo por ele, que ele seria a melhor pessoa para manter você feliz, se fosse entre mim e seu pai, quem você levaria?
Patrick (9 anos) — Meu pai.
Lee — Acho que você estaria errado nisso.

Não nos é revelado nesse momento que Joe e Lee têm conhecimento da doença fatal de Joe, descoberta um ano antes. Nem que essa luminosa manhã no pequeno barco pesqueiro de Joe é a manhã do dia da tragédia que arruinará a vida de Lee.

Antes disso vemos Lee, um homem solitário, vivendo em um subúrbio de Boston uma existência anônima como zelador de um condomínio, indiferente à condição de trabalhador em contato com o esgoto, o lixo, com provocações e agressões dos moradores.

Numa sequência o vemos atirar-se em desvantagem numa briga de bar provocada. Que germe insidiosamente parasita seu estado de anestesia afetiva?

No despojado apartamento, machucado da briga, três porta-retratos sobre um móvel.

Manhã seguinte é chamado para o hospital de Beverly/Manchester. Não chega a tempo para despedir-se do irmão.

“E alguém pode avisar minha mulher?” Momento de revelação do sujeito na fala. Nascimento da verdade na fala (Lacan). O ato falho assinala o tempo inatual do desejo em que o sujeito está. Apresenta-nos a realidade do que não é verdadeiro, nem falso: realidade psíquica.

Se pensamos como um exílio a vida de Lee em Boston é porque reconhecemos nela uma tela anteposta contra o olhar estigmatizante — obsceno — de que é alvo na cidade pequena de Manchester. Ali ele é ‘o cara‘. O ‘próprio‘. ‘Aquele‘ Lee. ‘O‘ Lee (‘The‘ Lee, lembremos que em inglês o artigo antes do nome pessoal não cabe, a não ser para marcar o estranho). Lee é ‘o cara‘ que não querem ver de novo. O cara marcado pela tragédia. Responsável pela morte dos filhos.

Após seu depoimento sobre o incêndio fatal, Lee é imediatamente liberado na delegacia de polícia. Sua reação iminente é tentar matar-se com a arma que arranca a um policial, mas fracassa.

Como o responsável pela morte de seus filhos poderia assumir a adoção do sobrinho, desejada pelo irmão?

Gabinete do advogado
Lee — Eu não posso ser o guardião de Patrick.
Wes — Eu entendo, é uma responsabilidade séria.
Lee — Não – eu quero dizer -, eu quero dizer, eu não posso.
Eu não posso.

Entretanto, o projeto de adoção segue elaborando-se.

Um diálogo agudo, ferino, desenvolve-se entre Lee e Patrick.

Lee mostra a Patrick os rifles colecionados por Joe.

Patrick — Vai me matar ou se matar?

Lee propõe vende-los para financiar a compra de um novo motor para o barco.

Nas réplicas carregadas de mútuo reconhecimento constrói-se uma base hesitante de reconstituição de paternidade. Com ela, a restauração de um projeto de reintegração à comunidade dos homens.

Um encontro inesperado com Randy estilhaça Lee.

A tragédia atingira Lee e Randy de modo distinto. Do ponto de vista de uma economia dos processos de luto, as duas personagens estão em lugares diferentes. Frente à tragédia, Randy teve o lugar da vítima, Lee, do responsável. Randy ultrapassa o tempo traumático, casa-se, acaba de ter um filho. Lee congela-se no tempo da perda.

As cenas que seguem ao encontro com Randy mostram o desmoronamento de Lee numa briga e um sonho.

Bar cheio de pescadores.

Lee bêbado puxa briga. Busca ser punido ou humilhado?

George intervém impedindo o pior.

Nessa noite, Lee em casa acende o fogão (para aquecer um molho), diante da TV, adormece. Uma mão de criança puxa-lhe a manga:
Pai?
Você não vê que nós estamos queimando?
Não querida… Vocês não estão queimando.

Lee acorda. Há fumaça vinda da cozinha.

Como não reconhecer nesse sonho citação, feita pelo roteirista, do sonho mais comovente da Interpretação dos Sonhos de Freud? Com esse sonho, Freud introduz o capítulo VII, fundamental, Sobre a psicologia dos processos oníricos.

“Um pai passou dias e noites inteiros junto ao leito do filho doente. Depois que a criança morreu, ele vai descansar num quarto contíguo, mas deixa a porta aberta, a fim de poder ver do seu quarto o cômodo em que se encontra o cadáver amortalhado do filho, rodeado por grandes velas. Um velho foi encarregado de velá-lo e está sentado ao lado do corpo, murmurando orações. Depois de algumas horas de sono, o pai sonha que a criança está parada ao lado de sua cama, pega seu braço e lhe sussurra em tom de repressão: “Pai, você não vê que estou queimando?” Ele acorda, nota um clarão intenso que vem do quarto onde está o corpo, corre até lá, encontra o vigia idoso adormecido e as roupas e um braço do querido cadáver queimados por uma vela que caíra acesa sobre ele” (3-p.535).

Freud reconhece nesse sonho uma realização de desejo.

“No sonho a criança falecida se comporta como se estivesse viva, ela própria adverte o pai (…) Devido a essa realização de desejo, o pai prolongou seu sono por alguns momentos. O sonho obteve a precedência sobre a reflexão de vigília porque conseguiu mostrar a criança viva novamente. Se o pai tivesse acordado primeiro e então tirado a conclusão que o levou ao quarto do velório, teria, por assim dizer, encurtado a vida da criança em alguns momentos” (3-p.536).

O pai constrói o sonho de modo a prolongar o sono, a evitar o despertar para a realidade da perda.

Contestando Freud, para Zizek “o espectro sinistro de seu filho que o repreende é muito mais insuportável que a realidade externa. O sonho traz o trauma insuportável de sua culpa pela morte do filho” (5-p.77).

Patrick – mas porque você não pode ficar?
Lee – vem cá, Patty, eu não consigo. (Pausa) Eu não consigo. Desculpe.

Eu não consigo.

O germe que corrói Lee em seu exílio interior avança numa tensão entre culpa e vergonha. Em seu horizonte, uma ameaça que não é unicamente a de exclusão pelo ato criminoso. Pois há um sujeito constituído na culpa, mas Lee encarna ainda um fracasso subjetivo. Um constrangimento que pertence à ordem da impossibilidade de falar(-se) (parlêtre). Um desnudamento decorrente de uma queda em ser, como distingue Patrick Merot (5), que é da ordem da vergonha.

O sujeito constitui-se no terreno de uma “avaliação constante da distância entre o que é — digamos seu Eu — e o que gostaria de ser — seu Ideal do Eu” (…) “A vergonha sobrevém quando o Eu — ou uma parte do Eu — que se acreditava à altura de seu Ideal do Eu é condenada a inexistência” (5-p.1743).

Um Eu, aquém do Ideal do Eu, marcado pela humilhação e a vergonha. A dimensão da vergonha leva-nos a reconhecer no descompasso entre Randy e Lee um desencontro entre Eu e Ideal do Eu. Impotência em superar a prova de uma mancha que suja seus ideais de pureza.

I can’t beat it: essa fórmula escreve o momento paradoxal de subjetivação em que o sujeito dá o testemunho de sua própria desubjetivação.

Não é possível aceitar o convite de Randy para o almoço. Há um insustentável mal-estar à beira do que para ele é humanidade.

Entre Randy e Lee interpõe-se um abismo que ela, culpada, quer dissolver e que se apresenta irredutível para ele.

Lee no encontro com Randy encarna Ulisses na Odisseia nu e coberto de lama diante de Nausicaa.(2)

Freud traz essa imagem no capítulo V da Interpretação dos Sonhos (3), ao tratar sobre os sonhos de nudez, citando o escritor Gottfried Keller em Henrique, o verde, romance que trata da vergonha. Na pungência da escrita de Keller, o inominável da vergonha do herói de Manchester à beira-mar :

Não te desejo caro Lee (a personagem de Keller é homônima!), que alguma vez aprendas por experiência própria a verdade da situação de Ulisses quando apareceu nu e coberto de lama diante de Nausicaa (…) Se algum dia estiveres longe da tua pátria e de tudo o que amas, vagando por um país estrangeiro, e tiveres visto e experimentado muitas coisas, ficares aflito e preocupado, estiveres miserável e abandonado, sonharás à noite sem falta que estás voltando à tua pátria; tu a verás brilhando e resplandecendo nas mais belas cores, e figuras graciosas delicadas e queridas virão ao teu encontro; então descobrirás de súbito que estás lacerado, nu e coberto de pó. Vergonha e medo inomináveis tomarão conta de ti, procurarás te cobrir, te esconder, e acordarás banhado de suor. Esse é, desde que há seres humanos, o sonho do homem aflito, jogado de um lado para o outro, e foi assim que Homero tomou aquela situação da natureza mais profunda e eterna da humanidade.

AUTORA
Sandra Lorenzon Schaffa
Psicanalista, Membro Efetivo e Docente da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP)
E-mail — sandralorens@gmail.com

REFERÊNCIAS
1.Comentário apresentado em 09/08/2022 no Ciclo de Cinema e Psicanálise no MIS em debate com Sandro Macedo coordenado por Luciana Saddi.
2.Barazer, C. (2003). “Ulysse nu et couvert de boue”, Revue Française de Psychanalyse 2003/5 (vol.67), pp. 1789-1794.
3.Freud S. (1900/2017). Tradução de Renato Zwick, L&PM POCKET.
4.Lonergan K. (2011). Manchester by the sea, The Overlook Press, New York, NY, 2011.
5.Merot P. (2003) La honte; “si un autre venait à l’aprendre” Revue Française de Psychanalyse 2003/5 (vol.67) pp. 1743-1756.
6.Zizek, S. (2001). “A fuga para o real”, Pulsional, Revista de Psicanálise, Ano XIV, no.146, 2001.

TRAILER

FICHA TÉCNICA
Título original — Manchester by the Sea
Título português — Manchester à Beira-Mar
Ano — 2016
Duração — 137 min
País — E.U.A.
Direção — Kenneth Lonergan
Argumento — Kenneth Lonergan
Produção — Matta Damon, Kimberly Steward, Chris Moore, Lauren Beck, Kevin J. Walsh
Fotografia — Jody Lee Lipes
Música — Lesley Barber
Edição — Jennifer Lame
Elenco — Casey Affleck – Michelle Williams – Lucas Hedges – Kyle Chandler – Ivy O’Brien – Richard Donelly

SINOPSE
Em Manchester à Beira-Mar, Lee Chandler (Casey Affleck) é forçado a retornar para sua cidade natal com o objetivo de tomar conta de seu sobrinho adolescente, após o seu irmão (Kyle Chandler) falecer precocemente. Este retorno ficará ainda mais complicado quando Lee precisar enfrentar as razões que o fizeram deixar sua família e ir embora, anos antes. (https://www.adorocinema.com/filmes/filme-231408/)