OS PÁSSAROS EM VOLTA — The Birds (1963)

— VASCO SANTOS —

1.
Escrever acerca d’Os Pássaros, de Alfred Hitchcock, é fácil.

Trata-se de um filme intemporal, uma obra-prima de 1963, sobre o qual existem infindáveis interpretações: científicas, gnósticas, filosóficas, psicanalíticas.

Hitchcock é um autor, um filósofo. Tal como mais tarde Godard, ele parte de ideias e de postulados formais para filmar uma visão pessoal do mundo.

Visão esta anti-utópica, quer da espécie humana, quer do universo. 

Godard afirmou que Hitchcock era um vidente: «via os seus filmes antes de os escrever».

É impressionante confrontar as leituras filosóficas dos seus filmes. Por exemplo (1):
— Nietzsche, em A Corda;
— Platão, na Janela Indiscreta;
— Descartes e Wittgenstein, em Marnie: Confissões de Uma Ladra.

Mas é também sonora a imersão (não declarada) dos filmes de Hitchcock na teoria psicanalítica. Veja-se A Casa Encantada, Vertigo, Janela Indiscreta e, como exemplo maior, Os Pássaros.

Hitchcock, como humorista popular que também foi, deu ele próprio uma explicação simples desta última obra: «Os pássaros estão cansados de serem mortos, depenados e comidos pelos homens. Então, decidiram vingar-se. Um dia, agrupam-se e mergulham sobre as pessoas numa pequena aldeia.»

Porém, críticos, filósofos e psicanalistas interessam-se profundamente pelo filme.

François Truffaut (2) disse que Os Pássaros ilustra os perigos do amor romântico: «o amor tem algumas penas feias e o seu lugar na vida de uma pessoa tem de ser considerado e levado a sério».

O filme mostraria, assim, os aspectos sinistros do amor.

O filósofo Scott Caleffi (1) partindo de uma citação de Platão — O homem é um bípede sem penas —, diz-nos que o grande motivo desta obra é a identidade e a filosofia da personalidade.

2.
Numa hermenêutica psicanalítica, o filme parece — tal como o sonho — um enigma figurado. Na sua construção, não parece haver um fio condutor ou banda sonora, tal como numa sessão analítica.

Hitchcock não levava a sério as ideias freudianas, denegava-as, e irritava-se com as leituras psicanalíticas dos seus filmes (sobremaneira deste): «Idiotas, sempre estive consciente do que fiz em todas as minhas obras.»

Mas a suspeita sobre a pretensa autonomia da consciência, tal como a presença freática do inconsciente no território da subjectividade humana são um adquirido universal — a que nem um génio se consegue furtar.

Slavoj Žižek (3) parte de um interessante pressuposto: o cinema é a mais perversa das artes porque não te dá aquilo que desejas, mas diz-te como desejar.

Por isso, a psicanálise conteria a chave de interpretação do cinema, pois esclarece: «nada há de espontâneo nos nossos desejos. Os desejos são artificiais, têm de ser ensinados».

Žižek argumenta que as aves em Os Pássaros são uma dimensão externa (teremos, assim, de ver o filme sem os pássaros!) que se intromete na realidade para a desmanchar. Representam a explosão do superego materno evitando o encontro sexual entre Mitch e Melanie.

Os Pássaros seria, destarte, um drama edipiano — se lhe retirarmos o terror — e mostraria a tensão, a empatia incestuosa entre mãe e filho.

Nós não nascemos naturalmente na realidade. Fazemos parte de uma ordem simbólica que nos torna pessoas e nos permite estar com outras pessoas. Quando essa ordem é desafiada, algo acontece que destrói a realidade.

3.
É difícil para um olhar psicanalítico sair da encruzilhada edipiana. E, como bem sabemos, o mito de Édipo suscita a questão da culpa e da responsabilidade perante as normas éticas e tabus estabelecidos por uma sociedade.

Melanie levou o seu corpo para Bodega Bay enquanto representante do desejo de ser possuída por um homem. Ela era portadora de um magnetismo que não somente atraiu olhares reprovadores de homens e mulheres como despertou a angústia e o pavor naqueles que a olharam e depararam com um temido desejo sexual nas suas próprias vidas.

O mar de Bodega Bay reflecte a instância onde ocorrem estas manifestações psíquicas. O mar reflecte a profundidade do inconsciente.

O ataque dos pássaros pode ser interpretado como o horror diante de um desejo sexual outrora recalcado, e como retorno deste conteúdo que (kleinianamente) incidiria num sadismo oral e avassalador.

Nesta condição, Melanie foi vítima e agente provocadora de um sadismo infantil.

Num vértex junguiano, estaríamos aqui na presença de um inconsciente colectivo, de um arquétipo, e os pássaros simbolizariam o superego colectivo daquela aldeia que atacaram diante da ameaça de sedução evocada por uma bela mulher.

E mais leituras haveria se não fosse tão curto o intervalo, e tão longo o amor.

AUTOR
Vasco Santos
Psicanalista Associado da Sociedade Portuguesa de Psicanálise \ Docente do Instituto de Psicanálise \ Sócio da Associação Conquistas da Revolução
E-mail — vascosantos.consultorio@gmail.com

REFERÊNCIAS
1) David Buggett e William A. Drumin, Hitchcock and Philosophy, 2007, Open Court Publishing.
2) François Truffaut, Hitchcock, 1960, Gallimard.
3) Slavoj Žižek, Sexo e o Absoluto Falhado, 2020, Edições 70.

TRAILER

FICHA TÉCNICA
Título original — The Birds
Título português — Os Pássaros
Ano — 1963
Duração — 119 min
País — E.U.A.
Direção — Alfred Hitchcock
Argumento — Evan Hunter, adaptação do romance homónimo de Daphne du Maurier
Produção — Alfred Hitchcock
Fotografia — Robert Burks
Música — Remi Gassmann e Oskar Sala
Edição — George Tomasini
Figurinista — Edith Head
Elenco — Tippi Hedren, Rod Taylor, Jessica Tandy, Suzanne Pleshette, Veronica Cartwright, Ethel Griffies e Charles McGraw

SINOPSE
Melanie deixa-se conduzir pelo desejo após o seu encontro com Mitch. Em Bodega Bay o despertar da sensualidade e do desejo sexual desencadearão o terror.