ACEITAMOS O AMOR QUE ACREDITAMOS MERECER — The Perks of Being a Wallflower (2012)

— ANA BELCHIOR MELÍCIAS —

Para muitos um cult-movie sobre a adolescência, apresenta com mestria seus conflitos e rituais de passagem, na intrínseca e complexa articulação nature versus nurture — será o amor que aceitamos, aquele que acreditamos merecer? Frase-charneira do filme, dirigido por Stephen Chbosky que, como raramente acontece, completou a adaptação do roteiro do seu próprio livro homónimo, e tornou-se produtor executivo. A sensibilidade narrativa — da linguagem literária à cinematográfica — reflete um projeto extremamente pessoal, carinhosamente cuidado e semi-autobiográfico como toda a criação humana é em larga medida.

Charlie, com um pé num enigma da sua infância e outro pé nas escolhas identitárias exigidas na passagem a jovem adulto, encontra no 1º ano do ensino médio/secundário, um grupo de amigos mais velhos, finalistas, na passagem para o ensino universitário. E a amizade, torna-se a ponte segura para a transformação de ‘congelado’ a vitalizado, de invisível a real. Implicará naturalmente, as descobertas dolorosas que lhe abrirão um rumo mais integrado e sintónico com o seu self genuíno.

A transição fica marcada pelo ritual, inicial e final, de liberdade e libertação — a travessia do túnel, lugar arquetípico de passagem, em pé, na van de caixa aberta com os perigos e sensações despertadas. A música Heroes, de David Bowie (2) [I, I will be king \ And you, you will be queen \ Though nothing will drive them away \ We can be Heroes, just for one day…] reforça a experiência. Não parece ressaltar a onipotência, como a de Jack na proa do Titanic gritando “I’m the King of the world“, mas antes a confiança necessária para se equilibrar nas próprias pernas e suportar a turbulência e instabilidade da adolescência e da vida…

Há sempre a chance de ser herói do/no mundo interior, e “ser infinito”, como Charlie declara ao final, quando sente ter encontrado o norte da sua essência.

Escreve cartas, no estilo típico dos diários da adolescência, para os também típicos amigos imaginários, facilmente fermentados numa personalidade instrospectiva, sensível, fragilizada (não frágil) por eventos traumáticos que, por enquanto, ele vivencia corporal-mente, mas ainda desconhece.

Cria um interlocutor-objeto-transicional ainda não totalmente “ele” mas também não totalmente para um “outro”, numa área intermediária da experiência (Winnicott), onde dentro e fora, interno e externo, fantasia e realidade se mesclam. É essa ilusão de continuidade que permitirá a progressiva diferenciação eu-outro, ainda em construção. Diferente dos fenómenos da terceiridade postulados por Green e Ogden e os do campo por Baranger e Ferro, onde o que surge mesclado, é o híbrido, não pertencendo a um ou ao outro, mas sim ao que nasce na/da relação — o terceiro.

É um filme sobre bullying, o terror agido contra a vulnerabilidade, pelas dificuldades persistentes e narcísicas em aceitar o inquietante estranho, o não familiar, o estrangeiro, a diferença.

É também sobre os grupos, as traições e as lealdades, a exclusão e/ou inclusão, os arrogantes populares e os marginalizados ‘gótico-budistas’ com toda a sua (in)coerência.

É sobre a poderosa química do trio Charlie e os meio-irmãos, Sam e Patrick. Ao invés da exclusão geralmente propiciada pelos fantasmas da trilogia edípica, este trio é inclusivo, uma boa cena primitiva da amizade, com o que isso implica de maturidade e tolerância.

É ainda sobre as performances culturais — Rocky Horror Picture Show (1975) — e como o teatro e o terror e a comédia e a exibição e o grupo e o experimentar outros papéis e outros afetos e medos e possibilidades, é um terreno potencial de expansão.

É sobre a sexualidade, sobre a homossexualidade, sobre a violência no namoro, sobre o primeiro beijo, sobre a difícil harmonização entre amor e sexo, poetizada por Rita Lee (4) — Amor sem sexo é amizade \ Sexo sem amor é vontade (…) Sexo vem dos outros e vai embora \ Amor vem de nós e demora.

É um filme de muitos temas, entre eles, o suicídio na adolescência e os efeitos depressores nos amigos, que além da perda, se questionam sobre esse radical ato de des-esperança. E todos os adolescentes nas suas negociações internas e lutos identitários, têm motivos de sobra para interrogarem essa possibilidade, dentro do mundo da cultura, como ilustram bem os cartoons The Book of Bunny Suicides de Andy Riley ou séries de humor negro 1000 Ways to Die… Mas Charlie tem também os 1000 Books to Read Before You Die.

“Você vê as coisas e compreende. Você é invisível”, diz-lhe Patrick, ao perceber que Charlie, precocemente amadurecido, intui a “ventura e desventura” que subjaz à vida e envereda pelos livros. Segue o conselho da mãe de Agualusa(1) — “Nos livros está tudo o que existe, muitas vezes em cores mais autênticas, e sem a dor verídica de tudo o que realmente existe. Entre a vida e os livros, meu filho, escolhe os livros.”

E perguntamo-nos, “qual será a razão para os professores de inglês, teatro e música serem frequentemente lembrados como os nossos mentores e fonte de inspiração? Talvez porque os artistas raramente fazem parte da multidão popular.”(5)

Mr. Anderson (Paul Rudd), seu professor de inglês, é certamente um professor-artista que o conduz a livros seminais, incluindo “O Apanhador no Campo de Centeio” e exerce a docência com paixão e entusiasmo. Infelizmente, muito desvalorizados nas sociedades menos evoluídas civilizacionalmente, os professores dedicam-se ao ócio, ao pensamento, à criatividade. Não geram o lucro do ‘neg-ócio’ na alimentada e falida distopia atual do ‘El Dorado’. Eles são a base da cultura, da investigação, representantes por excelência da pulsão epistemofílica. Mas, acima de tudo, são modelos identificatórios, humanamente estruturantes, através dos quais, num saudável movimento exogâmico, se pode encontrar empaticamente o que não se recebeu na/da família.

É um filme que toca diferentes dimensões da parentalidade — negligente, abandónica, homofóbica, violenta — sem deixar de mostrar como, mesmo a uma família ‘suficientemente boa’ como a de Charlie, pode ter escapado o abuso intrafamiliar a que foi sujeito. Mostra também a função reparadora da família, quando não denega e sim reconhece — esteio necessário para sarar feridas e traumas.

É também um filme sobre a depressão na infância e sobre saúde mental, pelos traumas encriptados, dissociados, que tantas vezes, só a posteriori ganham forma e podem ser figurados-narrados.

Na sua hiper-sensibilidade, Charlie vai tendo flashbacks de sua tia Helen que morreu num acidente de carro quando ele tinha sete anos de idade.

E ainda que não lembre, o corpo sabe que “something” se passou na enigmática ‘confusão de línguas’ — será apenas o single Something dos Beatles que a tia lhe iria dar se não tivesse morrido (história recobridora) ou ela já lhe deu esse “something” sexual e abusivo (traumático)?

Não se trata aqui das lembranças encobridoras do recalque em Freud, que encobrem-revelando condensada e deslocadamente. As histórias recobridoras como nos propõe Inglez-Mazzarella(3), estão ligadas ao traumático, ao campo do irrepresentável. Para blindar a dor, uma história recobridora, é criada no lugar.

Mas amor rima com dor e Charlie começa a desmantelar-se justamente quando é ‘tocado’ pelo amor. Não será afinal assim com todos nós?

Quase perto do final, o filme desmembra-se em dois. Na primeira parte, temos o filme do adolescente deprimido pelo suicídio do seu melhor amigo e assombrado por flashbacks do acidente da tia do qual se sente inconscientemente culpado. Já na parte final, passamos a ter o filme do adolescente que ao descobrir a sexualidade (ele e Sam beijam-se e ela ‘toca-lhe’ na perna desencadeando lembranças da tia) re-significa, aprés-coup, o que se passou na sua infância e vai descompensando.

No hospital, a psiquiatra (Joan Cusack) consegue ir trazendo à tona as memórias recobridoras de Charlie, partindo de uma relação empática e responsabilizando-o pelo tratamento e pela descoberta do desejo inconsciente (e natural) da morte da tia que dele abusou sexualmente.

Sam e Charlie vivem os dois experiências de abuso sexual. Sam aos 11 anos, na pré-adolescência, e portanto já no segundo tempo da sexualidade, pode aceder/falar/representar. Charlie aos 4-5 anos, ainda no primeiro tempo da sexualidade, sem conseguir compreender e significar o que sentia, envolvido na ‘confusão de línguas’ (Ferenczi), cresce num estado de entorpecimento traumático. O desenvolvimento emocional é afetado e a vida experienciada com uma sensação de não-realidade, de invisibilidade: “não creio que as pessoas me vejam”.

O enigma decifrado, Charlie decide passar a ser visível, tornar-se sujeito e não sujeitar-se — “deixar as cartas e passar a participar”. Será escritor e quem sabe até com visibilidade. Tem a máquina de escrever que lhe deram os amigos e tem a sua história mais integrada e, portanto, a matéria prima necessária — a sensibilidade, a dor e a profundidade.

AUTORA
Ana Belchior Melícias
Psicanalista da Sociedade Portuguesa de Psicanálise (SPP) \ Analista da Criança e do Adolescente \ Docente do Instituto de Psicanálise \ Formadora do Método Bick
E-mail — mail@anamelicias.com

REFERÊNCIAS
1.Agualusa, J. E. (2004). O vendedor de passados. Lisboa: Dom Quixote. p.122.
2.David Bowie – Heroes. Co-escrito por Bowie and Brian Eno. Album: Heroes, 1977.
3.Inglez-Mazzarella, T. (2021). Histórias recobridoras: quando o vivido não se transforma em experiência. São Paulo: Blucher.
4.Rita Lee – Amor e Sexo. Escrito por: Rita Carvalho, Arnaldo Jabor, Roberto Zenobio Affonso de Carvalho. Album: Balacobaco, 2003.
5.Roger Ebert – https://www.rogerebert.com/reviews/the-perks-of-being-a-wallflower-2012
6.Discutido no dia 10.01.2022 no Grupo de Reflexão Adolescência & Cinema da SPP (2021-22), coordenado por Ana Belchior Melícias e Elsa Couchinho.

TRAILER

FICHA TÉCNICA
Título original — The perks of being a wallflower
Título português — As vantagens de ser invisível
Ano — 2012
Duração — 103 min
País — E.U.A.
Diretor — Stephen Chbosky
Argumento — Stephen Chbosky, baseado no seu romance homónimo de 1999.
Produção — Russell Smith – Lianne Halfon – John Malkovich
Música — Michael Brook
Edição — Mary Jo Markey e Yana Gorskaya
Fotografia — Andrew Dunn
Elenco — Logan Lerman – Emma Watson – Ezra Miller – Mae Whitman – Kate Walsh – Dylan McDermott – Joan Cusack – Paul Rudd – Nina Dobrev – Johnny Simmons – Melanie Lynskey

SINOPSE
Um adolescente de 15 anos, Charlie (Logan Lerman), escreve cartas a um amigo sem nome, durante o primeiro ano do ensino médio, evidenciando-se o seu sofrimento. Deprimido com o suicídio de seu melhor amigo, luta para encontrar um grupo de amigos e ter um sentimento de pertença. Descobre a amizade (Ezra Miller) e o amor (Emma Watson), e entra em contato com o enigma que resignificará a sua história.