LEALDADE CANINA — The Power of the Dog (2021)
— ELSA COUCHINHO —
Como uma moldura, as montanhas cercam o rancho da família Burbank, tela onde se desenha o jogo de forças entre o poder enigmático da Natureza e a persistência e o engenho dos seres-humanos. Entre a manada, irrompem disputas entre animais cercados pelos homens que determinam o seu destino: procriação ou castração.
Neste filme, adaptação do romance homónimo de Thomas Savage, assistimos também às disputas entre os homens, o confronto entre criatividade e narcisismo de morte.
Uma enorme casa afirma o poder familiar sobre o território extorquido às populações indígenas. Uma casa imponente mas rude e lúgubre. Um espaço endogâmico, onde nada se cria e nada se transforma, uma “casa sepulcral” (1), preenchida por memórias que se materializam em rituais sacralizados, num eterno regresso ao passado compulsivamente repetido.
O quarto de casal permanece desabitado há 25 anos e os irmãos, Phil e George, continuam a partilhar o quarto da infância.
Como um sacerdote que protege um templo, Phil zela pelo cumprimento das regras, dos rituais e dos hábitos, um domínio que exerce legitimado pelo contacto directo com a “divindade”: Bronco Henry, o vaqueiro ideal/ homem ideal.
A falha na integração da bissexualidade psíquica, empobrece o campo das identificações introjectivas e sedimenta a clivagem feminino/ masculino. A ligação amorosa e criativa não tem lugar, os irmãos são “Rómulo e Remo criados pelo lobo Bronco Henry”, à sua imagem e semelhança.
O feminino tem um lugar utilitário em torno do qual se reforça uma organização narcísica do masculino. O feminino subserviente face às necessidades masculinas (empregadas-tarefas domésticas; prostitutas – sexo), para o qual a Srª Burbank também contribuiu com a “oferta” de prostitutas aos seus filhos adolescentes. O feminino parasitário dos recursos masculinos. O feminino cuja proximidade ou integração corrompe/ deteriora a masculinidade.
O vínculo de dependência de Phil com George tece-se em torno da necessidade de um interlocutor que compartilhe as memórias de Bronco Henry, dando-lhes uma dimensão real no passado e no presente, mas também em torno da necessidade de reforçar a dinâmica narcísica, uma masculinidade que repete o modelo de Bronco Henry, através da desvalorização e humilhação de George (“gordo”, “badocha”, “Georgie boy”, “demasiado burro para concluir a faculdade”).
A visão parcial e intolerante da realidade não permite a Phil compreender o afastamento do irmão e integrar as suas diferenças: “o problema de George é que não ocupava a mente” (2), a diferenciação do irmão é vista como falha ou incompetência.
Contudo, o passado não satisfaz plenamente George, distanciando-se do seu modelo de identificação da adolescência (Bronco Henry), pode despertar para outras experiências e afirmar-se como sujeito desejante.
George aprecia o feminino, a beleza e a sensibilidade. Acolhe as diferenças de Phil, de Peter ou dos hóspedes na Pensão de Rose. A disponibilidade para o novo e para o futuro (automóvel, Rose), permite a criação de um espaço exogâmico no qual se geram novos vínculos afectivos, onde cabe a empatia, a gratidão, cuidar e ser cuidado. Uma parte do seu mundo interno passa a ter expressão para além da fantasia e descobre o quanto esteve sozinho até então.
Esta diferenciação de George é sentida como uma quebra da unidade Phil/George, uma traição à lealdade devida a Bronco/Phil. Como uma criança pequena, Phil queixa-se aos pais, denuncia o noivado do irmão denegrindo Rose e o seu filho. George é adulto, escapa ao seu poder e não precisa do aval dos pais para seguir a sua vida adulta.
A raiva narcísica de Phil inflama-se e a destrutividade irrompe: espanca a égua, anula e humilha Rose, rivaliza com ela. A pulsão de morte tece o laço destrutivo com que cerca Rose e Peter.
Feminino e masculino habitam e ganham expressão livremente na personagem de Peter, numa cultura em que o binarismo de género e o poder patriarcal imperam, esta co-habitação é lida como uma deterioração do masculino.
Nessa cultura, além da expressão de género adoptada por Peter, a homossexualidade surge como outro elemento de deterioração da masculinidade, numa época em que a homofobia justificava a perseguição e a condenação na justiça dos homossexuais.
Phil/ Peter, dupla em que um é o negativo do outro. No baú de Phil guardam-se desejos proibidos que não podem ser amorosamente vividos, no álbum de Peter guardam-se memórias queridas e objectos significativos e amorosos.
Phil permanece dependente de um objecto que não pode ser perdido e por isso, não pode ser reencontrado (3). A sua sexualidade é um território estéril, onde a relação de dependência com o objecto se organiza em torno de uma identificação adesiva, fracassando no estabelecimento de limites self/ objecto. É precisamente nesta falha que surge o equívoco, olhar a mesma imagem na montanha é, para Phil, ser um igual.
E, embora Peter seja também homossexual, os seus processos de identificação são de outra qualidade, permitem o investimento objectal.
Para Phil, Peter é insensível (lobos que matam vitelos). Phil coloca a sua frieza ao serviço da esterilidade (castração do gado; couros sem uso), desvalorizando o estranho e o novo, sentidos como intrusos. A sua relação com o conhecimento é a do filisteu (-K). A frieza de Peter encontra-se ao serviço de K (conhecimento), ao serviço da vida, disseca animais apurando as técnicas de cirurgia.
Retomando o equívoco narcísico da confusão self/ objecto, Phil repete com Peter a dinâmica de Bronco Henry-Phil: valorização narcísica obtida enquanto prolongamento narcísico do objecto e humilhação narcísica pois nada tem valor para além do objecto.
No couro entrançado, Phil julga submeter Peter usando o momento traumático da morte do pai (corda), enlaçando-o na admiração a Bronco-Henry, fazendo-o aderir a uma identificação a um modelo de masculinidade.
Na trança de couro, Peter enlaça o seu amor à mãe e o ódio a Phil. “Depois da morte do pai, que tipo de homem seria se não ajudasse, salvasse a mãe?”
“Liturgia para o enterro dos mortos: Livra a minha alma da espada, a minha querida do poder do cão.”
AUTORA
Elsa Couchinho
Psicanalista Associada da Sociedade Portuguesa de Psicanálise e da International Psychoanalytic Association \ Psicanalista da Criança e do Adolescente \ Docente do Instituto de Psicanálise
E-mail — elcouchinho@gmail.com
REFERÊNCIAS
1) https://www.nytimes.com/2021/11/30/movies/the-power-of-the-dog-review.html
2) Savage, T. (1967). O Poder do Cão. Edições Asa.Lisboa: 2021
3) Freud, S. (1925)-https://www.valas.fr/IMG/pdf/Freud_Complete_Works.pdf
FICHA TÉCNICA
Título original — The Power of the Dog
Título português — O Poder do Cão
Ano — 2021
Duração – 126 min
País — Nova Zelândia
Realização — Jane Campion
Argumento — Jane Campion, baseado no romance homónimo de Thomas Savage
Produção — Jane Campion, Tanya Seghatchian, Emile Sherman, Iain Canning; Roger Frappier
Direcção de fotografia — Ari Wegner
Edição — Peter Sciberras
Design de produção — Grant Major
Adereços — Kirsty Cameron
Maquilhagem e penteados — Noriko Watanabe
Música — Jonny Greenwood
Elenco — Benedict Cumberbatch; Kirsten Dunst; Jesse Plemons; Kodi Smit-Mcphee
SINOPSE
Dois irmãos mantêm um rancho no Oeste americano. O conflito surge entre manter um modo de ser/ fazer que repete e prende ao passado e um modo que ruma ao futuro e à criatividade.