DA DOR E DO PRAZER DE SER — Wearing Ties and Red Nails (2015)

— RAYA ANGEL ZONANA —

Ney: “Aquilo era uma transgressão. Minha voz encantava e as pessoas ficavam enlouquecidas. O que era “aquilo”? Não era nem homem, nem mulher, o que era aquela voz?”

Letícia: “Meu nome de batismo é Gilberto, mas na pia da vida me batizei de Letícia”.

Laerte: “Não sou heterossexual, nem homossexual, nem bi. Eu vivo a minha sexualidade”.

Taís: “Existem mil sexos dentro deste corpo”

Rogéria: “Eu sou gay porque minha mãe me ‘passou’ muito hormônio. Amor de mãe!”

Algumas frases do filme De gravata e unha vermelha nos invadem e impõem uma vertigem na qual este documentário lança o espectador.

O filme seduz. As imagens feéricas, as fantasias e o colorido propõem uma vibração que contrasta com a intimidade de cenas em que cada um dos entrevistados expõe, com coragem, uma emocionada história. Também seduz pela coragem da cineasta Miriam Chnaiderman que dá a ver o que por tanto tempo esteve negado e ainda hoje vive nas sombras. Os “sujeitos/personagens” encontram no enquadre da câmera um espaço para dizer da inquietante trama que os constitui, a mesma que constitui a todos nós: a sexualidade. As músicas ampliam os depoimentos em uma colagem, como também acontece com os cenários. Tudo é fantasia.

Miriam Chnaiderman como diretora é uma psicanalista. Da poltrona, atrás do divã ou da câmera, deixa o lugar vazio para ser ocupado pelos sujeitos que puderam surgir na tela e também do outro lado da tela, nós. O filme propõe um movimento interno, uma busca em cada um que se deixa penetrar por suas imagens e sons.

A diretora dá voz ao que sempre foi sussurrado em espaços segregados, a vida de travestis, transexuais, gays, o mundo de uma sexualidade que nos habita desde sempre: a sexualidade infantil polimorfo perversa do ser humano. A iluminação, os enquadramentos ora em close, ora passeando por detalhes dos corpos ou dos cenários, dão o tom e a intensidade dos depoimentos, passando da angústia ao humor, à ternura.

Em mim, um resto de melancolia fica a ressoar a partir da última cena. Ney Matogrosso, andrógino, em jeans e camiseta, uniforme multisex canta.

Deixe-me ir, preciso andar
Vou por aí a procurar
Rir pra não chorar
Se alguém por mim perguntar
Diga que eu só vou voltar

Depois que me encontrar (7)

Encontrar-se é uma possibilidade, não uma definição. Muitas vezes é mesmo uma “encrenca”, fonte do sofrimento que escapa deste filme junto do prazer que a sexualidade faz surgir. Uma vez “exposta”, a livre expressão da sexualidade traz questões, angústia, provoca curiosidade, violência – como vemos diariamente no assassinato de gays e transexuais no qual o Brasil tem triste posição de destaque mundial – por deixar vir à tona o que é de todos, mas que é enigma, e que insiste: “o que será que será que dá dentro da gente que não devia, que desacata a gente, (…) que não tem medida nem nunca terá.”(8)

O que será que será que é da ordem do estranho e da fantasia que povoa o filme e a vida?

A estranheza não fica somente na tela; alcança o espectador que retoma momentos de seu próprio percurso, detalhes, lembranças que desabrocham em fantasias, fantasmas. Afinal, não é com estes elementos que cada um/a constitui a singularidade do corpo erógeno?

Realidade e fantasia esbarram uma na outra, se enredam, e a sexualidade, tentando equilibrar-se nesta corda bamba, será sempre um campo de conflito imantado pelo desejo. Seguimos M. Chauí(2) na etimologia da palavra desejo: desidero, sidera, os astros. Daí, considerare – examinar com veneração os astros –, e desiderare – deixar de ver e de ser visto pelos astros. Se o destino está escrito nas estrelas, considerare é consultar o Alto para encontrar-se (como quer a música), ter um guia seguro para a vida. Desiderare, ao contrário, é ficar sem referências, tomar o destino com as próprias mãos e partir para o incerto. Desejo, marca do humano, é incerteza, é errância. E é incerteza, entre outras razões, pelo fato de vir de um outro, de ser sempre desejo do outro.
Implantada como enigma, a sexualidade do adulto invade a criança que cria traduções próprias (5). Se em cada tradução algo se cria, o ‘Sexual’ é um fator de desordem potencialmente criativo que rompe o estabelecido.

É o tema que a diretora segue em seu filme. Cada personagem/ator/sujeito nos fala da particularidade da dor e do prazer de ser quem se é e quem não se é. Tudo junto, ao mesmo tempo. A tentativa de separar estas duas condições é trabalho interminável da vida toda.

Fedida (4), em uma imagem muito sensível, fala da sexualidade como uma doença transmissível. Ou não é uma forma de transmissão o que ouvimos de um dos atores/sujeitos?

“No 1º dia de aula minha mãe me vestiu de menina. Eu estranhei – eu sou menino – eu disse. Ela me olhou nos olhos e disse – Você é menina!”

A criança estranha o fato, estranha a saia pregueada que até acha bonitinha. Já está contaminada. E também o estaria se tivesse sido vestida “como um menino”. Fedida nomeia o sexual como a intolerável invasão.

Esta invasão surge na tela e aprisiona o espectador. Cenários, roupas, chapéus e sapatos vão tomando a cena e transpirando sexualidade. Fantasiados de si mesmos e de um outro/a, os atores/sujeitos, se traduzem também pelas vestes nas quais aponta o humor, o solene e o trágico.

No palco, Ney Matogrosso vive sua diversidade, pinta seu rosto, cobre/descobre seu corpo em vestimentas fetiche. Sorrindo diz: “Perdi o rosto e ganhei liberdade e uma coragem física que jamais supus que houvesse em mim. (…) Gosto de ser homem, ter pelos, mas isto não pode me restringir!”. Sua voz, seu dom, é também uma fantasia, um jogo de ser/não ser/ser.

Laerte fala do prazer de descobrir um corpo que sua feminilidade lhe permite criar. A depilação, a maquiagem, as roupas, as unhas pintadas em cores vibrantes oferecem um campo lúdico que é explorado na vida e nos cartoons que desenha, nos quais o personagem Hugo vai, aos poucos, anunciando o (re)nascimento da Laerte: uma mulher que deseja ser desejada.

As mudanças da moda e o espírito e características das roupas são um espelho das transformações sociais, as mais “vastas e complexas do modo de ser, sentir e pensar.” (6)

A moda rompe costumes, impõe mudanças e por sua transitoriedade, logo se faz luto. Já não é mais. As perdas e ganhos das transformações se inscrevem nas roupas, no corpo e deixam ver sua marca neste De gravata e unha vermelha.

Se no humano tudo é linguagem, também as vestimentas são discurso (3), e a eloquência das roupas nos transporta para a Outra cena que toma o filme. Vemos, mais além do masculino e do feminino, no brilho das lantejoulas, o sujeito do desejo com sua sexualidade exposta e inquietante.

O “uniforme multisex”, jeans e camiseta, é de todos nós e nele camuflamos nossas diferenças, mas como toda vestimenta, é também fantasia. O sujeito do desejo é aquele que pode trocar de roupa a qualquer momento.

O documentário nos desloca: nada garante o que seja um homem ou uma mulher!

A diretora psicanalista traz neste filme uma visão da incerteza, do assombro e da desconfiança que surge com o que é o mais próprio e íntimo do humano.

Afinal, de quantas camadas somos feitos? Em qual destas camadas podemos confiar? Qual camada devemos perder para “nos encontrarmos”?

Nos versos do poeta Mário de Andrade, que “viveu/não viveu” com intensa dor e angústia sua sexualidade – quem de nós não o fez ou faz? –, ouvimos:
Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cinquenta, Mas um dia afinal eu toparei comigo… (1)

Miriam Chnaiderman faz com este filme um poema.

Inquietante e estranho como o são o desejo e a sexualidade humana.

AUTORA
Raya Angel Zonana
Psiquiatra \ Psicanalista \ Membro Efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP) \ Editora Chefe da Revista Calibán – RLP (2017-2022)
E-mail — rayazonana@gmail.com

REFERÊNCIAS
1.Andrade, M. (2003) Eu sou trezentos In: Melhores poemas de Mário de Andrade, Global Ed. SP
2.Chaui, M. (1990). Laços do desejo In: O Desejo, Adauto Novaes (organizador) Cia das Letras /Funarte. SP
3.Dias, M. M. (1997). Moda divina decadência: ensaio psicanalítico. Hacker Ed. SP
4.Fedida, P. (1991). A doença sexual: a intolerável invasão In: Nome, figura e memória, Ed. Escuta. SP
5.Laplanche, J. (2015). O gênero, o sexo e o sexual. In: Sexual: a sexualidade ampliada no sentido freudiano. Dublinense. P. Alegre
6.Souza, G. de M. (2005). O espírito das roupas: a moda do século dezenove. Cia das Letras, SP
7.Candeia, A. (1976) — Preciso me encontrar — https://www.youtube.com/watch?v=3nN9rBz6ji0
8.Holanda, C. B. (1976)— O que será (A flor da terra) — https://www.youtube.com/watch?v=GPTOAYyt8BU

TRAILER

FICHA TÉCNICA
Título original — De gravata e unha vermelha
Título inglês — Wearing ties and red nails
Ano — 2015
Duração — 86 min
País — Brasil
Direção — Miriam Chnaiderman
Argumento — Miriam Chnaiderman
Produção — Reinaldo Pinheiro
Fotografia — Fernanda Riscalli
Edição — Tatiana Lohmann
Elenco — Ney Matogrosso – Dudu Bertholini – Laerte Coutinho – Rogéria – Johnny Luxo

SINOPSE
Neste documentário, a diretora/psicanalista Miriam Chnaiderman dedica sua escuta, seu olhar, sua câmera ao expressivo depoimento de sujeitos que manifestam sua sexualidade em seus aspectos diversos e singulares, na “construção” do próprio corpo erógeno. Universo que alcança e se impõe ao espectador pelo polimorfismo perverso, característica do humano e sua sexualidade.