ÓRFÃOS DE RÊVERIE — We Need to Talk About Kevin (2011)
— ANA BELCHIOR MELÍCIAS —
A grotesca e inquietante, imagem inaugural de Eva (Tilda Swinton) “en-carnadamente” crucificada na ‘Tomatina’ de Buñol, pressagia o desfecho da narrativa. A inicial orgia dionisíaca da festa popular, despe-se do valor simbólico, na crueza da final carnificina. E todo o filme perpassa a ambivalência do espectro cromático encarnado/vermelho. Sangue de vida ou sangue de morte?
Um grito de socorro, subliminar e em surdina, ecoa a frase que nunca foi dita: temos/precisamos falar sobre o Kevin! O que precisa ser falado? Como formular e comunicar o que não se compreende? Quando não há um ‘texto’, um sentido, as crianças “tornam-se o contexto”, como diz Kevin.
A temática da incomunicabilidade, intra e intersubjetiva, é realçada no romance, adaptado para o filme, de Lionel Shriver. A trama epistolar do livro, Eva escrevendo cartas ao seu marido, dá lugar, no filme, à narrativa (des)-(re)construída em sucessivos flashbacks.
Eva transita num vai-vém angustiante de memórias, sonhos, devaneios, tentando resgatar o tempo e o espaço, coordenadas estruturantes da história que se fragmentou, tentando corajosamente emergir de uma amnésia, do terror-sem-nome, do irrepresentável traumático.
Nós, os espectadores, mergulhamos com ela nos meandros da sua memória, esforçando-nos, como ela, para encaixar as peças e encontrar um possível caminho de reconstrução desde o nascimento de Kevin. Qual seria a peça-mestra que nos elucidaria de onde brota a violência do sadismo, da pulsão de morte en-carnada intrasubjetivamente e expressa intersubjetivamente em tantos massacres, violências, guerras?
O filme aventa a pseudo-psicológica culpabilização das mães, da qual a psicanálise é algumas vezes acusada, não sem alguma razão, quando ousa aplainar complexidades irresolúveis.
De um lado, a narrativa debruça-se essencialmente sobre o que se passa no interior da mãe de um mass-murderer, levando-nos a empatizar com o emaranhado da sua inconcebível dor.
De outro, sabemos não ser ainda senso-comum que o ‘como amar’ e, portanto, o amor e o sentir-se amado, é constitutivo mas não é natural. É uma longa aprendizagem e forja um padrão inconscientemente refletido nas posteriores relações/objetos.
O filme parece equacionar se a parentalidade pode dar conta das suas difíceis tarefas, sem uma conjugalidade minimamente concertada(3). Na laboriosa passagem da díade à tríade, interroga a maternidade, a família e o desenvolvimento dos filhos.
Transporta-nos à pergunta da eterna complementariedade nature x nurture que desassossegou Freud. Como se desenvolve emocionalmente um bebé não desejado pelos pais? Poderão alguns agir (acting-out) o horror da procriação sem o desejo humanizador? O que leva alguns “bebés-sábios” a encontrar estratégias e outros a sucumbir psiquicamente?
“There is no such thing as an infant.” (5)
O que se passou então com Kevin/Eva? O que se desprende deste nome tão primordial?
Eva-primitiva, recua a uma fase pré-humana do percurso civilizacional, testemunhando o parricídio. Eva-trágica, confirma o mito do fratricídio — Kevin-Caim — restando-lhe a dor inominável da perda de sua filha — Celia-Abel. Eva-mítica, condenada ao “parirás com dor” e ao “construirás com dor”, sem as supostas ‘naturalidades’, a árdua função materna. Eva-originária, única mulher sem umbigo, sem a cicatriz da ligação à linhagem que a precedeu… como prosseguirá?
No filme faltam os dados da história pregressa, sugeridos unicamente na pele-paredes do escritório de Eva repletos de mapas, sem que ela encontre o seu norte no mundo. No romance, a mãe de Eva esteve grávida durante o genocídio armênio (um dos maiores massacres na história da humanidade, promovido pelo Império Turco-Otomano entre 1915-23 e nunca reconhecido), do qual o seu pai não retornou. Sem o ter conhecido, cuidou desde a tenra infância da mãe traumatizada com graves fobias sociais. Diz a certa altura no filme, “vou para o inferno quando morrer”, e pergunto-me se, ao contrário, não esteve no inferno desde que nasceu? E pergunto-me também qual é o massacre que o filho está a perpetuar e a que ela não pode aceder?
Dizem ser necessárias três gerações para fazer um psicótico… O espelho quebrou-se e a imagem refletida na água do lavatório é a da fusionalidade-indiferenciação-transgeracionalidade: a androgenia-ambiguidade no duplo-idêntico-ideal Eva-Kevin.
Eva resiste, num sofrido parto, a dar à luz Kevin. Resistência talvez ao seu próprio nascimento em tempos de guerra/massacre? Não tendo recebido e não conseguindo criar um espaço uterino mental, como terá sido vivida a gravidez e como prosseguirá na construção intra e intersubjetiva da maternidade?
Não se estabelece a preocupação materna primária e não se criam os estruturantes diálogos mãe-bebé, na bola que não rebola entre os dois. Na fralda, mantida até aos oito anos, figurando o conflito autonomia-dependência. Na comida-nutrição recusada, como se de veneno se tratasse. Nos maus-tratos sucessivos à irmã Celia… Um número crescente de atos psicopáticos cuja onipotência e sadismo dominam a mente no jogo taliónico do ‘olho por olho, dente por dente’.
Eva pergunta-lhe: What’s the point?
Kevin responde: There is no point. That’s the point.
A mentira psíquica leva à tragédia. Édipo não sabia da adoção. Kevin não sabe do amor. Apenas do ódio, do massacre, da guerra, como elo de ligação.
O arco-pais e a flecha-filhos da poética de Khalil Gibran, adquirem aqui tonalidades macabras, despojados das qualidades empáticas e “justiceiras” de Robin Hood e sem a possibilidade de introjeção do único momento de ternura, quando Kevin aceita o colo-leitura deste livro pela mãe.
Vai crescendo em silêncio, oposição e ódio. Vai ganhando forma o anti-herói, um “Édipo pré-genital”, sem encontrar o seu lugar diferenciado de filho numa boa cena primitiva triangularizada como sua irmã conseguiu: tritura na pia, o seu bichinho de estimação, devora canibalisticamente a “litchia-olho” cegando Celia, para depois a matar assim como ao pai-Laio-Franklin e aos outros onze colegas-bebés-da-mãe num kleiniano ataque ao ventre materno da cena primitiva dos pais combinados.
Não mata Eva! A mais impiedosa crueldade!
Não mata Eva! Ao contrário, exige que saia do falacioso “paraíso da maternidade” com toda a dor que um parto psíquico exige e as análises bem testemunham. A nós, obriga-nos a pensar no famoso e desconfortável ‘ódio na contra-transferência’ que certos pacientes desencadeiam.
Não mata Eva! Toda a encenação é para ela. É obrigada a testemunhar o “muito além” no último ato. Há “uma linha no roteiro que não foi usada (…) Ela pergunta a Kevin porque não a matou, e ele: “Você não quer matar sua audiência”(4). Parrícidio e fratrícido previamente executados, sai em apoteose triunfante aos 16 anos do massacre na escola, olhando fixamente para a mãe enquanto é preso. Ele agiu o crime, ela pagará o castigo? Terá realizado o desejo de ficar com a mãe que nunca teve só para ele? Exigir-lhe um esforço de rêverie transformadora (1) não conseguida na relação? Recuperar o seu autêntico self e o sentimento de ser e sentir-se real?
Passaram-se dois anos de prisão — a contenção que a função paterna não soube dar a Kevin, mas também a condenação da vida de Eva, pela inevitável culpabilização do ato desalmado do filho.
Antes de mudar para uma prisão de adultos…
Eva – Não pareces feliz.
Kevin – Alguma vez fui? Tenho quase 18 anos.
Eva – Tiveste 2 anos para pensar, quero que me digas porquê?
Kevin – Eu achava que sabia, agora não tenho assim tanta certeza.
Abraçam-se com a música Mother’s last words to her son (Washington Phillips) a tocar e uma vez que a dúvida se instalou, descortina-se aqui senão o início do fim da onipotência, pelo menos uma brecha para o pensamento e a transformação-reparação. Quem sabe até um “new beginning”.
Freud mostrou-nos que o Superego é formado pós-edípicamente pelas identificações com os pais (moral). Klein, ao contrário, disse-nos que o Superego é precoce e cruel, tendo de ser suavizado pelos pais. Já Winnicott, considera que a agressividade vem da privação (emocional) do ambiente. Além desses autores, o filme conduziu-me a Ferenczi, à fragmentação do trauma, à autotomia e à atomização. É aí que me encontro com Eva. E é também aí que encontro Kevin.
“O trauma está relacionado não somente a algo impróprio que foi feito, mas a algo que deveria ter sido feito e não foi (…) a criança traumatizada é substancialmente uma “órfã de rêverie transformadora”. (1)
“Para sobreviver a um profundo sentido de catástrofe (…) o indivíduo em estado de total impotência retira o investimento em relação ao self e aos objetos e, especificamente, em relação à formação dos vínculos psíquicos, regredindo a formas atávicas e protomentais de comportamento adaptativo, (…) com a resultante de que grande parte da vida afetiva e mental inconsciente é mutilada, petrificada, congelada e tornada morta, ou pelo menos dissociada e fragmentada…”(1)
Poderemos perguntar-nos que massacre foi aqui perpetuado? Kevin obrigará a mãe a lidar com as consequências da sua epifania sangrenta? Eva, submetida ao inimaginável horror interno e externo desse ato do filho, tentará encontrar um sentido, o tal ‘contexto’? Perante tamanha violência, qual será a possibilidade de transformação-reparação?
AUTORA
Ana Belchior Melícias
Psicanalista da Sociedade Portuguesa de Psicanálise (SPP) \ Analista da Criança e do Adolescente \ Docente do Instituto de Psicanálise \ Formadora do Método Bick
E-mail — mail@anamelicias.com
REFERÊNCIAS
1.Borgogno, F. (2006). Psicanálise,V. 8 No 1, pp. 105-118, 2006, Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre.- https://www.alsf-chile.org/Indepsi/Articulos/Trauma-Abuso/Ferenczi-e-o-trauma-pequeno-mapa-introdutorio.pdf
2.David Cox. (2011). We need to talk about men, not Kevin – 25 Oct 2011 – https://www.theguardian.com/film/filmblog/2011/oct/25/we-need-to-talk-about-men
3.Melícias, A. B. (2019). Da segunda pele à pele rítmico-psíquica: (des)harmonias entre conjugalidade e parentalidade. In França, N. R. A. F. (Org.) (2019). Observação de bebês: método e aplicações. São Paulo: Blucher.
4.Roger Ebert (2012). So overcome by despair her problems exist all at the same time – 25 Jan 2012 – https://www.rogerebert.com/reviews/we-need-to-talk-about-kevin-2012
5.Winnicott, D. W. (1990). O ambiente e os processos de maturação: estudos sobre a teoria do desenvolvimento emocional. 3ªed. Porto Alegre: Artes Médicas.
6.Filme discutido no dia 15.02.2021 no Grupo de Reflexão Infância & Cinema (2020-2021) da Sociedade Portuguesa de Psicanálise, coordenado por Ana Belchior Melícias e Elsa Couchinho.
FICHA TÉCNICA
Título original — We need to talk about Kevin
Título português — Temos de falar sobre o Kevin (PT) – Precisamos falar sobre o Kevin (BR)
Ano — 2011
Duração — 112 min
País — Reino Unido, E.U.A.
Diretor — Lynne Ramsay
Argumento — Lynne Ramsay e Rory Stewart Kinnear, a partir do romance homónimo de Lionel Shriver (2007)
Produção — Jennifer Fox, Luc Roeg e Bob Salerno
Música — Jonny Greenwood
Edição — Joe Bini
Fotografia — Seamus McGarvey
Elenco — Tilda Swinton (Eva) – John C. Reilly (Franklin) – Ezra Miller (Kevin-adolescente) – Jasper Newell (Kevin 6-8 anos) – Rocky Duer (Kevin 2-3 anos) – Ashley Gerasimovich (Celia) – Siobhan Fallon Hogan (Wanda) – Alex Manette (Colin)
SINOPSE
Shriver, a autora do romance, entrevistou 40 mulheres envolvidas neste tipo de massacre para construir a personagem Eva Khatchadourian, uma bem sucedida editora de guias de viagem, casada com Franklin, fotógrafo publicitário. Decidem abrir mão da liberdade da vida a dois para ter um filho. Instala-se um clima tenso de ambiguidade, revelando e denunciando os mitos da classe média urbana. Buscam nos subúrbios uma paisagem-segunda-pele-de-felicidade e a vida familiar vai sucumbir a esta prótese afetiva. Do desencontro conjugal, que se vai aprofundando, ao desencontro precoce parental, Kevin passa de bebé difícil (chora, não come, não dorme) a criança provocadora em oposição (não tira a fralda) e a adolescente anti-herói que se encanta com o poder do terror-horror na chacina agida.