A ARTE DE SONHAR – DESOBSTRUINDO O ACESSO AO INCONSCIENTE — Never look away (2018)

— ADRIANA MARIA NAGALLI DE OLIVEIRA —
“As obras de arte nascem sempre de quem afrontou o perigo, de quem foi até o extremo de uma experiência, até o ponto que nenhum ser humano pode ultrapassar. Quanto mais longe a levamos, mais nossa, mais pessoal, mais única se torna uma vida. Viver, viver verdadeiramente uma imagem poética, é conhecer, em cada uma de suas pequenas fibras, um devir do ser que é uma consciência da inquietação do ser. O ser é aqui de tal maneira sensível que uma palavra o inquieta.” Rilke (1989)
Escrever é sempre uma oportunidade para promover novas ideias e nesse caso em particular, ideias psicanalíticas sobre a Arte.
Passando ao campo da reflexão sobre a experiência que temos com o Cinema, as impressões que tive com o filme Never look away e agora compartilho, poderão ser utilizadas se algum sentido importar. Podemos nos importar com as impressões dessa escrita ou com o sentido que as imagens fotográficas e o roteiro biográfico do filme nos contaram, ou não, e ainda assim podemos desviar nosso olhar.
“Nunca desvie o olhar”, essa é a melhor tradução para “Never look away”, que aprofunda ainda mais o significado por expressar o sentido de: “SE IMPORTE”.
A partir daí escolho um dos vértices que alcancei e tentarei não ser capturada pelos desvios que podem me atrair.
O que são desvios?
Freud acreditava que boa parte daquilo que vivemos — emoções, impulsos e crenças — surge a partir de nosso inconsciente e não é visível pela mente consciente. Lembranças traumáticas, por exemplo, ficam “bloqueadas” na memória, mas continuam ativas sem sabermos e podem reaparecer em certas circunstâncias.
O deslocamento e a condensação, que caracterizam, para Freud, o processo primário e os mecanismos presentes no sonho, podem ser formas de desvios.
O deslocamento acontece quando uma representação recebe todo o investimento devido a uma outra, intolerável, de modo que a segunda acaba por substituir completamente a primeira.
A condensação é o mecanismo pelo qual uma representação inconsciente concentra os elementos de uma série de outras representações.
Tal como o deslocamento equivale à metonímia (ex: eu adoro Picasso – me referindo às obras dele), a condensação, equivale à metáfora (ex: arte degenerada – degeneração foi um termo emprestado da medicina para a arte no final do séc. XIX).
O filme começa anunciando que a arte degenerada é um termo oficialmente divulgado para a Arte Moderna, difamada com justificativas da teoria racial durante o governo nazista na Alemanha. A arte degenerada era acusada de exaltar a doença mental como princípio definidor da arte, expondo a decadência da mulher, a prostituição, a ausência de limite social que se mostra como ultrajante.
Tendo como pano de fundo a ascensão do nazismo e sua rigidez autoritária, observamos ao longo do filme o sacrifício à fertilidade criativa que pode levar à morte, física ou psíquica.
Lembrei-me do conceito de objeto obstrutivo em Bion que, quando prevalece na mente, mata a criatividade mantendo o clima de totalitarismo e certeza que obstrui a capacidade de pensar e não nos permite duvidar. A mente esterilizada torna-se avessa à diferença. Esse é o alvo desse objeto que obstrui, que destrói o mistério, a incerteza, o que é novo e tudo o que isso pode evocar.
O olhar que não deveríamos desviar e deveríamos ser capazes de usar é sobre nossos lugares mal acabados, aterrorizantes e desamparados. Participar intimamente da nossa realidade psíquica pode transformar nosso olhar sobre o mundo interno que nos habita, e sobre outros mundos e sobre os sentimentos.
Retornando ao filme, na contundente cena de Elisabeth, nua, ao piano ela diz: “Se você não desviar o olhar você se tornará forte como o aço. Você verá a verdade e – a verdade é a beleza”.
Penso: A beleza que nos torna confiantes a prosseguir é que nascemos sem vestes?
Essa é a verdade? Quando podemos colocar nossas vestes?
Mais adiante no filme, quando as cenas retratam a experiência de angústia do não criar, fruto da dor, sobrevivo/vivo, Kurt (o protagonista) experimentou o terror e a turbulência em si, evitando a ação, suportando-a em si mesmo.
Kurt aguardou, gestou a futura criação no caos.
Herr professor, seu sogro, assassino de sua tia atuou seu ódio à diferença. Se tomarmos esses personagens como partes que nos habitam, estes podem representar a perene e sofrida oscilação entre a dimensão psicótica e a não-psicótica da mente. A dupla flecha em PS<—>D nos expõe a sucumbir à dor, como o pai de Kurt que escolheu morrer, ou a intuir a realidade que não se apresenta materialmente porém pode ser captada e dar seguimento à vida.
Kurt, pouco a pouco, sendo amado e estando com alguém — tia Elisabeth (o amor de uma mãe-tia, erótica e amavelmente penetrante) e sua companheira Ellie — pinta sua tela em branco como se sua pintura fosse um palco no qual ele reencena os impactos transgeracionais e intrapsíquicos.
Os fantasmas antes despersonalizados, massificadores e as almas reconhecidamente assassinas são integrados às imagens de amor de sua tia que o mantém em seus braços, integrando assim sua realidade.
Utilizando-me das palavras de seu brilhante professor de Arte, complemento essa ideia: “Tudo poderia ser uma ilusão, uma imaginação porém ele percebeu que algo estava pensando os pensamentos dele. Então, Descartes pensou que algo deveria existir e aquele algo ele decidiu chamar de Eu. Mas quem é você? O que é você?”
Respondo com a citação de Ferreira Gullar (1): “Se uma parte de mim é só vertigem, a outra, é linguagem”.
Memória, consciente, inconsciente, criar e recriar a si mesmo. Tudo isso é o Eu. Winnicott disse: “A realidade é um insulto porque justamente persistirá de forma intransigente em sua ‘outridade’; e a criança, acostumada a “criar” o mundo até então – em pura onipotência – se verá obrigada a condescender, a contemporizar… e a lidar com sua impotência diante do real.”(3)
Os poucos indivíduos que conseguem realizar-se diante da impotência atingem uma admirável e generosa coragem de viver, a possibilidade de plenamente exercer a vida.
Os limites impostos pelos regimes autoritários passam a não ser áreas proibidas, são áreas indicativas do perigo. Ao encontrar os limites, podemos configurar o fenômeno.
E essa capacidade de reconhecer limites de si, em si, para si e em relação aos outros é o que permite ao indivíduo agir livremente. Como disse São João da Cruz: “podem prender meu corpo porém minha mente e minha alma nunca.”
Então, a questão da vida não é aprender a como se livrar dos estados dolorosos e ter paz e felicidade, mas sim como acomodar a dor dentro de si e reduzir seus efeitos potencialmente destrutivos, tanto no self como nos outros.
Keats, o poeta, escreveu:
“Agora, parece-me que quase qualquer homem, à semelhança da aranha, tece a partir de seu próprio interior sua própria cidadela aérea — as pontas de folhas e galhos de onde a aranha começa seu trabalho são poucas, mas ela enche o ar com um belo circuito: os homens deveriam contentar-se com esses poucos pontos onde apoiar a bela Rede da sua Alma e, assim, tecer uma empírea tapeçaria.” (2)
A imagem de Keats empresta expressão metafórica a uma série de pensamentos — aqueles subjacentes às ideias que traçaram meu caminho através destas páginas. Para mim essa imagem evoca a sensação de liberdade e abertura de espírito, a capacidade de não ficar vinculado aos “pontos finais” das coisas, mas desenvolvê-los a partir de novos recursos internos. Cada pessoa carrega dentro de si o potencial de desenvolver uma personalidade de riqueza e profundidade, o potencial de retirar da sua própria experiência os elementos essenciais para um maior crescimento. Qualquer pessoa, também, pode construir uma estrutura pessoal e única de grande beleza. Assim os novos encontros em qualquer fase da vida são sempre um re-experimentar a beleza do mundo. A primeira experiência de beatificação que Meltzer chama de “deslumbramento do amanhecer” precede o recuo esquizo-paranóide (parte psicótica da mente) do conflito estético e, embora seja de curta duração e possa ser “esquecido”, nunca é apagado da mente humana.
A tia nua, Ellie descendo as escadas nua!
Após o impacto inicial da beleza externa da mãe, é o desejo de conhecer as qualidades interiores dela que desperta o instinto epistemofílico (curiosidade) e que dá início ao conflito.
O que urge por existir?
Freud, em “O Mal-Estar da Civilização”, considera a beleza como uma das formas de combater o sofrimento, uma suave embriaguez.
Nossa profissão de analistas é uma Bela espécie de Arte, memorável.
Nos resta aguardar a inspiração.
AUTORA
Adriana Maria Nagalli de Oliveira
Analista Didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Campinas (SBPCamp) \ Membro Efetivo e Docente da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP) \ Membro da Revista Brasileira de Psicanálise \ Membro da Diretoria de Comunidade e Cultura da FEPAL pela SBPCamp.
E-mail — amnagalli@gmail.com
REFERÊNCIAS
1.Gullar, F. (2017) Na vertigem do dia. Companhia das Letras.
2.Keats, J. (1988) The complete Poems. Harmondsworth: Penguin Classics.
3.Winnicott, D. W. (1994) Explorações psicanalíticas. Artmed.
FICHA TÉCNICA
Título original — Werk ohne Autor
Título inglês — Never Look Away
Título português — Nunca deixe de lembrar (BR) / Nunca deixe de olhar (PT)
Ano — 2018
País — Alemanha
Duração — 188 min
Realizador — Florian Henckel von Donnersmarck
Argumento — Florian Henckel von Donnersmarck
Produção — Florian Henckel von Donnersmarck – Jan Mojto – Quirin Berg – Max Wiedemann
Fotografia — Caleb Deschanel
Música — Max Richter
Edição — Patricia Rommel
Elenco — Tom Schilling – Sebastian Koch – Paula Beer – Saskia Rosendahl – Oliver Masucci – Ina Weisse
SINOPSE
Never Look Away é um filme inspirado na vida de Gerhard Richter, brilhante pintor alemão. Ele nasceu em 1932, em Dresden, na Alemanha. Viveu seus primeiros treze anos sob o nazismo e, depois da Segunda Guerra Mundial, viveu durante dezesseis anos sob o comunismo da Alemanha Oriental, até fugir para a Alemanha Ocidental, em 1961, pouco antes da construção do Muro de Berlim. Richter estudou em Dresden, em 1953, e em Düsseldorf, de 1961 a 1964. O filme reflete sobre o sofrimento do artista que viveu tanto no nazismo como no realismo socialista, ideologias que não estavam em acordo com sua sensibilidade e sua Arte, impedindo assim sua inspiração. É na Alemanha Ocidental que recupera sua Arte, reunindo assim e integrando intensa violência, trauma e amor. Além de reveladas em sua Arte, em seu Estilo tão próprio de apresentação, as emoções são reeditadas e experimentadas a favor de seu desenvolvimento e expansão.