IMENSAMENTE, NASCER — Pieces of a Woman (2020)

— TIAGO CHAGAS —

Pois para isso fomos feitos:
Para a esperança no milagre
Para a participação da poesia
Para ver a face da morte –
De repente nunca mais esperaremos…
Hoje a noite é jovem; da morte, apenas
Nascemos, imensamente.
(Vinicius de Moraes-4)

Há filmes que parecem ter sido sempre textos, mesmo se por um mero acaso possam nunca chegar a ser escritos, e aos quais parecemos ter maior “acesso direto”, para lá da vida e do trilhar do caminho, a certa altura já sem forma e autoria, que silenciosamente prossegue, até onde jamais saberemos, dentro de nós.

A história eternamente reescrita e sempre inacabada, do luto e do trauma transgeracional, mas que nem por isso nos parece voltar a atingir com menor pungência, surpresa e até encanto, como se através dela re-experimentássemos a desconcertante e sempre nova alegria da descoberta de caminhos, frequentemente mais próximos de quase imperceptíveis “carreiros” de “regresso a casa” da possibilidade de sentido e de simbolização. Filmes convocando também em nós encontros com sombras, como pautas de ritmos e intensidades que porventura, quando tudo o resto se cala, só o corpo é capaz de guardar. E contar.

Na primeira cena, Sean, trabalhador da construção civil, no seu local de trabalho, na construção de uma ponte, ansioso de se estabelecer como “ponte simbólica” entre a filha prestes a nascer e o mundo, queixa-se do atraso da obra, dizendo que lhe prometera que ela seria a primeira a atravessar. Na cena seguinte, surge Martha, rodeada de outras mulheres, no seu local de trabalho, naquela que percebemos tratar-se de uma pequena celebração, do nascimento próximo da filha. O seu desconforto é evidente, “já é tarde”, “não é muito agradável”, “veremos como corre”… responde Martha de forma estranhamente evitante. A cena seguinte começa a sugerir as primeiras respostas. 

Surge então Elizabeth, a mãe de Martha, a finalizar a compra de um carro que oferece ao casal, chamando de forma irónica a atenção da filha para o dever de lhe agradecer a ela e não ao vendedor. Pouco depois aparece Sean, atrasado, ao que a sogra, num tom semelhante, comenta, “como é que podes construir pontes se nem sequer sabes ver as horas”, ao qual este responde simulando um riso de prazer. Percebemos então a força das relações de poder e dos laços de fidelidade no seio da família, o carro novo, adquirido pelo casal, por um nova família que começa, ele próprio um símbolo de autonomia, da possibilidade de “assumir o volante” e conduzir a própria vida à velocidade e na direção que se quer, aparece convertido numa espécie de prolongamento narcísico da própria mãe de Martha. Carro novo, como prolongamento do corpo própria da filha, que nem pelo estado de gravidez, parece poder ser “reclamado” e apropriado definitivamente por si própria, como corpo adulto, distinto do da mãe, lugar de uma sexualidade vivida como e com quem se escolheu.

Segue-se uma cena quase musical, de uns intermináveis vinte e quatro minutos, onde subitamente somos lançados como testemunhas sem escapatória possível, no coração de uma das cenas de maior intimidade entre dois seres humanos que é possível, às portas de um dos momentos mais misteriosos e sublimes de toda a vida. Entramos aqui num território radicalmente outro, meandros da corporalidade pura, onde a beleza incomensurável do irromper da própria vida e natureza em bruto – no qual só parece ser possível participar de um modo quase infantil, como no jogo cúmplice com que cada um ali acolhe a surpresa do instante seguinte, no seio de uma relação de amor que aparentemente nada estranha ou exclui — se entrelaça com o grito do perpétuo desconforto e desencontro com um corpo e uma condição para a qual jamais se parece ter nascido, ou ser-se capaz de vir a nascer.

A cena é a de um parto, que decorre na casa de ambos, onde vários imprevistos acontecem, desde logo, a parteira de confiança não estava disponível, acabando por vir outra, desconhecida, em seu lugar. Após um protesto inicial, e com o decorrer do trabalho de parto, a dor crua, condição e força motriz daquele e de todos os nascimentos, parece ir sendo abraçada de forma cada vez mais intensa e sentimos, excessiva, como quem há muito aguardasse um encontro olhos nos olhos, e no fim de tudo apenas o seu desafio e confronto mudo contasse. A certa altura, algo nos atinge e desperta, ao qual nos agarramos também nós, como náufragos, “onde está a minha mãe”, diz Martha, seguido de “não é derrota nenhuma ir para o hospital”, diz Sean, “para o hospital não”, responde esta imediatamente. Um elo de sofrimento sem palavras e sem resposta, parece estranhamente criado, acabando a filha recém-nascida, último e mais frágil elemento nesta cadeia, por não o conseguir suportar, acabando por falecer.

Entra o genérico do filme, como se aqui começasse, num outro tempo, um tempo congelado, um tempo do trauma: “pedaços de mulher”, “mulher em pedaços”… por detrás a imagem da construção da ponte, parada, interrompida, tal como no interior da mente, a mesma função de “criar pontes”, de ligar as emoções e pensar, se acaba de ver violentamente interrompida, também.

Em relação a Martha, tudo nela, e ao redor dela, o que viveu e sobretudo o que ficou por viver, é revisitado, quase sem querer, incessantemente… ao ponto da necessidade criar, “não importa se alucinatóriamente”, uma forma de habitar apenas um momento presente, onde pudesse voltar a pegar, cheirar, e a “mordiscar” a “filha”, com cheiro a maçã. A “realidade” quando voltasse, estava apenas autorizada a voltar “devagarinho”. 

Mas talvez a sensação mais presente em todo o filme seja a de alheamento. 
Para além da necessidade da retirada da libido do objeto perdido, de acordo com as exigências do teste de realidade (2), e da recuperação e reconstrução do mundo interno (3), possivelmente dificultada, pela possível presença de fantasias arcaicas de poder ter sofrido uma punição por parte de uma “mãe má” que lhe poderá ter “roubado” a filha recém-nascida, como retaliação pelas suas fantasias agressivas infantis dirigidas contra o seu corpo (e os bebés no seu interior) (3); o seu eu e a sua própria realidade psíquica, estão povoados por aspetos clivados que lhe são estranhos, aspetos que não são seus.

Confirmamo-lo, no mesmo lugar onde o inconsciente sempre fala, o lugar dos “pequenos detalhes”, palavra utilizada e denunciada pela própria Martha, num dos momentos mais importantes do filme. Quando vai tratar da inscrição a figurar na lápide da filha, repara que a sua mãe, com a aprovação do marido, já havia pedido para escrever o nome “Ivette”, nome igual ao da sua avó materna, em vez de “Yvette”, o nome que Martha tinha escolhido para a sua filha. Nome imposto e gravado na lápide de forma intrusiva pela própria mãe, à semelhança do que já havia feito no seu próprio inconsciente, razão pela qual, sem se se dar conta, Martha o aceita e recebe, escolhendo para a sua filha um nome em quase tudo igual ao da bisavó.

O sentimento é de apropriação da sua identidade e da sua historia; para lá da concordância e da participação inconsciente, a zanga é muito grande. A luta entra as duas, mãe e filha, prossegue, como se a sua sobrevivência psíquica de cada uma estivesse em causa e fosse ameaçada pela outra.

A mãe de Martha, exige que esta faça o funeral e enterre a neta, e que além disso, acuse e processe legalmente a parteira. Martha, talvez numa tentativa vital de se libertar da história que não lhe pertence, recusa, quer “doar o corpo à ciência”, desejo esse, podemos pensar, também ele, como sintoma desta impossibilidade de inscrição de um corpo e de uma relação materna, que sente verdadeiramente nunca lhe terem podido pertencer.

Martha na tentativa desesperada de comunicar e se fazer ouvir, dando corpo ao indizível daquele “excesso” de objeto que “jamais se ausenta” (1) di-lo, talvez sob a única forma possível, a de um grito: “isto é o meu corpo, isto sou eu, entendes isso?(…) isso é o que tu precisas, isso é a tua forma, não é a minha forma”, num dos momentos mais belos e intensos do filme. E Elizabeth responde, talvez no momento mais dramático e revelador de todos, mas que paradoxalmente, tal como Martha, de certo modo talvez preferíssemos desconhecer: “se tivesses feito à minha maneira, ainda terias o bebé nos braços a esta hora”.

Elizabeth nascera debaixo de perseguição nazi, às escondidas, num “barracão”, sem ajuda de ninguém, depois de o seu pai ter sido enviado para um campo de concentração, tendo sobrevivido em condições limite, cuidada pela mãe que tinha que a esconder debaixo do soalho enquanto ia tentar roubar comida para a alimentar. O desamparo, a radical condição de fragilidade humana, que Elizabeth e a sua mãe terão conhecido de uma forma limite, ela própria “atacada” e repudiada, talvez como forma de sobrevivência física e psíquica por parte da própria avó, aquando do nascimento da sua mãe, é assim clivado e projetado ativamente em Martha, que se vê então inconscientemente identificada com os mesmos aspetos excluídos, num processo de “telescopagem de gerações” (1).

Martha parecia então condenada a repetir e a viver toda a dor, medo, impotência, a mais forte possibilidade de sucumbir e não sobreviver, no parto da sua filha, que as mulheres das gerações que a antecederam não tiveram possibilidade de aceitar.

O momento mais dramático e violento do filme, como não raras vezes na vida, também à semelhança de um parto, foi também o mais premente e transformador. A partir dele, e só a partir dele, foi possível descongelar a história, arrancar o passado perpetuamente ancorado a um presente que eternamente adormece e amortece, confundindo todas as “coordenadas terrestres”, ao ponto de já não se saber bem que vida é aquela que se vive ou quem se é. 

Só assim, o desejo pôde enfim ser liberto, com as cores vívidas do maravilhamento e do transbordar amoroso, como na imagem literal da câmara escura, depois do “negativo da identidade” poder também ter sido revelado; só assim, puderam mãe e filha, pela primeira vez e para sempre, “imensamente, nascer”.

AUTOR
Tiago Chagas
Psicólogo Clínico \ Psicanalista Associado da Sociedade Portuguesa de Psicanálise (SPP) e da International Psychoanalytical Association (IPA)
E-mail — tiago.r.chagas@gmail.com

REFERÊNCIAS
1.Faimberg, H. (2006). El telescopaje de generaciones. A la escucha de los lazos narcisistas entre generaciones. Amorrortu.
2.Freud, S. (1917). Mourning and melancholia. S.E., 14: 237-258
3.Klein, M. (1940). Mourning and its relation to manic-depressive states. International Journal of Psychoanalisys, 21: 125-153
4.Morais, V. (2001). Excerto de “Poema de Natal”, in Antologia Poética. Publicações Dom Quixote.

TRAILER

FICHA TÉCNICA
Título original — Pieces of a Woman
Título português — Pedaços de uma Mulher
Ano — 2020
Duração — 126 min
País — Estados Unidos e Canadá
Diretor — Kornél Mundruczó
Diretor executivo — Martin Scorcese
Argumento — Kornél Mundruczó e Kata Wéber
Produção — Kevin Turen – Ashley Levinso – Aaron Ryder
Fotografia — Benjamin Loeb
Música — Howard Shore
Edição — Dávid Jancsó
Elenco — Vanessa Kirby – Shia LaBeouf – Ellen Burstyn – Molly Parker – Sarah Snook – Iliza Shlesinger – Benny Safdie

SINOPSE
A história e relação entre três personagens, uma mulher, o marido e a mãe desta, e o modo como individualmente e no seio das relações entre eles, vão “sobreviver” e lidar com a morte, respetivamente da sua filha e neta recém-nascida, depois de um parto onde ocorrem diversos imprevistos e que por decisão de ambos, tinha sido realizado na sua própria casa.