FETICHISMO E DITADURAS — Argentina 1985 (2022)
— ROOSEVELT CASSORLA —
No final de 1983 cai a junta militar que governou a Argentina e o presidente Alfonsín, surpreendentemente, solicita que os militares sejam julgados. Naquele período o terrorismo de Estado matara aproximadamente 30.000 pessoas, muitas desaparecidas. Todos conhecemos as mães da Praça de Mayo buscando seus filhos e netos. O filme nos mostra as vicissitudes desse julgamento, os conflitos dos promotores, as ameaças, a busca de provas, e os terríveis depoimentos das testemunhas.
Tive que dar-me o tempo de atenuar as emoções para poder pensar nos aspectos do filme que poderia discutir, a partir da psicanálise. Não foi difícil encontrar temas: violência, tortura, injustiça, desumanização. A psicanálise tem teorias potentes que nos ajudariam a identificar e, talvez, compreender alguns fatores. No entanto, não me senti confortável. Qualquer discussão estaria muito aquém dos fatos. Estaria traindo as vítimas. Porque não há palavras que possam representar o impensável.
O filme consegue transmitir parte desse horror. Isso é possível graças à esperança trazida pelos corajosos homens e mulheres que o denunciam permitindo que ocorra um julgamento justo. A ausência dessa esperança impediria a própria narrativa. Lembremos as terríveis palavras de Theodor Adorno “depois de Auschwitz a poesia não é mais possível”. E, alertando-nos que “A sensibilidade… deve rebelar-se contra a extração de um sentido, por mais abstrato que seja, daquele trágico destino”.
A falta de sentido não deve paralisar-nos. Pelo contrário – nos obriga a denunciá-lo. Pensadores e artistas, enquanto o fazem, sentem-se obrigados a dar representação – de alguma forma – à falta de sentido. O mesmo faz o psicanalista, mesmo sabendo que suas parcas aproximações estarão sempre aquém dos fatos. Essa ânsia de representação está além de um ser individual – necessitamos uma infinidade de mentes. Por isso, desde sempre, pensa-se, escreve-se, faz-se arte, mais ainda após o Holocausto. Há que saber o que ocorreu para que não ocorra de novo. “Nunca mais” é a expressão usada pelos judeus, pelos argentinos, pelos brasileiros, pelos alemães, pelos portugueses, pelos espanhóis e por todo os povos (e grupos, e famílias e indivíduos) que foram aterrorizados e destituídos de sua humanidade. Essa destituição fez com que fossem tratados como coisas, descartáveis, resíduos a serem eliminados como lixo. Entretanto os criminosos podem ser descobertos e o suposto lixo terá que ser escondido. Em valas comuns, em enterros clandestinos, jogando os corpos ao mar, eliminando sua história.
O filme nos mostra o sadismo – o torturador que goza com o sofrimento, não para obter informações – mas pelo prazer de humilhar. Lembro-me das fotos dos soldados americanos em Abu Ghraib. Da soldada arrastando um islâmico por uma corda. Impactou-me mais por se tratar de uma mulher, aquela que dá e cuida da vida. O ódio mortífero não tem preferência por sexo, povo, religião, ideologia, raça e, muitas vezes, esse ódio se nutre justamente das diferenças fanáticas. “Minha” religião, “minha” raça, “minha” ideologia são as únicas verdadeiras. Os “equivocados” têm que ser convertidos e, caso não cedam temos que torturá-los e, em última instância, aniquilá-los. Antes que, projetivamente, nos destruam.
Impor-se-ia outro tema: as consequências traumáticas nas gerações subsequentes, mais ainda naquelas crianças que tiveram seus pais torturados, mortos e desaparecidos. Muitas vezes sendo adotadas por outras famílias enquanto se apagava sua origem.
Continuo com a impressão que minhas palavras são pobres perto da realidade. O filme é mais capaz de refleti-la. Encontro, porém, um aspecto que é insinuado na tela e que me parece digno de discussão. Trata-se da negação da realidade. O tema se me impôs quando uma amiga querida, a quem lhe pedi ideias sobre o filme, se desculpou me dizendo que não conseguiria assisti-lo, de novo. Sua reação consciente me levou em direção a outras formas de negação da percepção da realidade, conscientes e inconscientes.
Sabemos que em Portugal do salazarismo, na Espanha de Franco, no Brasil do governo militar (e agora pouco, de um governo de extrema direita), e em outras situações similares, grande parte da população – por vezes a maioria – apoia os governos.. O filme nos mostra a dificuldade de os promotores montarem sua equipe porque os possíveis auxiliares estariam do lado dos militares. Outros recusaram, com medo. A equipe acaba sendo formada por jovens inexperientes – que pouco viveram o regime.
Sabia-se, durante a ditadura argentina, que os processos criminais estavam sendo substituídos por prisões, torturas e desaparecimentos à margem da lei. Se uma pessoa conhecida era presa ou desaparecia dizia-se que “alguma coisa ela deve ter feito”. E não mais se pensava no assunto. A fuga psicótica da realidade defendia da percepção dos fatos traumáticos. Posteriormente, quando as coisas ficavam claras dizia-se “eu não sabia de nada”. Evidentemente muitas pessoas continuaram a pensar que a guerra suja era justa e que havia “exageros” nas denúncias. Isso ocorreu e continua ocorrendo em ditaduras e após sua derrota.
Freud, em seu texto “Fetichismo”, nos mostra que a recusa da percepção da realidade (Verleignung) é substituída por um fetiche, algo que a criança viu antes ou após a percepção da falta do pênis. Ele nos lembra das peles como substitutas dos pelos púbicos e dos pés preenchendo a falta. Proponho algo similar frente ao trauma do nascimento. O terror de aniquilamento é substituído por um fetiche, que representa o antes (a vida intrauterina) e o depois (a primeira mamada). Esse fetiche – objeto idealizado – é o Paraíso, uma espécie de retorno à vida intrauterina. Esse desejo, quando ocorre através da busca da morte, do suicídio, se vincula teoricamente à pulsão de morte – o Nada.
Nos regimes ditatoriais o fetiche se manifesta nas fantasias – propagandeadas pelo sistema – de que o governante nos levará ao Paraíso. Ele nos salvará de situações terríveis atribuídas a certos grupos – os “subversivos”, os “comunistas”, os “imperialistas”, os judeus, os imigrantes etc. Derrotados os inimigos retornaremos a um estado de bem-aventurança. Nesse Paraíso não haverá violência, as famílias serão felizes, Deus estará acima de tudo (ou ele não será necessário, substituído pelo Ditador), os conflitos não existirão e não haverá fome ou necessidades insatisfeitas. O Céu na Terra.
Quando é impossível recusar toda a percepção do horror criam-se justificativas delirantes. Tudo é mentira ou “algo eles fizeram”. Enquanto isso a vida continua. Na Argentina, durante a guerra suja, os teatros e cinemas estavam cheios, as atividades continuavam como se nada estivesse ocorrendo. A Copa do Mundo fez o povo vibrar. O ditador Videla foi ovacionado quando a Argentina se tornou campeã. Quando a Junta Militar, já decadente, tentou salvar-se criando uma guerra com a Inglaterra, pelas ilhas Malvinas, muitos jovens se alistaram, patrioticamente, para lutar contra o “imperialismo” britânico. As classes dominantes continuavam em busca de vantagens. A classe média, como costuma ocorrer, não queria perder seus poucos privilégios. É nessas classes que a recusa de percepção da realidade e a racionalização é mais poderosa. Os estratos sociais inferiores mal sabem o que ocorre, as pessoas estão preocupadas em sobreviver. E, por isso mesmo, são facilmente manipuláveis por líderes populistas que prometem o Paraíso. Inclusive através das redes sociais e informações mentirosas.
O leitor me desculpará pela digressão sociopolítica. Ela demanda profissionais mais preparados e estudo transdisciplinar. O psicanalista deve ousar, mas ciente dos perigos do reducionismo.
O filme mobilizará o leitor. Ele se verá desafiado a transformar a indignação em pensamento criativo, para além da resposta violenta. Não se pode combater a desumanização com mais desumanização. As vítimas e a sociedade precisam, desesperadamente, serem ouvidas. O testemunho e a busca por reparação é uma necessidade vital. Caso contrário os lutos continuarão não elaborados e os traumas não deixarão de assombrar. Devemos estimular os grupos e sociedades que escondem seu passado traumático a que o tornem transparente. Se não lembramos, sequer podemos perdoar-nos por não sermos deuses…
AUTOR
Roosevelt Cassorla
Membro das Sociedades Brasileiras de Psicanálise de São Paulo e de Campinas \ Professor Titular da UNICAMP \ Autor de “Fanaticism: Reflections based on phenomena in the analytic field”. International Journal of Psychoanalysis 100:6, 1338-1357 e dos livros: O psicanalista, o teatro dos sonhos e a clínica do enactment, São Paulo: Blucher; Estudos sobre suicídio: psicanálise e saúde mental. São Paulo: Blucher, entre outras publicações.
E-mail — roocassorla@gmail.com
FICHA TÉCNICA
Título original — Argentina 1985
Ano — 2022
País — Argentina – UK – E.U.A.
Duração — 140 min
Realizador — Santiago Mitre
Argumento — Santiago Mitre e Mariano Llinás
Produção — Axel Kuschevatzky – Federico Posternak – Agustina Llmabí Campbell – Ricardo Darín – Santiago Mitre – Santiago Carabante – Chino Darín – Victoria Alonso
Fotografia — Javier Juliá
Música — Pedro Osuna
Edição — Andrés P. Estrada
Elenco — Ricardo Darín – Peter Lanzani – Alejandra Flechner – Norman Briski
SINOPSE
Baseado em fatos reais, Argentina, 1985 se inspira na história de Julio Strassera e Luís Moreno Ocampo que reunem uma equipa de advogados para processar militares da ditadura argentina, levando a cabo o que ficou conhecido como Julgamento das Juntas. Strassera e Ocampo lutam com a influência das pressões políticas e militares. Começando em 22 de abril de 1985, o julgamento durou muito tempo, cerca de 530 horas de audiência e 850 testemunhas que viram o chamado “causa 13”. No final, 709 casos foram julgados e sentenciados pelos juízes León Arslanian, Ricardo Gil Lavedra, Jorge Torlasco, Andrés D’Alessio, Guillermo Ledesma e Jorge Valerga Aráoz.