TERRA RASGADA — Tangerines (2013)
— FILOMENA OLIVEIRA —
“Tangerinas” trata de uma história passada em contexto de guerra, durante os conflitos entre a Geórgia e a Abecásia que tiveram lugar em 1992, após o colapso da União Soviética.
A ação desenrola-se numa aldeia, na Abecásia, de onde a quase totalidade dos habitantes, na maioria originários de outras regiões, partiram devido à guerra que colocou em confronto grupos étnicos rivais.
Neste, como em muitos outros locais do mundo, assistimos ao emergir de tensões ligadas com questões identitárias relacionadas com o grupo de pertença. Questões territoriais, ou de predomínio de um grupo sobre outro, podem desencadear a perceção de ameaça relativamente à “identidade de grande grupo”, assim designada por Vamik Volkan (4 e 5) a qual corresponde a um sentimento de afinidade partilhado por um elevado número de pessoas.
Neste estado de coisas, o grande grupo fica sujeito a uma maior vulnerabilidade, necessitando por isso de reforçar aspetos da sua identidade, podendo aqui as lideranças, em torno das quais se agrupam, definir um caminho de apaziguamento ou inflamar os sentimentos, aumentando, neste último caso, a tensão entre grupos. Assim, podemos assistir a que pessoas, as quais durante décadas coabitaram uma região em convivência pacífica, sejam rapidamente transformados em inimigos, envolvendo-se em lutas sangrentas, respondendo deste modo ao sentimento de ameaça face a esta identidade de grupo.
O protagonista principal, Ivo, começa por nos ser apresentado na sua oficina de carpintaria, através de um plano da mão que labora na sua arte. Esta apresentação através da mão que trabalha, parece querer dar-nos a dimensão de um homem que, não obstante as provações pelas quais passa, não perde a orientação, mantendo uma postura de grande dignidade.
Ivo, num gesto de solidariedade para com o seu amigo Margus, que, tal como ele, ainda não regressou à sua terra natal, ajuda-o a salvar a sua safra de tangerinas.
Os dois amigos tentam cumprir a tarefa com os entraves e o ritmo impostos pela guerra. Ambos parecem guardar no peito as suas dores, elaborando silenciosamente os lutos e as perdas, reduzindo as palavras ao essencial do quotidiano, como se através do silêncio se protegessem mutuamente da mágoa que a evocação de acontecimentos dolorosos poderia produzir.
O tema musical, como um lamento, irrompe nos momentos silenciosos do filme, tornando omnipresente a dor que os personagens parecem silenciar, muitas vezes, em simultâneo com imagens da paisagem, onde transparece aquela beleza que irradia das coisas que sabemos que vamos perder.
A rotina dos dois habitantes da aldeia é interrompida por uma situação de confronto entre os dois grupos rivais, que termina com apenas dois sobreviventes, pertencentes a lados opostos, encontrando-se ambos em risco de vida.
Este acontecimento introduz um contratempo na tarefa que os dois amigos tentam levar a cabo, deixando-os apreensivos. Mas, guiado por sentimentos de solidariedade humana, Ivo leva os feridos para sua casa, onde ele e Margus irão tratá-los, mesmo sabendo que esta atitude coloca as suas vidas em risco.
A relação que Ivo estabelece com estes dois homens, a quem salva a vida, inicia-se através de gestos maternais, alimentando-os e tratando as suas feridas, oferecendo-se como um objeto confiável.
Durante a convalescença, os dois feridos que, por força das circunstâncias, têm que partilhar um espaço comum, parecem trazer para a relação com o outro as marcas identitárias do seu grupo de pertença, onde a sua identidade pessoal parece encontrar-se dissolvida. Assim, a comunicação inicial é feita através de olhares de vincada hostilidade, atuando de forma reativa e mostrando em relação ao membro do grupo rival um funcionamento psíquico primário, exprimindo sentimentos paranóicos e narcísicos.
Assistimos a um clima de desconfiança e ódio, onde predominam insultos e outras atuações agressivas, movimentos que são contidos de forma firme e serena, pelo seu anfitrião. A mediação de Ivo impede que o modo clivado/projetivo do funcionamento psíquico dos seus hóspedes, dê lugar a gestos que coloquem em risco a integridade de todos.
Ivo parece estabelecer com estes dois homens uma relação parental confiável, congregando aspetos maternais e paternais. Os dois homens, por lealdade e gratidão em relação ao seu salvador, vão aceitando as regras e os limites por ele impostos, o que acaba por operar um efeito transformador ao nível da sua convivência, abrindo assim a possibilidade de cada um poder trazer para a relação e dar a conhecer aspetos mais genuínos da sua personalidade e identidade pessoal.
Aqui e ali vão surgindo sinais de uma humanidade comum, desde logo, o interesse pela beleza de uma jovem, a neta de Ivo, cuja foto se encontra emoldurada. Também a música, inicialmente motivo de controvérsia, acaba por se tornar o elemento de refúgio, uma daquelas pequenas coisas que tornam a vida mais doce, para finalmente se tornar um meio de contato com o sentir do outro, remetendo-nos para o aforismo de Nietzsche (3) “Sem música a vida seria um erro”.
E, é assim que em determinado momento um mercenário checheno e um militar georgiano, passam a ter uma identidade própria, podendo Ivo proceder às respetivas apresentações:
“Muito bem inimigos, ele é Ahmed e ele Nika”.
Ainda que o sarar das feridas externas ocorra a um ritmo previsível, o sarar dos traumas psíquicos ligados com a identidade grupal e o contexto de guerra, estão mais sujeitos à indomabilidade da agressividade humana. Assim, como nota Freud (2) em “O Mal-Estar na Civilização”, o mandamento “ama os teus inimigos”, nem sempre é compatível com a inclinação humana para a agressão, e, mesmo quando entre estes homens se parece estar a criar um ambiente mais pacífico, amiúde surgem pequenas rixas e observações em que um procura mostrar a sua superioridade em relação ao outro, fenómeno a que Freud chamou o narcisismo das pequenas diferenças.
Não obstante, a convivência entre os dois homens vai permitir, a cada um, poder exprimir de forma livre e pacífica, aspetos ligados com a sua identidade religiosa e cultural, num clima de respeito mútuo, trazendo à tona aspetos mais saudáveis das respetivas personalidades, parecendo agir também positivamente em relação às feridas interiores.
Contudo, enquanto os dois homens se vão tornando Nika e Ahmed, a imposição da realidade exterior mais ampla, com a irracional brutalidade da guerra, vem testar a relação estabelecida, pondo à prova o vínculo de lealdade que parece estar a formar-se entre ambos, acabando um deles por dar a vida para salvar o outro.
Ivo, cuja permanência naquela terra assolada pela guerra finalmente se desvenda, fica só com a sua desolação. Na imagem de fundo avista-se um grande mar e em primeiro plano encontra-se Ivo na sua serena tristeza, fazendo-nos pensar que talvez pertençamos mais à terra em que enterramos os nossos mortos, do que aquela em que nascemos.
O sobrevivente, tal como chegou, parte de carro, perdendo-se na estrada, lembrando um road movie. Contudo, longe do triunfo que inicialmente transparecia da sua relação com o rival, parece agora imbuído de um sentimento de mágoa, sugerindo-nos que o encontro com a realidade do outro o transformou.
O horizonte envolvido por uma melodia, cuja letra não conseguimos decifrar, parece transmitir a dor que por toda aquela terra ecoa, enquanto o carro se afasta deixando atrás de si uma magnífica paisagem que se vai diluindo na escuridão.
O filme não parece pretender criar-nos ilusões sobre a guerra. Neste ponto, pensamos que o pessimismo que Freud exprime na carta a Einstein (1) sobre a dificuldade em domesticar a violência humana, se encontra bem presente. Contudo, como sucede em muitas outras obras artísticas, “Tangerinas” mostra-nos que acontecimentos catastróficos, quando a sobrevivência coletiva é ameaçada, como acontece na guerra, são, muitas vezes, reveladores daquilo que de mais bruto existe no ser humano, mas existem alguns entre nós que continuam a guiar-se pela razão e a orientar os seus atos através dos sentimentos de empatia e de solidariedade para com o seu semelhante.
Dito de outro modo, mesmo quando Thanatos reina, nem todos os homens se deixam mover pelas suas pulsões mais destrutivas, algumas sementes de Eros parecem permanecer, deixando-nos alguma esperança em relação à sobrevivência de um modo civilizado de coexistência.
AUTORA
Filomena Oliveira
Membro Associado da Sociedade Portuguesa de Psicanálise e da International Psychoanalytical Association
E-mail — filomenaferreiraoliveira@gmail.com
REFERÊNCIAS
1.Einstein, A. e Freud, S. (2017). Porquê a Guerra? Cultura Editora.
2.Freud, S. (1930/1997). O Mal-Estar na Civilização. Imago Editora.
3.Nietzsche, F. (1988). O Crepúsculo dos Ídolos. Edições 70.
4.Volkan, V. D. (2007). Psicodinâmica da violência de grandes grupos e da violência de massas. Revista Ciência & Saúde Coletiva, 11 (Sup): 1199-1210. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csc/a/yTBBsmRfCv3v5XBYKpWFkVk/?lang=pt2.
5.Volkan, V. D. (2019). Large-Group Identity, Who are We Now? Leader-Follower Relationships and Societal-Political Divisions. American Journal of Psychoanalysis 79:139-155.
FICHA TÉCNICA
Título original — Mandariinid
Título inglês — Tangerines
Título português — Tangerinas
Ano — 2013
Duração — 87 min
Países — Estónia e Georgia
Realização — Zaza Urushadze
Autoria — Zaza Urushadze
Produção — Ivo Felt
Edição — Alexander Kuranov
Fotografia — Rein Kotov
Música — Niaz Diasamidze
Elenco — Lembit Ulfsak – Elmo Nuganen – Giorgi Nakasshidze
SINOPSE
A história de Ivo (Lembit Ulfsak), que com a ajuda do produtor de tangerinas Margus (Elmo Nüganen) e o médico Juhan (Raivo Trass), salva a vida do checheno Ahmed (Giorgi Nakashidze) e do georgiano Nika (Misha Meskhi), em um povoado estoniano da Abecásia no meio da guerra de 1992. (https://filmow.com/tangerinas-t93526/ficha-tecnica/)