UMA TERAPEUTA INCOMUM — Nise – The Heart of Madness (2016)

— JOÃO A. FRAYZE-PEREIRA —
Nise – o coração da loucura é um bom filme. Mas, apresenta apenas um lado da obra de Nise da Silveira, associado à história dos movimentos de luta anti-manicomial que aconteceram depois da prática inaugurada por ela. Então, apresentarei outro lado dessa obra, como contraponto ao filme.
Inicialmente, lembro que a relação entre Nise e a Psicologia Analítica não foi apenas bibliográfica. Também aconteceu com a frequentação do Instituto Jung, onde realizou análise e supervisão, em Zurich. Mais ainda, ganhou amplitude com a associação entre as ideias de Jung e de alguns poetas e filósofos (Artaud, Bachelard e Espinosa) e com a terapêutica ocupacional realizada no antigo Centro Psiquiátrico Nacional, Engenho de Dentro (RJ). Iniciada em 1946, tal prática motivou a criação do Museu de Imagens do Inconsciente – MII (1952) e da Casa das Palmeiras (1956), inaugurando o tratamento dos clientes em regime de portas abertas. E, cabe lembrar, ainda, o respeito por cães e gatos – designados por ela “co-terapeutas” – fontes de afeto incondicional para quem se relaciona com eles e suporte facilitador para a expressão emocional dos clientes no ateliê. Assim, Nise concebia a terapêutica ocupacional com a expressão “emoção de lidar” a partir da qual definiu o operador que movimentava o trabalho criativo – o “afeto catalisador”. Entendendo que não seria possível estimular esse trabalho no outro se o monitor também não estivesse trabalhando, no ateliê, o monitor pintava ao mesmo tempo que o cliente, sempre em silêncio. E a terapêutica se dava por intermédio das imagens e do afeto catalizador que, entre cliente, terapeuta e co-terapeuta, promoviam o processo de auto-cura. Em suma, são esses os aspectos determinantes do trabalho de Nise da Silveira, trabalho com o qual tive contato no final dos anos 1970, quando lhe solicitei a separata de um texto seu publicado numa revista inexistente nas bibliotecas paulistanas, pedido que foi atendido prontamente. O artigo (9) analisa a figura de Dyonisos no contexto da obra de Leonardo da Vinci, desvendando nela a figura de João Baptista, um anti-Dyonisos. Ora, a partir daí, uma breve correspondência aconteceu. E, logo depois, em 1981, um encontro presencial ocorreu na exposição Arte Incomum da 16ª Bienal Internacional de São Paulo, na qual eu trabalhava como pesquisador e a Doutora lançou o livro Imagens do inconsciente (10). Em seguida, a convite dela, fiz inúmeras visitas ao MII, conheci alguns artistas e acabei escrevendo sobre eles. O livrinho O que é loucura (3) foi o primeiro desses escritos, concluído com um desenho de autoria de Rafael e um poema de Fernando Diniz, artistas representados no filme, cujas obras também integraram a exposição Arte incomum, campo de pesquisa para o livro que escrevi posteriormente – Olho d’Agua – arte e loucura em exposição (4).
A partir desse contato, o meu trabalho se fortaleceu entre fenomenologia, estética, história da arte e psicanálise, composição que dura até hoje. E um aspecto a destacar, preconizado por Nise, é a postura do profissional, definida entre Ética e Estética. Isto é, o respeito à singularidade do outro e às imagens do inconsciente. Tal postura para com o sofrimento norteava a práxis psicoterapêutica, não diante das patologias, mas junto aos “inumeráveis estados do ser”, como concebia Nise (11), parafraseando Artaud. Assim, além da Psicologia Analítica, Nise estudava Mitologia, Literatura e Arte, assim como mantinha o diálogo com a Crítica de melhor extração no Brasil, representada por Mario Pedrosa, Ferreira Gullar, Frederico Moraes, Jorge de Lima, Sergio Milliet, Carlos Drumond, entre outros, além da colaboração de um jovem funcionário do Centro Psiquiátrico, Almir Mavignier, estudante de pintura, que fundou com ela o ateliê, em 1946. Almir trabalhou com Nise até 1951, quando se mudou para a Alemanha onde se tornou um artista bem conceituado (5). Em suma, tais colaborações deram a Nise o suporte necessário para situar a problemática da loucura no campo da arte, deslocando a psicopatologia médica para o campo da cultura, operação crítica que foi realizada, posteriormente, por Michel Foucault, duas décadas depois, com a sua magistral História da Loucura (2).
Assim, falar de Nise da Silveira, para mim, é lembrar a potência dessa mulher inteligente, generosa e combativa, conforme a definiu Graciliano Ramos que a conheceu na prisão junto com Olga Prestes. Não bastasse ser mulher e nordestina, médica e psiquiatra, ela foi também uma antipsiquiatra precoce, com ideias socialistas em pleno Estado Novo. E foi dessa configuração singular que resultou a obra que a tornou conhecida no Brasil e no exterior – o MII, núcleo de pesquisa e clínica da esquizofrenia que, com o uso da expressão plástica, levou ao conhecimento público as obras de seus utentes.
Essa caracterização é realista. Mas, bastante acanhada se quisermos apreender a complexidade simbólica do campo que esse museu inaugura, complexidade que o cineasta Leon Hirszman, em 1988, abordou na trilogia Imagens do inconsciente, contando com Nise da Silveira como autora do roteiro que iluminou as obras destes artistas. São filmes que as articulam imageticamente num campo entre psicologia, arte e política, seguindo uma linha diferente do filme de Berliner que começa com a chegada da Doutora às portas do Centro Psiquiátrico, recém saída da prisão e dos anos de clandestinidade, acusada de difundir ideias comunistas, sob a ditadura Vargas. E o filme privilegia o seu trabalho institucional, tendo em vista a instauração de um singular modo de tratar os internos no manicômio. No entanto, há outro lado desse novo modo de trabalhar, revelado pelas expressões plásticas, sobre as quais Mário Pedrosa escreveu (7), concebendo-as como arte virgem, conceito aparentado ao que o pintor francês Jean Dubuffet (1), denominara art brut, isto é, arte que não leva em conta “as convenções estabelecidas”, “quaisquer rotinas da visão naturalista e fotográfica” ou ainda as fáceis “receitas de escola”. A arte virgem ou bruta pertence a “todo ser sensível que além de artistas são alienados” (7). Ou seja, artistas espontâneos, os criadores virgens começam a pintar depois de adultos e doentes. E nada, no plano da arte, permite distingui-los dos grandes artistas universais, no tocante ao processo de elaboração criadora que empresta forma ao inconsciente. Como Dubuffet, Pedrosa valorizava nessas manifestações o caráter transgressivo das imagens com relação ao sistema das artes, considerado pelo artista francês tão opressivo e marginalizante quanto os totalitarismos que, no final dos anos 40, acabavam de horrorizar o mundo. E Pedrosa vai mais longe, fundamentando tais criações em registros teóricos que não são incompatíveis com a Psicologia praticada por Nise. Ou seja, as obras produzidas no Museu e que nele permanecem conservadas valem por sua significação expressiva e terapêutica. Isto é, elas oferecem ao terapeuta um meio de acesso ao mundo interno dos esquizofrênicos e, ao paciente, um instrumento de transformação da realidade interna e externa, assim como, aos críticos de arte, obras que, em estado virgem, são expressões do inconsciente coletivo.
Ora, é porque o artista é instrumento da arte que a sua psicologia é um tema coletivo. Ela diz respeito àquilo que o homem é enquanto artista: “homem coletivo, portador da alma inconsciente e ativa da humanidade” (10). É essa a tarefa do artista, tarefa que muitas vezes lhe solicita o sacrifício da sua vida. Nesse sentido, na condição de artista-visionário, o criador é depositário de um saber misterioso que o leva a dizer o indizível sem que ele mesmo saiba o motivo. O esquizofrênico, dizia Nise (10), é habitado por esse mistério e encontrará um oásis no ateliê “se aí encontrar a liberdade de expressão que sua obra exige”. Sua biografia pessoal é secundária em relação ao que “representa como ser criador”. E, nessa condição, ele poderá passar o resto de sua vida, respondendo à solicitação de uma obra que possui um sentido coletivo, constituindo-se num patrimônio da humanidade cujo caráter documental possui a significação de uma reminiscência, uma expressão do humano no sentido arcaico, cujo lugar legítimo, em nossa cultura, costuma ser o museu. Diante dessa problemática, surgem algumas indagações: como e onde conservar a vastíssima produção dos pacientes? E que fazer com os criadores cujo destino artístico dotou-os da fragilidade, como se a Arte tivesse o poder de arrebatar a maior parte de sua energia vital? Onde abrigar essas personalidades artísticas? Como assegurar-lhes, neste mundo, um lugar onde possa acontecer a elaboração expressiva da dor, segundo os movimentos de ascensão e de queda que definem as tragédias, desde os antigos gregos? Partindo dessas questões, Pedrosa (8) escreveu: “Daí nasceu com eles a ideia de museu. Mas que museu? Uma coleção de belos quadros pendurados à parede, com salas contíguas para serem apreciados? Não! Os artistas virgens e os seus produtos não podem ser dispersos”. O museu tem de ser também uma casa que abrigue os criadores e suas obras, pois é no vínculo entre artistas e material plástico que acontecerá o advento das obras, trabalho garantido pelo “afeto catalizador”. Em outras palavras, tanto para Nise quanto para Pedrosa, a atividade observada no Museu define um fazer enigmático, uma poética incomum. Por esse motivo, o MII foi projetado para ser um “museu vivo”, um lugar feminino no qual a função da terapeuta se aproximaria, não do especialista interessado na esquizofrenia, mas da figura do guardião atento à vitalidade da criação. Ora, na visão de Nise (10), o trabalho de criação é análogo ao trabalho de parto, a relação criador-obra à relação mãe-criança e a Psicologia da criação artística é comparável a uma psicologia feminina, “pois a obra criadora jorra das profundezas inconscientes, que são, na linguagem de Jung, o domínio das mães”. Portanto, nada mais natural que a figura do terapeuta venha a assumir o lugar paternal do guardião atento para salvaguardar o mistério da criação. E trata-se de uma triangulação que não é de ordem retórica. Ela exige um trabalho concreto e uma posição política, isto é, impedir a qualquer preço que a obra se transforme em simples mercadoria e que o museu ao longo do tempo adquira feições de um mausoléu, uma espécie de sepultura da arte, promovendo a banalização da cultura. E é nesse plano que a criação do artista incomum encontrará os seus limites: a sua sobrevivência dependerá da força viva do guardião.
Com efeito, no MII a singularidade das criações tem sido preservada. E isso graças sobretudo à densidade do campo simbólico inaugurado pelo trabalho compassivo e combativo da Doutora que lutou para acolher as criações dos autores que ela acompanhou até o fim das suas vidas, ação que inscreveu tais singularidades na trama cultural brasileira, na mesma medida que as interpretou como universais. Nesse sentido, lembro que a morte de Nise, deu-se após a partida de todos os artistas que ela cuidou ao longo de mais de cinco décadas – uma longa e paciente espera. E como ela sempre dizia que as pessoas deveriam aprender a morrer, em seus últimos momentos de vida, ela permaneceu viva, lúcida, “conscientemente livre”, antes de, em seu “fôlego de sete gatos”, mergulhar, como escreveu Walter Melo (6), na “Substância Infinita”.
AUTOR
João A. Frayze-Pereira
Psicanalista \ Membro efetivo e analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP e IPA) \ Editor da revista Ide-Psicanálise e Cultura da SBPSP (2015-2020) \ Diretor de Cultura e Comunidade da SBPSP (desde 2021 – ) \ Professor Livre Docente do Instituto de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação Interunidades em Estética e História da Arte da Universidade de São Paulo (USP) \ Pós-Doutorado em Estética na École des Hautes Etudes en Sciences Sociales, Paris. Entre outros livros, publicou Arte, Dor. Inquietudes entre Estética e Psicanálise. Cotia: Ateliê, 2006 (1ª ed) /2010 (2ª ed.).
E-mail — joaofrayze@yahoo.com.br
REFERÊNCIAS
1.Dubuffet, J. Prospectus et tous écrits suivants. Paris, Gallimard, 1967, vols. 1 e 2.
2.Foucault, M. Histoire de la folie à l’âge classique (1961) Paris, Gallimard, 1972.
3.Frayze-Pereira, J. O que é loucura (1982). São Paulo: Ed. Brasiliense (coleção Primeiros Passos), 1994 (10a edição) .
4.___________. Olho d’água. Arte e loucura em exposição (1987). São Paulo, Escuta/Fapesp, 1995.
5.___________. Almir Mavignier, um artista-terapeuta incomum. In: Reily, L. et al. Marcas e memórias: Almir Mavignier e o Ateliê de Pintura de Engenho de Dentro. Campinas: Komedi, 2012, ps.13-18.
6.Melo, W. Nise da Silveira. Rio de Janeiro, Imago, 2001.
7.Pedrosa, M. Arte, necessidade vital. Rio de Janeiro, Casa do Estudante do Brasil, 1949.
8.__________. Museu de Imagens do Inconsciente. Rio de Janeiro, FUNARTE Instituto Nacional de Artes Plásticas, 1980, pp. 9-11; 119-135 (Col. Museus Brasileiros).
9.Silveira, N. Dyonysos : um comentário psicológico. Quaternio, Rio de Janeiro, Grupo de Estudos C. G. Jung, 1973.
10.__________. Imagens do inconsciente. Rio de Janeiro, Alhambra, 1981.
11.___________. Os inumeráveis estados do ser. Catálogo de Exposição 40 anos de experiência em terapêutica ocupacional. Rio de Janeiro, 1986.
FICHA TÉCNICA
Título original — Nise – O Coração da Loucura
Título inglês — Nise – The Heart of Madness
Ano — 2016
País — Brasil
Duração — 109 min
Realizador — Roberto Berliner
Argumento — Flávia Castro – Maurício Lissovsky – Chris Alcazar – Maria Camargo – Patrícia Andrade – Leonardo Rocha
Produção — Rodrigo Letier – Bernardo Horta
Fotografia — André Horta
Som — Leandro Lima
Música — Jaques Morelenbaum
Edição — Pedro Bronz, HAE e Leonardo Domingues
Elenco — Glória Pires – Simone Mazzer – Julio Adrião – Cláudio Jaborandy – Fabrício Boliveira – Roney Villela – Flávio Bauraqui – Bernardo Marinho – Roberta Rodrigues – Augusto Madeira – Zé Carlos Machado – Tadeu Aguiar
SINOPSE
Ao voltar a trabalhar em um hospital psiquiátrico no subúrbio do Rio de Janeiro, após sair da prisão, a Dra. Nise da Silveira (Gloria Pires) propõe uma nova forma de tratamento aos pacientes que sofrem da esquizofrenia, eliminando o eletrochoque e a lobotomia. Seus colegas discordam do seu modelo de tratamento e a isolam, restando-lhe assumir o abandonado Setor de Terapia Ocupacional, onde dá início a uma nova forma de lidar com os pacientes, através do afeto e da arte.