SACRIFÍCIO E/OU CELEBRAÇÃO — Olmo and the Seagull (2015)
— ANA BELCHIOR MELÍCIAS —
O que sacrificamos e/ou celebramos em nossas vidas?
Duas cineastas, Petra brasileira, Lea dinamarquesa e dois atores, Olivia italiana, Serge francês, entretecem, numa polifonia de línguas, uma obra fascinante, invulgar, bela e intimista, sobre a gravidez, num mundo onde, felizmente!, esta pode ser uma escolha. Mas todas as escolhas são ambivalentes e obrigam a lutos. Indagamos com o filme, o que perde e ganha uma mulher com a maternidade?
Petra e Lea, não se conheciam e tinham de ‘acasalar’ expectativas, diferenças e afinidades. A ideia-bebé gerada inicialmente foi a de mostrar a intimidade de uma atriz num dia do seu cotidiano. Ao contatarem Olivia souberam que estava grávida. Incorporaram então a maternidade, passando de um dia, para nove meses na vida de uma mulher. Novo imprevisto — um hematoma no útero no início da gestação, obrigaria a repouso e à proibição de enfrentar escadas, ficando Olivia, qual “Rapunzel urbana”, aprisionada no 5º andar do seu apartamento.
Bebé e filme em risco, mas os quatro juntos arriscam…
Apresentam-nos o cenário intimista de um apartamento, o tempo alongado de uma gravidez — onde o corpo é agora o palco para outro corpo — e a intimidade da “vida-a-vida” (Clarice Lispector) de Olivia e Serge na ficção de virem a tornar-se pais.
Também as realizadoras vão fazendo nascer, em working through, uma meta-narrativa de/na fronteira. Intrometem-se e desafiam os atores em cena, co-criando e re-ajustando o roteiro a cada dia.
A inspiração vem de ‘Mrs. Dalloway’ de Virginia Woolf. A paisagem de fundo é a peça ‘A Gaivota’ de Tchekhov. Abre-se o pano e mergulhamos em pleno conflito estético, impactados com a beleza e a harmonia da encenação inaugural, de Serge-Trigorin e Olivia-Arkadina/Nina, na dança no Théâtre du Soleil. Inquietamo-nos como o bebé: corresponderá a beleza de fora ao que se passa interiormente?
Filme e documentário, roteiro e improviso, encenação e realidade, sacrifício e celebração, coletivo e privado. A narratividade é moldada por criativos dispositivos técnico-estéticos, como se quase pudéssemos tocar o próprio movimento, na permanente oscilação de estados de alma — “em que é necessário desapegar dessa identidade conquistada, criando condições para que um outro nasça, seja um bebê ou uma nova versão de si, enraizado como um ‘Olmo’ (árvore) ou alçando vôo como uma ‘Gaivota’.”(1)
Entre este evento originário/primordial e a criatividade da arte-teatro — nos inquietantes reflexos das duas personagens femininas de ‘A Gaivota’, Arkadina envelhecendo e Nina a perder-se na loucura — Olivia sabiamente transforma o tempo de isolamento involuntário da gravidez em auto-análise. Resgata o que chama ‘memória inconsolável’, perguntando-se sobre si mesma, sobre Serge, sobre o teatro e o afastamento/perda dos sonhos de anos de trabalho, sobre a maternidade, o medo, o envelhecimento, a tristeza, a loucura, o silêncio e a agressividade ‘do tigre e do dragão’, agora mais à flor da pele…
A vibrante Olivia e o sereno Serge, conheceram-se no Théâtre du Soleil. Habituados a “fingir que é dor, a dor que deveras sentem” (Pessoa), após dez anos de encenação de personagens, poderão eles sobreviver na própria pele? Antes era a vida que criava a arte, mas agora é a arte que cria a vida.
“Tchekhov escreveu ‘A Gaivota’ como uma espécie de eco de Hamlet. Nina representava uma Ofélia que não comete suicídio — uma gaivota que é atraída pela água, mas ao invés de se afogar voa rente à superfície.”(1) E sabemos que a gaivota, tanto em Tchekhov como em Richard Bach, é sinónimo de liberdade.
Sobreviverá a gaivota-Olivia à gaiola-isolamento? Capturada na mais profunda transformação física e psíquica, mais permeável às vivências arcaicas, Olivia não se deixa destruir, mas antes “descobre a ambiguidade de sua existência, toma consciência de sua ardilosa realidade”(2) e voa, como “uma gaivota na tempestade, corajosa”, mas para dentro de si: “pensei durante muito tempo ser tão dependente do amor dos outros que nunca seria capaz de me apaixonar”… “era como se eu não existisse sem o olhar dos outros”… “fiz de tudo para ser amada”… “tenho medo de torná-lo (bebé) a solução para a minha incapacidade de solidão”…
A realizadora Petra busca “criar uma arqueologia de afetos, tentando chegar a níveis profundos de emoções impalpáveis… memórias, desejos, remorsos, hábitos e segredos.” Lea diz ter sido “comovente brincar com novas tensões entre atuar versus ser, porque essa era a questão que Olivia encarava em sua vida, e nunca de um modo tão intenso como durante sua gravidez.”(1)
“Muito mais do que a sagração do feminino, a experiência da maternidade é o sepultamento da mulher que existia antes. O contrário de fácil ou de simples. É preciso gritar que a gravidez pode ser uma experiência aterrorizante.”(3) E esse é o foco, iluminando uma vivência ancorada na realidade, com conflito e ambivalência: estamos grávidos ou estou grávida de um filho teu ou estou grávida do nosso desejo e tenho de abrir mão dos meus (atriz) e tu continuas os teus (ator)?
As ‘Senhoras do Ó’, prenhes de misteriosidade, abarcam tanto a histórica mitificação da maternidade em encanto e inocência, quanto simbolizam a origem e o futuro, o alfa e o infinito da jornada civilizatória.
O corpo grávido de uma mulher é de uma fisicalidade simultaneamente aterradora e sublime. Figura a sexualidade e o inefável Eros que ali se hospedou — “uma nova pessoa que entrou na sua vida sem vir de fora” Colette Audry (3) — aproximando-nos da condição da mulher, do papel do homem e da pulsão epistemofílica sobre o interior do corpo materno, base da curiosidade e, logo, de toda a cultura humana.
O que leva um casal a desejar um bebé? O que se passa durante os nove meses de gravidez no corpo-olmo enraizado na terra-órgãos e na mente-gaivota, esvoaçando pela amplitude infinita do céu-imaginação? O que permite a passagem da díade à tríade?
O (re)arranjo identitário é atravessado por medos e angústias, por lutos e transformações na articulação dinâmica conjugalidade-parentalidade face ao bebé fantasmático, imaginário e real.
O bebé fantasmático, surge muito precocemente, pois o desejo nascerá da relação dos pais com os seus pais internalizados, da construção das identificações ao longo do desenvolvimento, da integração da bissexualidade psíquica e da maternidade/paternidade como dimensões do feminino/masculino. A transgeracionalidade sabemos ser inoculada desde a pré-história do bebé, através da comunicação de inconscientes — o bebé interno em cada um dos pais e o lugar que vão gradual e fantasmaticamente atribuindo ao seu bebé.
Segue-se a gravidez no corpo feminino em aceleradas mutações, na experiência de gerar um bebé. Olivia sente-se “La Gradisca, a loira gorda com seios enormes, do Amarcord de Fellini”… Corporal-mente, vai visitando memórias sensoriais, paisagens, pessoas, estações, lugares e contatando o animal inquieto que sempre a habitou. Rega as plantas, cantarola, lava a louça, da varanda olha as pessoas na rua e diz sofrer por perder o seu direito a trabalhar e temer ser o começo do fim da sua carreira.
Em contraponto aos clichês com que é bombardeada — “ah, a gravidez que momento maravilhoso”, “o instinto prevalece” — Olivia sente ter “um alien na barriga que se nutre de mim e me impõe as regras do jogo”. Com humor e irreverência responde a Serge sobre o que fez naquele dia: “Hoje terminei as orelhas. Talvez tenha até feito as pestanas. Acho que acabei o fígado.”
Progressivamente vai nascendo o bebé imaginário a par com a transformação — mais ou menos sintónica — do casal na elaboração da triangularização na contramão dos narcisismos. Serge acalma Olivia nas suas inquietações: “uma criança vai trazer muita força”… Mas por enquanto, nas concretas trocas viscerais, ela sente é que o bebé lhe retira cálcio.
A sua crescente e palpável presença amplia espaços externos/internos: surge o quarto-berço e surge o nome-“berço da identidade”(4). Nome de uma árvore — Olmo — repleta de significados, cunhando assim a ancestralidade, os desejos, as expectativas e os sonhos parentais.
Com o nascimento, novas transformações são exigidas ao corpo feminino e à relação conjugal, desencadeando-se a co-construção da parentalidade: a integração do bebé real. A possibilidade de desencontros mãe-pai-bebé é enorme, mas é igualmente surpreendente o potencial de encontros no incessante movimento de encaixes-desencaixes-reencaixes inerentes ao dinamismo da intersubjetividade.
O desenrolar das filmagens e da relação atores/realizadoras, também o retrata. Negoceiam limites: o parto não será filmado. Ajustam (des)encaixes: Olivia não falará de infidelidade, mas acede a falar de ciúmes a propósito do ex-namorado Álvaro. E, no continuum da sua auto-análise, clarifica a matéria qualitativa das duas relações: apaixonada com Álvaro e sólida com Serge.
Amenizado o tempo de sacrifício, abre-se o desejo de celebração.
Olivia quer uma festa. Quer que os amigos testemunhem a barriga/gravidez, conectando o bebé, ainda intra-uterinamente, à sua rede de suporte afetivo. Entre o stress e o humor, cozinham e enfeitam a casa com muitas, muitas flores.
Comem, bebem, cantam e dançam em prazeirosa afetividade. Brindam “à Olivia, ao Serge e ao animalzinho que está aí.” Mas, os inevitáveis conselhos desabam sobre Olivia como uma avalanche. Angustiada, refugia-se no WC.
Inicialmente, foi também ali, enquanto aguardavam os traços coloridos no teste de gravidez, que Olivia e Serge cantaram em dueto Mi Sono Innamorato Di Te (Luigi Tenco).
É novamente através da musicalidade, tão fundamental para uma boa rêverie, que Serge tenta resgatar Olivia, cantando-lhe Les Feuilles Mortes (Jacques Prevert). E juntam-se em coro os amigos que ‘abensonham’ Olivia despetalando flores na sua cabeça.
Nós, ‘abensonhados’, testemunhamos ao ritmo do Samba da Rosa (Vinicius e Toquinho) a tríade refletida no espelho da sala. Olivia banha e amamenta Olmo enquanto Serge filma ‘la Madonna con il Bambino’.
Harmonizado o bom e o belo nesta cena originária, resta-nos o misterioso da vida.
AUTORA
Ana Belchior Melícias
Psicanalista da Sociedade Portuguesa de Psicanálise \ Analista da Criança e do Adolescente \ Docente do Instituto de Psicanálise \ Formadora do Método Bick
E-mail — mail@anamelicias.com
REFERÊNCIAS
1.Depoimento de Petra Costa e Lea Glob. In: http://olmoeagaivota.com.br/presskit-pt/
2.Ensaio de Edmundo Desnoes. In: http://olmoeagaivota.com.br/presskit-pt/
3.Brum, E. (2015). A “safada” que “abandonou” seu bebê. Eliana Brum, no El País, 12/10/2015.
4.Lisondo, A.B.D. (2011). Filiação simbólica ou filiação diabólica? In: I Jornada Brasileira Interdisciplinar sobre homoparentalidade. Universidade de São Paulo.
5.Filme discutido no dia 15.12.2020 e no dia 08.11.2022, na II e na III Formação Observação Bick (SPP).
FICHA TÉCNICA
Título original — Olmo and the Seagull
Título português — Olmo e a Gaivota
País — Brasil – Dinamarca – França – Portugal
Ano — 2015
Duração — 87 min
Direção — Petra Costa e Lea Glob
Colaboração — Olivia Corsini e Serge Nicolaï
Roteiro — Petra Costa e Lea Glob
Colaboração roteiro — Martha Kiss Perrone – Moara Passoni – David Barker
Produção — Charlotte Pedersen – Luís Urbano – Tiago Pavan
Fotografia — Muhammed Hamdy
Música — Adam Taylor
Montagem — Tina Braz e Marina Meliande
Elenco — Olivia Corsini – Serge Nicolaï – Arman Saribekyan – Philippe
Duquesne – Shaghayegh Beheshti
SINOPSE
Quando o espetáculo ‘A Gaivota’, de Tchekhov começa a tomar forma, Olivia e seu companheiro Serge, que se conheceram no Théâtre du Soleil, descobrem que ela está grávida. Os nove meses constituem um ritual de passagem para Olivia, confrontada com as suas vivências, memórias e medos na surpreendente e inquietante aventura de tornar-se mãe.