O LUGAR DA NOSSA ORIGEM, ONDE NOS PODEMOS RECONSTRUIR — Paris, Texas (1984)
— JOÃO PAULO RIBEIRO & VERA DOMINGOS —
Travis Henderson deambula pelo deserto aparentemente sem rumo. A música de Ry Cooder marca o ritmo deste solitário caminhar, como se tratasse de uma ressonância emocional da sua profunda solidão. Encontra-se no deserto, no mundo em que apenas contacta com a desertificação interna, fruto do desmantelamento (1) da sua vida mental.
Após a ruptura da sua relação conjugal, Travis Henderson, num estado de catatonia, inicia uma viagem para o lugar onde julga ter sido concebido, e onde adquiriu um terreno para viver com a mulher e o filho — “Paris, Texas”. Não fala, apenas se move pelo desejo de alcançar esse lugar. Percorre a paisagem árida do Texas até desfalecer numa bomba de gasolina. Através dos seus pertences descobrem o contacto do seu irmão, Walt, e é este que o vai buscar, após quatro anos sem saber do seu paradeiro. De início Travis não verbaliza qualquer palavra. Encontra-se num mutismo absoluto, retido no seu claustro (2), sem noção do tempo que deambulou pelo deserto, e serão a afetividade e a persistência do seu irmão que permitirão a Travis voltar à realidade e a comunicar.
O filme leva-nos a viajar com Travis na recuperação da memória da sua vida e da sua identidade, na reconstrução dos factos que conduziram ao evento traumático da ruptura amorosa, e nos acontecimentos que irá viver para elaborar o trauma e retomar o seu funcionamento psíquico. Será por intermédio das relações com o filho, com o irmão e com a mulher do irmão, Anne, que Travis vai rememorando e significando pedaços da sua dolorosa história.
Ao reencontrar Hunter, o seu filho, depara-se com o desejo de se reconstituir como pai e restabelecer a relação perdida. Essa reaproximação a Hunter permite a ambos o desenvolvimento da relação pai-filho, e a reconstituição desse vínculo. No decurso do filme, o holding (3) de Hunter torna-se o principal motor que impulsiona a elaboração do trauma que assolou Travis. A sensibilidade empática para com o seu pai é de facto notável. Com efeito, Hunter apreende o amor que o seu pai nutre pela sua mãe, um grande amor que o fascina, assim como vai revelando uma apurada capacidade de escuta e de indagação, tornando-se uma espécie de “psicanalista” do seu pai. Neste sentido, a progressão da relação com Hunter permite que Travis vá acedendo a partes de si e rememorando memórias da sua história, que foram abolidas da consciência pelo trauma. A busca da sua identidade enquanto pai leva-o à busca de si, enquanto filho e sujeito. À medida que vai acedendo ao seu mundo interno, Travis vai-se sentindo mais apto a reencontrar-se com o passado e, consequentemente, com Jane. Revela ao filho o seu desejo e este decide acompanhar o pai, na medida em que também pretende reencontrar a mãe.
A cena do reencontro entre Travis e Jane transmite-nos a vivência interna de ambos e a história trágica desta relação. Travis e Jane viveram uma relação na qual Travis não se conseguia separar emocionalmente de Jane. Os seus sentimentos de insegurança e as angústias de abandono tornaram-no controlador e violento, invadido por fantasias de traição e ciúmes obsessivos. Quando Jane engravida, Travis escala na sua obsessão e reforça o controlo, a ponto de a aprisionar, com medo de que fuja. Jane efetivamente foge e Travis inicia aí o seu desamparado caminhar, inicialmente como intolerância mental ao que acabara de viver e, mais tarde, rumo a “Paris, Texas”.
É no reencontro com Jane que Travis se consciencializa que as suas inseguranças e desconfianças permanecem intactas, e que não será capaz de retomar a relação. Ainda assim, procura reparar a culpabilidade que sente por ter causado a separação da mãe e do filho, promovendo o seu reencontro. Após o reencontro mãe-filho Travis inicia uma nova viagem. Provavelmente para “Paris, Texas”, o lugar onde foi concebido e onde, simbolicamente, a sua identidade teve origem.
“Paris, Texas” evoca, portanto, o tema da reconstrução relacional, interna e externa, a partir do berço identitário e relacional. Quer dizer, evoca o impacto do lugar de origem na construção da identidade. Travis, após a separação traumática e na impossibilidade de a elaborar, busca o lugar onde sente que se constituiu como membro de uma família. O lugar onde os vínculos primários fundam a identidade e ao qual se pode retornar, sempre que a necessidade de reencontro identitário impera.
Neste sentido, o retomar da relação com o filho permite a Travis contactar, efetivamente, com as vivências primárias do seu trauma. Ao descobrir-se enquanto pai descobre-se, simultaneamente, enquanto filho, e será este enriquecimento interno que mobilizará o desejo de ir em busca de Jane e de reencontrar-se com o passado. Do mesmo modo, será nesse processo de “autoanálise” que Travis consciencializará que as fragilidades relacionais que o conduziram ao estabelecimento de um vínculo patológico se mantêm, inviabilizando a relação com Jane. A busca interna terá de prosseguir sem a família que tanto desejou. Da mesma forma, será no âmbito desse processo ”autoanalítico” que Travis promove o reencontro de Jane e Hunter, reparando, internamente, os danos que pensara ter provocado. O reencontro entre Jane e Hunter, observado por Travis, é filmado com uma tonalidade verde, que parece simbolizar a esperança desse reencontro, e a de Travis poder avançar com a sua vida, partindo para a nova viagem. Todavia, quando Travis inicia essa viagem é em tom vermelho que o vemos, possivelmente para evocar a continuidade do seu processo regressivo, agora munido de uma maior capacidade de aceder ao pensamento.
“Paris, Texas” coloca o espectador como observador do trajeto emocional de Travis, mas também de outras vivências emocionais, a saber: a vivência do irmão e da sua mulher sobre a parentalidade, na medida em que criaram Hunter; a vivência de Hunter ao confrontar-se com o pai desaparecido e com os seus sentimentos de lealdade para com os pais adotivos; a vivência de Jane, que também experienciou um trauma, pela forma disruptiva como se separou e ficou aprisionada a essa relação.
“Paris, Texas” revela o mundo interno e o percurso emocional dos personagens que o compõem, permitindo, em consequência, múltiplos olhares sobre as suas vidas psíquicas.
AUTORES
João Paulo Ribeiro
Psicólogo Clínico e da Saúde \ Psicodramatista \ Membro aderente da Sociedade Portuguesa de Psicodrama Psicanalítico de Grupo (SPPPG) \ Membro candidato da Associação Portuguesa de Psicanálise e Psicoterapia Psicanalítica (AP) \ Membro candidato da Poiesis Analitika – Associação Portuguesa de Psicoterapia Psicanalítica de Casal e Família
E-mail — ribeiro.joaopaulo@gmail.com
Vera Domingos
Psicóloga Clínica e da Saúde \ Membro candidato da Associação Portuguesa de Psicanálise e Psicoterapia Psicanalítica (AP).
E-mail — domingos.vera@gmail.com
REFERÊNCIAS
1. Meltzer, D. (1975). Explorations in Autism. London: Clunie Press.
2. Meltzer, D. (1992). The Claustrum: An investigation of claustrophobic phenomena. London: Clunie Press.
3. Winnicott, D. W. (1953). Transitional objects and transitional phenomena. in playing and reality. London: Routledge.
FICHA TÉCNICA
Título original — Paris, Texas
Título português — Paris, Texas
Ano — 1984
Duração — 147 min
Países — Alemanha, França, E.U.A.
Direção — Wim Wenders
Argumento — Sam Shepard e L. M. Kit Carson
Produção — Anatole Dauman
Fotografia — Robby Müller
Música — Ry Cooder
Montagem — Peter Przygodda
Elenco — Harry Dean Stanton – Nastassja Kinski – Dean Stockwell – Aurore Clément – Hunter Carson – Bernhard Wicki
SINOPSE
Travis Henderson, desaparecido durante quatro anos, é encontrado num árido deserto do Texas, em estado catatónico. O seu irmão, Walt, acolhe-o em sua casa, na qual Travis passa a viver com seu filho Hunter, Walt e a esposa deste, Anne. Aos poucos Travis vai-se relembrando da sua vida e dos motivos que o levaram a se refugiar dos humanos. Por intermédio da relação com Hunter, Travis vai reaprendendo o que é ser pai, e começa a sentir-se preparado para o reencontro com Jane, a sua ex-mulher.