FANTASIA IMPROVISO — The Son (2022)


— LEDA BEOLCHI SPESSOTO —

Introdução

Ao me ver impactada pela experiência emocional do filme “Um Filho” pensei como poderia construir um comentário que estimulasse a reverberação das percepções de cada espectador.

Depois de algum tempo um modelo musical surgiu como possível caminho a percorrer.

A Fantasia Improviso opus 66 de Chopin tocou em minha mente com sua exuberância e suas notas em destaque que aos poucos vão construindo uma melodia no meio de uma profusão de sons. Não chega a ser um tema que se repete e traz variações, mas linhas melódicas que se insinuam. Espero apontar as fantasias que se organizaram na minha observação alinhavadas de forma livre no meu improviso.

Considero os personagens como elos de uma cadeia de vida onde podem ocupar diferentes posições segundo a linha do tempo — filhos, pais ou avós — e uma cadeia de transmissão transgeracional (6) examinada a partir dos pontos ocupados por seus componentes.

A chegada ao mundo

Com muita delicadeza somos envolvidos por um manto sonoro da mãe que embala o seu bebê, num momento de encantamento mútuo que vai reunindo e integrando percepções ainda muito fragmentárias e construindo as primeiras referências de uma mente. A figura paterna se introduz, neste caso, não para compartilhar do encantamento, mas para se interpor na díade buscando a mulher para si. Esta mãe do encantamento e da organização mental primordial parece se esvanecer, ameaçadoramente aderida ou perdida para o protagonista.

Perdido no mundo

Rapidamente estamos às voltas com um filho adolescente, vagando pelo mundo sem estabelecer vinculações fora do âmbito familiar, reduzido ao convívio com a mãe. Há um apelo para triangulação e participação do pai ampliando a relação diádica e resgatando o vínculo com o filho. Vários ensaios são feitos com os pais biológicos ou com o novo casal que o pai formou, mas o triângulo não se sustenta. A função paterna de acolher e interditar, criando derivações para os impulsos do filho, parece frágil e fragmentada. Na memória e no tempo presente a interação pai e filho é lúdica e estimuladora da potência do filho, porém são sequências sem consequências, há rupturas inexplicáveis que nos levam a conjecturas imaginativas. O pai advoga o direito de reconstruir sua vida, mas não temos elementos para saber de que destruição ele estaria falando, pois, o casamento inicial e a relação com o filho vêm em cenários paradisíacos. O campo para fantasia é imenso. O casal fragilizado seria uma herança transgeracional? As mulheres presentes são frágeis ou muito aderidas aos filhos por colapso da função paterna do parceiro? O triângulo edípico não se sustenta? Os homens que são apresentados em três gerações estariam fazendo sombra às figuras femininas e sua importância, que desta forma ficariam restritas a uma presença perigosamente sedutora?

Busca de modelo

Parece haver uma busca de modelos de uma geração em outra, com o personagem pai mostrando sua faceta de filho que revisita o próprio pai, agora no papel de um avô rígido e competitivo e de pouca sensibilidade às demandas emocionais. Parece haver uma violência na quebra dos vínculos regidos mais por inveja competitiva do que identificação amorosa. A trama sugere questões transgeracionais, que não elaboradas vão atravessando gerações, material em bruto em busca de expressão ou elaboração que as transformem.

Impacto do modelo rígido

Referências a desamparo, vulnerabilidade e sofrimento ficam distanciadas na história e não são tomadas para si e nem vistas à luz do presente. O pai e o avô se apegam ao sucesso profissional e se distanciam do contato afetivo e das dores da vida que parecem ressurgir de forma intensa e angustiada em Nicholas, que não consegue encontrar nem tampouco construir e sustentar vínculos suficientemente contentores da angústia e geradores de significado.

Evidenciação de sofrimento

O adolescente inscreve a dor fisicamente através de automutilação e ela parece surgir aparentemente desvinculada da experiência emocional, clamando por um leitor que enxergue além dos sintomas aparentes e possa dar sentido. O cutting geralmente é uma forma de expressão de angústias arcaicas que não puderam ser encaminhadas de outro modo, denunciando a falência ou fragilidade nas vinculações primárias o que no filme também se apresenta como um dado pouco explorado na plenitude de seu significado dramático, deixando ao expectador a possibilidade de aprofundar suas conjecturas. Deixo a referência de uma autora (4) que tem se dedicado a estas questões junto com observações da anorexia e bulimia, descrevendo o mundo objetal destas patologias onde encontra um elevado número de casos de cutting.

Vagando pelas ruas

Os elementos ansiógenos buscam vazão motora num contínuo caminhar, sem encontro de uma mente própria ou de alguém que os possa acolher e transformar. A escuta, quando aparece, é fugaz e regida por ordens de como se comportar. Como expectadores podemos nos sentir sem elementos compreensivos destes movimentos, correndo o risco de atribuir responsabilização precoce se a questão não permanecer como interrogante.

Tentativa de suicídio

Muitos elementos das nossas conjecturas podem estar aglutinados nesta tentativa de suicídio. Nesta situação os pais são convocados e se apresentam unidos. O sofrimento é explicitado mais uma vez, lançando um apelo por cuidados e ao mesmo tempo remetendo aos pais a função de lidar com a dor mental intensa. De um modo geral o suicida busca alívio de alguma dor que lhe é insuportável (1). A aproximação desta dor é difícil e delicada e se puder haver ajuda profissional sensível este caminho pode ser facilitado. Como expectador é difícil não se identificar com cada personagem em suas angústias e tentativas de apaziguar o sofrimento. Momento de reflexão para buscas diante de desafios na vida de cada um de nós se não houver antecipação de respostas definitivas que podem encerrar a capacidade de observação e maturação das intervenções cabíveis.

Intervenção institucional

A instituição apresenta-se pouco acolhedora com os pais, replicando um modelo apoiado em regras e protocolos sem escuta para as particularidades e a subjetividade e isto favorece a evolução para respostas impulsivas de todas as partes. Muitos trabalhos apontam o que ali foi informado, mostrando o alto índice de suicídio após internação por tentativa anterior. Nestes trabalhos também se discutem as intervenções possíveis para evitar este desfecho trágico (5). Não existem abordagens que possam garantir proteção plena, mas as melhores chances de sucesso parecem surgir através de acolhimento das angústias de cada parte, inclusive da equipe de saúde e explicitação delas.

Suicídio

Num cenário onde o casal parental ensaiava revisões de seus papéis, o adolescente traz a mais violenta expressão de seus sentimentos, atacando mortalmente a si próprio e deixando aos pais a herança dolorosa de sua reclamação e crítica como nova forma de se fazer eternamente presente. A arma escolhida estava disponível e alude a comportamento violento de caça que norteou a outra geração, ainda que socialmente aceito, referência a uma apropriação de potência para destruir e não para edificar. O filho convoca o casal cuidador, mas não tolera a união dos pais, prevalecendo a dor da exclusão, da inveja, dos ciúmes talvez? O momento que antecede o ato suicida traz profundas cisões na mente da pessoa e ideias contrastantes convivem calmamente, não gerando uma relação de causa e consequência, portanto, amar e se despedir para sempre podem coexistir sem qualquer conflito. As funções cognitivas estão prejudicadas e qualquer apelo racional não costuma surtir efeito. As motivações para a tentativa anterior possivelmente permanecem presentes, até porque qualquer transformação não se faria de forma rápida e se incluirmos a necessidade de um rearranjo na dinâmica familiar mais tempo seria necessário. A ideia de extensão da internação é simplista para contemplar todas estas variáveis.

A dor dos sobreviventes

O pai no seu luto alucina com a possibilidade de uma história diferente na qual prevaleça a identificação com aspectos bons e construtivos da sua potência. Luta com a expiação da culpa pela acusação de falha a ele endereçada através do suicídio. Culpabiliza-se por não ter conseguido ele próprio reescrever a história familiar deixando alguns aspectos a cargo de seu filho. Aprisionado neste mecanismo, não evolui e segue se martirizando, num sistema violento e masoquista ao mesmo tempo, impedindo a elaboração do luto que nos casos de suicídio é uma das mais árduas tarefas (2).

Trabalho pessoal e transgeracional?

A busca do reconhecimento da dor mental e sua necessidade de transformação perpassa a vida humana e a cadeia geracional. O índice de suicídio aumenta para famílias onde já houve um precedente. Podemos pensar em vários fatores favorecendo esta repetição, além de questões genéticas ou ambientais, não podemos esquecer do modelo identificatório que perpassa gerações e da difícil tarefa de modificar relações e vínculos que cada indivíduo pode herdar.

A arte poderia nos salvar?

Buscar um destino para nossos impulsos é um imenso desafio na sustentação da vida. A arte em geral, este filme e esta discussão são uma oportunidade de derivação criativa para nossas necessidades. Assim como o manto sonoro que a mãe oferece ao bebê em sua chegada ao mundo, precisamos sempre de recursos internalizados ou externos para a construção do nosso psiquismo.

Volto à Fantasia Improviso

Seria esta música o manto sonoro que se apresentou a mim para acolher e integrar os estímulos gerados pelo filme? Deixo aqui sua audição como sugestão para quem me acompanha (3) e um espaço livre para registrar as reverberações de cada espectador. Vale observar que a estrutura desta música pressupõe integração e harmonização de frequências diferentes, à medida que na sua partitura em muitos compassos dentro de cada unidade de tempo rítmico um número diferente de notas precisa ser acomodado pela mão esquerda (3 notas) e pela direita (4 notas) durante sua execução, o que só se torna possível rompendo a sinergia dos movimentos das mãos e incorporando a alteridade no funcionamento delas. Ouso fazer uma analogia com o trabalho transgeracional de reconhecer a singularidade de cada geração estabelecendo um padrão sincronizado de convivência. Mesmo aos não iniciados em música fica o convite para este exercício mental e sensório-motor.
Espero que este texto possa ser estimulante a quem assistir ao belo filme de Florian Zeller que sutilmente abre espaço para muitas ampliações das questões ali apresentadas.

AUTORA
Leda Beolchi Spessoto
Psiquiatra e Psicanalista \ Membro Efetivo e Analista Didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP)
Email — ledabspe@hotmail.com

REFERÊNCIAS
1.Cassorla, R.M.S. (2021). Suicídio – Fatores inconscientes e aspectos socioculturais: uma introdução. Blucher, São Paulo.
2.Fukumitsu,K.O. (2013). Suicídio e luto; histórias de filhos sobreviventes. Digital Publish &Print, São Paulo.
3.Katsaris, Cyprien (2011). Chopin Masterclass – Vol.3, Fantasie Impromptu, Youtube, 2011 https://youtu.be/OlxiMaREH2U
4.Miranda, M.R. (2004). O mundo objetal anoréxico e a violência bulímica em meninas adolescentes. Revista Brasileira de Psicanálise, vol38 (2), São Paulo.
5.Schechter, M. (2016) et al. Postdischarge suicide: a psychodynamic understanding of subjective experience and its importance in suicide prevention. Bulletin of the Menninger Clinic, Vol.80,n 1, New York.
6.Trachtenberg, A.R.C. (2013) et al. Transgeracionalidade – de escravo a herdeiro: um destino entre gerações. Ed. Sulina, Porto Alegre.

TRAILER

FICHA TÉCNICA
Título original — The Son
Título português — Um Filho (BR) / O Filho (PT)
Ano — 2022
País — França, UK, E.U.A.
Duração — 123 min
Argumento — Florian Zeller e Christopher Hampton, baseado em Le Fils de Florian Zeller
Produção — Joanna Laurie – Iain Canning – Emile Sherman – Florian Zeller – Christophe Spadone
Fotografia — Ben Smithard
Música — Hans Zimmer
Edição — Yorgos Lamprinos
Elenco — Hugh Jackman – Laura Dern – Vanessa Kirby – Zen McGrath – Anthony Hopkins – Hugh Quarshie

SINOPSE
Um pai tem sua vida modificada quando a ex-mulher pede ajuda com o filho adolescente. O pai aceita hospedá-lo junto de sua nova mulher e seu bebê. As relações entre os personagens vão revelando inúmeras dificuldades, algumas transgeracionais e novos desafios se apresentam culminando em um desfecho trágico.