SOLTAR A VOZ — The Piano (1993)

— ELSA COUCHINHO —

Com O Piano, Jane Campion recebeu a Palma de Ouro em Cannes (1993) tornando-se a primeira cineasta mulher a ser laureada com esse prémio, passados trinta anos da sua estreia permanece um objecto estético poético e enigmático.

O mutismo para o qual Ada se retira aos seis anos será fruto de algum acontecimento traumático? Uma experiência que ficou aquém da palavra, de uma narrativa que lhe desse sentido?

Algo que ficou exclusivamente no domínio da sensorialidade e que se manifesta nos sons do piano, não como gesto de comunicação com outros, mas como um circuito fechado, um monólogo materializado nas arrebatadoras composições de Michael Nyman, vagas centrípetas onde rodopiamos numa espiral.

“Ada escolherá o momento em que deixará de respirar” diz o seu pai, dando conta da omnipotência e obstinação da sua filha enclausurada no mutismo. Mas também no mutismo que lhe é socialmente imposto à medida que cresce, pois uma mulher sem marido não tem vontade nem desejo, não tem voz. Ada é propriedade do seu pai que a força a casar vendendo-a a um desconhecido (Sam) do outro lado do mundo.

Os homens que transportam o piano até à praia consideram-no um caixão. Com o seu mutismo e a sua relação com o piano, Ada permanece morta/ retirada do mundo que a circunda, como que num retorno ao narcisismo primário e ao auto-erotismo (1).

Ninguém à sua espera na praia. O piano e todos os seus pertences dispersos pela praia, figurabilizando a fragmentação interna provocada pela ausência de todas as suas referências, a separação do seu país de origem e a chegada a uma terra estranha.

O território Maori na Nova Zelândia foi um dos últimos a ser colonizado. Os colonos transpõem o seu modo de vida, estabelecem-se criando fronteiras: os homens e os selvagens, a cultura e o primitivismo. O homem branco avança e conquista, o seu passo não se detém, nem perante o cemitério Maori.

Sam compra as terras, negoceia e avança com as cercas, delimitando a sua propriedade. Sam compra uma mulher, negoceia e avança. Enquanto compõe a sua figura ao espelho denuncia a sua inexperiência. Será a cerca do casamento suficiente para se apoderar de Ada?

Ada e Flora, sua filha, mantêm uma relação simbiótica, como uma unidade impenetrável que exclui todos os outros. Na fantasia de cena primitiva, Flora imagina os pais cantando num maravilhoso vale mas, no clímax do dueto o pai é fulminado por um relâmpago, e Flora preserva a mãe só para si. Afirma que jamais chamará pai a Sam e quando o faz, não é porque lhe reconheça a função paterna, mas porque se alia com Sam contra a mãe, contra a exclusão da relação amorosa desta com Baines.

É no lugar da ausência que pode emergir o símbolo e o pensamento, é na elaboração da separação que o crescimento psíquico tem lugar e é a separação do piano que empurra Ada para as trocas relacionais. Trocas de domínio e submissão, trocas comerciais.

Baines surge-nos como uma personagem alfabetizada por uma outra cultura, a cultura índigena dos Maori onde a sexualidade e os papéis de género são mais fluídos e talvez por isso o seu olhar sobre Ada difere do de Sam. Na chegada à praia, Sam observa a sua mulher troféu com desilusão, Baines observa uma mulher cansada pela viagem.

A forma como se relaciona com os Maori evidencia um contacto íntimo com esses seres humanos com os quais se permite ser aculturado, o rosto exibe a arte Maori cujas tatuagens revelam o estatuto dentro da tribo e contam a história de cada um dos seus elementos.

É ainda na praia que Baines tem acesso ao primeiro sorriso de Ada quando esta se reencontra com o seu piano. O reencontro que quebra a figura austera e retirada de Ada, revelando-a mais vitalizada, mais pulsional. Uma mulher desejável.

Nas idas e vindas de Ada damos conta da influência do “Monte dos Vendavais” de Émily Bronté na construção do argumento do filme. Nesse vaivém traça-se a transgressão, o tumulto erótico, intrincam-se as forças pulsionais que compõem uma atmosfera inevitavelmente trágica.

É a separação de Baines que permite equacionar uma troca além do valor comercial e do binómio domínio/ submissão. É também o seu desejo e o seu amor que devolvem a Ada uma outra representação de si e de Baines.

Nas brincadeiras de Flora emerge o sadismo infantil, mas no mundo dos adultos o sadismo tem outro poder destrutivo, emergindo em toda a sua crueldade. O pai quebra a vontade de Ada com um casamento e expatriação forçados. Sam quebra a vontade de Ada amputando-lhe um dedo.

De forma mais ou menos subtil, o filme apresenta-nos dimensões da sociedade patriarcal. O silenciamento da voz das mulheres, dos seus desejos, da sua vontade, da sua liberdade. Numa sociedade patriarcal a mulher não se distingue da criança. A sua voz é infantil como os sons articulados pelas pessoas mudas.

Rompendo o constrangimento violento da sociedade patriarcal, em todos os tempos surgem mulheres que buscam igualdade e liberdade, talvez por isso Jane Campion se tenha inspirado na figura de Mary Jane Mander (1877-1949), uma jornalista neozelandesa que emigrou para os Estados Unidos da América onde se junta ao movimento sufragista.

Essas mulheres que afrontam a cultura dominante enfrentam violências de várias ordens e são categorizadas como loucas e marginais, “aberrações”.

À margem da cultura dominante do seu tempo, Ada e Baines ostentam orgulhosamente o estatuto de “aberrações”, como uma voz que se opõe e que cria outras possibilidades, outras configurações para ser e estar no mundo: “All the imperfect things”, título da composição musical final.

Ambivalente em relação a sepultar-se com o piano ou a libertar-se dele, Ada escolhe viver e sepulta o piano no fundo do mar, corta o cordão umbilical, separa-se dessa parte de si retirada do mundo e emerge, renasce para uma nova vida, feita de trocas amorosas e criativas.

O piano é agora lugar de encontro com os seus alunos. A música é agora lugar de contacto com outros. Entre outros seres humanos Ada precisa de todas as vozes para comunicar e debaixo de um pano escuro treina os vocábulos arrancados ao mutismo.

Ada permanece ligada ao piano no fundo do mar, regressa a ele na suas rêveries em busca de silêncio, talvez para se embalar e poder sonhar, guarda-o como parte de si sem que ocupe toda a sua vida psíquica ou configure toda a sua história. É preciso que haja silêncio entre as notas musicais e entre as palavras ditas para que a harmonia e o sentido se elaborem.

AUTORA
Elsa Couchinho
Psicanalista Associada da Sociedade Portuguesa de Psicanálise e da International Psychoanalytical Association \ Psicanalista da Criança e do Adolescente \ Docente do Instituto de Psicanálise
E-mail — elcouchinho@gmail.com

REFERÊNCIAS
1) Freud, S. (1914). On Narcissism: An Introduction. pp 2929-2954 in: https://www.valas.fr/IMG/pdf/Freud_Complete_Works.pdf
2) Filme discutido no dia 06.06.2023 no Grupo de Reflexão Saúde Mental & Cinema (2022-2023) da Sociedade Portuguesa de Psicanálise, coordenado por Ana Belchior Melícias e Elsa Couchinho.

TRAILER

FICHA TÉCNICA
Título original — The Piano
Título português — O Piano
Ano — 1993
Duração — 121 min
Países — Nova Zelândia, Austrália e França
Realizador — Jane Campion
Argumento — Jane Campion
Produção — Jan Campion
Música — Michael Nyman
Edição — Veronika Jenet
Fotografia —
Elenco — Holly Hunter – Harvey Keitel – Sam Neill – Anna Paquin – Rose McIver – Cliff Curtis – Pete Smith – Bruce Allpress – Genevieve Lemon – Ian Mune

SINOPSE
Da Escócia até à última região a ser colonizada na Nova Zelândia, Ada viaja para um casamento forçado. O piano é o seu reduto com o qual se isola do mundo juntamente com o seu mutismo, mas será também através do piano que encontrará a sua voz e o amor.