COTIDIANO TRAUMÁTICO — Everything, Everywhere, All at Once (2022)
— SILVIA JOAS ERDOS —
Uma foto refletida num espelho circular sugere uma harmonia familiar nos levando a pensar num enquadramento repetitivo e sem saída. Quem de nós não tem uma foto de família?
Começa o grande incomodo visual e estético. Tudo o que vem a seguir é o caos. A tentativa de organizar uma escrita sobre este cenário é empobrecedora do ponto de vista estético, corremos o risco de uma tradução teórica, assim, convido a uma viagem lisérgica, assombrosa tal qual um encontro numa sessão de análise, uma associação livre, deixar vir à tona, soltar tudo o que vier a cabeça. Trata-se do exercício da liberdade, sem título, sem forma. Uma contracultura, tal qual os primórdios da psicanálise no século XIX.
Um casal tentando se comunicar, contar sobre as suas preocupações, os dois não falam a mesma língua, não existe uma linguagem comum. Acordes dissonantes nos invadem, e nos provocam a expectativa de uma história reconfortante, porém o mal-estar persiste.
Há uma evidente desconexão no casal. Ela, preocupada com a sobrevivência dos negócios, com o pai, com a filha; e ele, embora tenha a intenção de se divorciar, atua como se nada estivesse acontecendo.
Ela no meio do caos, por segundos olhando uma TV, se depara com um casal cantando e dançando harmoniosamente.
“Coloca a sua mão na minha. A vida pode ser deliciosa.”
Este é o grande sonho: o desejo, a sexualidade.
Um mundo imaginário de uma riqueza estética única. Uma viagem aos desejos, aos desafios representados em sua singularidade e subjetividade. O eu e o outro. Um encontro analítico, sugere este espanto, uma disposição ao traumático. O desafio é o acesso à loucura, e ao mesmo tempo, uma saída da loucura. Tentando organizar para “não enlouquecer”, o filme em nada difere da nossa realidade traumática.
Em confronto com o cotidiano traumático, recorremos à nossa bagagem interior, procurando algo familiar em nós. Nos deparamos com uma intensidade de desejos, de sonhos, fantasias, com a sexualidade, expectativas. Nos defrontamos com nossas possibilidades e recursos, ansiando uma hipotética organização e equilíbrio.
A escrita, aqui, estimulada pelo filme, também se apresenta desconexa, em busca de harmonia, onde tudo acontece.
À beira da falência, Evelyn é convocada para uma reunião com Deirdre, uma fiscal da autoridade tributária, para prestar esclarecimentos sobre sua declaração de imposto de renda. O clima de tensão é extremo e a partir desse encontro, ela se ausenta e inicia suas viagens no multiverso, aceitando uma missão salvadora, transitando entre o bem e o mal. Nessas viagens assume várias identidades acabando por ressignificar suas relações pessoais, tanto com o marido, como com a filha e o pai.
Amarrar o universo dentro de uma metáfora. Começamos na experiência de um mundo comum, a vida cotidiana. Prestes a perder todas as conquistas a protagonista encontra-se sobrecarregada e infeliz, sua vida é transformada quando surge uma versão diferente de seu marido, para que ela comece a participar de uma nova missão. Uma jornada onde ela é a única capaz de interromper o fim do todo. Um drama familiar comum.
Existem outras versões da própria vida. A dos sonhos e dos desejos. A protagonista não realizou nenhum dos seus sonhos. Isso coloca-a no lugar de antagonista da obra. As coisas na maioria das vezes não fazem sentido. Podemos, porém, aprender com a nossa experiência, e este antagonismo leva-a a vislumbrar uma interação.
A ideia implícita do multiverso é justamente a liberdade, para poder construir o que se quiser dentro dele. Criando várias versões de nós mesmos, um sonho, uma versão desconexa com a realidade. Uma urgência existencial.
No multiverso, Waymond o marido, transforma-se em um galante herói. A filha, Joy, acaba por encarnar uma pessoa má, que no multiverso só reflete o seu desamparo. O pai de Evelyn, autoritário, irredutível, opressor, sempre desmerece a filha.
Uma riqueza de construções, simbolismos, enfrentamentos, onde Evelyn se espanta e se surpreende o tempo todo.
Nós como espectadores, nos confundimos nestes universos paralelos. Não deciframos o que é real.
A situação traumática em si, nos torna reféns, sugerindo estarmos em movimentos circulares, mostra uma incapacidade de adaptação à situação de desprazer. Para sobreviver ao traumático recorremos constantemente ao nosso acervo interno: possibilidades afetivas, memórias, desejos, pulsões, que nos dão suporte emocional para a vida.
Entre a sanidade e a loucura, o filme trata da vida cotidiana, das frustrações, de sobrevivência e questionamentos sobre escolhas passadas. Multiversos se apresentam como metáforas delirantes, uma construção com paralelos à sua própria realidade. Existe uma organização sem simbolização, singular. Quando Evelyn descobre a intenção do marido de se divorciar, experimenta uma surpresa.
“Fizemos uma promessa sagrada”.
Transita entre dois polos.
A cada choque frente ao inusitado, ela se transporta para um universo paralelo. O excesso da realidade transborda se tornando insuportável, ativa a sua alucinação. O marido torna-se um herói. No multiverso situa-se no alfa verso, uma versão que conforta e ampara, seduz. Uma reinvenção da realidade.
Como única hipótese de sobrevivência Evelyn descobriu uma maneira de se ligar temporariamente à outra versão de si, recorrendo à sua memória, suas capacidades e emoções.
No vínculo terapêutico, buscamos um sentido, que está em constante movimento. Não é possível alterar os fatos da vida, mas é possível alterar a forma de vivê-la. Tornar consciente o inconsciente? Aqui temos uma área obscura e tenebrosa, repleta de desejos, fantasias, traumas. Neste vínculo, buscamos uma construção, uma busca de representação usando os recursos disponíveis. Construindo e abrindo a possibilidade de novos caminhos. Esta construção pode ser estética, uma vez que valoriza a narrativa.
Quando existe harmonia e beleza podemos respirar aliviados pois parece que tudo foi restaurado.
O diretor alterna entre cenas caóticas e sublimes. Produz um alívio quando Evelyn se apresenta bem-sucedida, linda, composta. É difícil encararmos as diversidades, o feio, o sujo.
Entre o sagrado e o profano.
Alternamos nossa percepção, a maior parte do tempo. Fazemos construções temporárias, singulares e subjetivas, atingindo provisoriamente o desconhecido e estrangeiro em nós. O filme nos traz esta experiência, do inédito, estrangeiro, traumático. Tentamos entender e transformar esteticamente o que nos acontece. Tentamos organizar até perceber a liberdade de se deixar ir e se inundar com as surpresas do inesperado.
Na incapacidade de organização e adaptação a angústia aparece. A clínica se assemelha a esta vivência do incompreensível, e à possibilidade como analistas de nos deixarmos levar, em atenção flutuante, ao desconhecido que se faz presente na sessão. A associação livre é aquilo que nos instrumenta nesta viagem com o paciente. Enquanto analistas devemos estar o melhor possível, despojados de nossas amarras. Numa tentativa de acolhimento, estarmos livres na medida da nossa possibilidade e do nosso acervo interno.
Neste sentido, e sem romantizar uma terapia, uma boa análise é desorganizadora e nos leva, tal qual o filme, a uma incompreensão do universo de cada um. É singular com infinitos movimentos. Um sintoma não deixa de existir, um trauma não desaparece, e com todo sofrimento que pode estar envolvido nesta viagem rumo ao desconhecido, apresenta multiversos incríveis e assustadores. Podemos hipoteticamente conviver com o pior e o melhor em nós. É sempre em movimento que transitamos na vida. E esse movimento é infinito.
O filme aborda trauma relacional, relações familiares, depressão, fuga da realidade, angústia futura e passada, angústia do existir, suicídio, sentido da vida. O movimento parece circular e repetitivo, o que nos leva à noção de trauma e sintoma. Apresenta-se como um buraco negro, e é representado por um bagel (doce americano), associado ao portal, retrato circular e repetitivo. Não há escolha, o massacre cotidiano impede vislumbrar perspetivas integradoras. Qualquer explicação racional para o sentido da vida, é descartada.
Uma desesperança é centralizada na relação da filha com a mãe. Joy (significa alegria, felicidade), a filha de Evelyn, não encontra qualquer explicação para a existência humana.
A cena final nos induz a pensar que Evelyn vai novamente recorrer ao seu multiverso mediante a situação traumática.
Um filme transformador. Uma experiência que nos faz repensar o básico com um requinte de sofisticação. O multiverso está na linha de defesa contra o caos. O diretor nos traz possibilidades infinitas de associações e emoções, em movimentos também, infinitos. Enquanto estamos vivos, nos encontramos em movimento, se transformando. E não é assim mesmo?
“Entre nós, possivelmente, a convicção de sermos detentores da verdade também está por trás das pequenas guerras que travamos em nossas organizações. É sempre motivo de perplexidade, pois as organizações são justamente o espaço essencial para discutirmos nossas convergências e divergências, isto é, o espaço para reflexão dialética sobre nossa prática, que é simultaneamente do objeto, porque conceitual, e concreta, respeita a singularidade do objeto, abrindo-se ao conhecimento do outro com a coragem de enfrentar o infinito.” (2, p.19)
AUTORA
Silvia Joas Erdos
Psicanalista \ Membro Associado da Sociedade Brasileira Psicanálise São Paulo e da Sociedade Portuguesa de Psicanálise
REFERÊNCIAS
1.Freud, S. (1915). Os Instintos e seus Destinos. In Obras Completas, vol 12 (2010). Ed. Cia das Letras (São Paulo).
2.Nosek, L. (2017). A Disposição para o Assombro. Ed. Perspectiva (São Paulo).
TRAILER
FICHA TÉCNICA
Título original — Everything Everywhere All at Once
Título português — Tudo em Todo o Lado ao Mesmo Tempo (PT) \ Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo (BR)
Ano — 2022
País — E.U.A.
Duração — 139 min
Realizadores — Daniel Kwan e Daniel Scheinert
Argumento — Daniel Kwan e Daniel Scheinert
Produção — Hermanos Russo
Fotografia — Larkin Seiple
Música — Son Lux
Edição — Paul Rogers
Elenco — Michelle Yeoh – Ke Huy Quan – Jamie Lee Curtis – Stephanie Hsu – James Hong – Jenny Slate – Harry Shum – Andy Le – Brian Le
SINOPSE
Uma sobrecarregada imigrante chinesa tem seu negócio à beira da falência, seu casamento esta em ruínas, luta para arcar com tudo, inclusive a relação com o pai e com sua filha. Se prepara para uma reunião com a auditora da receita federal, onde se sente acuada. A partir deste encontro repleto de medos, abre-se uma fenda e ela viaja pelo multiverso, explorando outros universos que a tiram da realidade insuportável. Mesmo no multiverso sua missão é salvar o mundo, impedindo que uma entidade maligna destrua as camadas deste mundo invisível. Explora outras vidas que poderia ter vivido e por suas próprias escolhas, não conseguiu realizar seus sonhos.