AMIZADES INTERROMPIDAS — Close (2022)
— JORGE CÂMARA —
Lukas Dhont, com cuidado e sem protagonismo, faz-nos entrar na intimidade de dois jovens amigos e das suas famílias num período do fim das férias de verão e no reencontro com os novos colegas da escola.
Na história, dentro duma casa em ruínas, local de aventuras, desenrolavam-se as rêveries partilhadas, onde as ameaças imaginárias a qualquer momento pareciam invadir o quarto escuro que os protegia e, num jogo entre o dentro e o fora, os dois rapazes embrenhavam-se na descoberta do desconhecimento que os esperava. A tensão e uma inquietante estranheza corriam lado a lado entre entregas e trocas emocionais. Qual o nome do desejo que circulava entre eles? Qual a qualidade do embaraço do meio escolar que os pressionava a nomeá-lo?
Leo e Remi nada deviam perguntar nem encontravam palavras que descrevessem os contornos da sua amizade até que chegam à escola no fim dum verão de cumplicidades. São os 13 anos, e logo no início do filme configura-se o que é o mundo protegido duma relação dual e o drama que os perseguirá no futuro próximo, quando a inocência da sua intimidade encontrar olhares incómodos.
Eden Dambrine (Leo) e Gustav de Waele (Remi) são excepcionais para quem está no ecrã pela primeira vez, colocando a justa medida dentro do espaço mental de dois adolescentes, onde a energia sentida, provocada e induzida tocam o intemporal. Esta pulsão incomoda e o grupo dos colegas sente-se compelido a nomear e catalogar algo que os inquieta, sendo diferente o questionamento dos rapazes do grupo das raparigas.
É um filme que aborda as relações dos personagens/adolescentes na fase mais vulnerável do desenvolvimento humano, onde tudo acontece numa segunda oportunidade, fim da infância e início da adolescência. O apelo ao pensamento dualista/binário está presente e quer-se como organizador do caos provocado pela visibilidade das trocas afectivas. É um filme que corta a bisturi, nos não ditos e silêncios que se desfiam, reabrindo no espectador as cicatrizes da infância que ainda ardem. Todos os personagens têm o seu tempo de elaboração e as verdades abrem-se quando estão maduras, sendo o processo cuidadosamente revelado no tempo psíquico de cada personagem.
Penso que é raro uma abordagem ter tido esta capacidade de mergulhar nas origens da identidade, da sexualidade e da construção da identidade, da relação com os grupos de referência na adolescência e da dor inominável que circula e se materializou no suicídio dum jovem.
Esta subtileza na atenção respeitadora das subjectividades e da temporalidade interna de cada personagem fez-me reflectir na importância da abordagem sensível deste período da vida dos humanos, que é a adolescência.
É um momento tão complexo e fecundo que até Freud foi buscar à adolescência muitas das reflexões que alimentaram a própria metapsicologia freudiana, nas noções da psicosexualidade, bissexualidade psíquica e homosexualidade.
Este mergulhar só foi possível pela coragem em enfrentar a conflitualidade e contradições da adolescência do criador da psicanálise, nos anos de solidão afectiva e de vida imaginária, invejando os amigos que viviam a sua juventude enquanto ele passava o seu tempo a ler e a sonhar. Evitaria Freud adolescente a vivência grupal desregrada a que se entregavam os seus companheiros? Não me refiro ao aprés-coup da adolescência, mas à própria importância da adolescência de Freud, do seu período menos conhecido. Freud adolescente teve poderosas amizades masculinas testemunhadas nas cartas e nas amizades passionais, entre outros, a amizade por Heinrich Braun, Eduard Silberstein e a criação da famosa “academia Castelhana” (Houssier, Florian, 2018). Eduard Silberstein foi colega da escola secundária de Sigmund Freud em Viena. A importância destas referências prendem-se com a elaboração das experiências dos adolescentes no período pós-edipiano. Alguns anos mais tarde Freud escreveu à sua noiva Martha: “tornámo-nos amigos numa altura em que não vemos a amizade como um desporto ou um activo, mas quando precisamos de um amigo com quem partilhar coisas, costumávamos passar horas do dia que não eram passadas na sala de aulas. Compilámos uma grande quantidade de trabalho humorístico que ainda deve existir algures entre os meus antigos documentos”.
Neste filme, a dificuldade da intimidade com a família para metabolizar as projeções hostis dos outros e particularmente, as dos outros rapazes, afetavam o sentido de “masculinidade”. Vemos como os grupos de rapazes expulsavam as suas ansiedades identitárias tendo como alvo os outros jovens considerados menos masculinos, ou não conformados com as expectativas do género, onde os afectos e a sua expressão pelo corpo eram vividos como fragilidades, levando a que rapazes “proto homossexuais” internalizassem essas projeções, escondidas num mundo de terríveis fantasias sem interlocutores.
Leo e Remi constroem uma ideia de que os seus torturadores estão certos e que eles são, de algum modo, inadequadamente não-masculinos, identificados como femininos ou efeminados, algo que terá de ser eliminado.
O filme é de grande complexidade pois aborda a questão do suicídio juvenil, levantando o véu sobre as origens da homofobia nos grupos de adolescentes, rapazes e raparigas. Donald Moss (3), em 2002, descreve que “o uso clínico mais poderoso do termo homofobia depende da sua aplicação a qualquer homem, sem limitação àqueles cuja escolha objectal primária é homossexual”. É interessante no filme como esse movimento é abordado e que nasce da experiência pessoal subjectiva de impulsos homossexuais/homoeróticos, a qual, se ameaçada, é protegida por um movimento no sentido de se identificar com o ódio do grupo masculino contra a homossexualidade, que culminou no ódio a si próprio e no suicídio do protagonista Remi.
Lukas Dhont apresenta-nos o forte poder representacional que os grupos de rapazes do mesmo sexo têm nos mais novos, tornando-se a base de elaboradas fantasias encontradas mais tarde na vida de muitos homens como referente primário que regula os sentimentos de honra, respeito, orgulho e vergonha. Para qualquer rapaz no período pós-edipiano, os outros rapazes têm a função de avaliar a adequação masculina do seu comportamento (1).
O filme, colocado entre a infância tardia e a adolescência precoce, faz-nos viver como a exclusão que se encena no grupo é certa se não cumprirem as regras codificadas pelo género, tanto as interpessoais como as internalizadas. É uma fantasia sobre um Eu que representa uma fusão entre atitudes negativas de imagens homoeróticas e uma sensação de insuficiência masculina inserida no grupo de pares, da rejeição pelos outros adolescentes e do sentimento de vergonha que em última instância terminará na eliminação duma vida (Remi).
Em resumo, a abordagem do realizador sublinha que a experiência total do comportamento sexual e amoroso é profusamente infundido pelos significados, pressões e valores sociais. Consideramos que há no filme uma compreensão da experiência humana, que nos faz questionar se, na aproximação psicodinâmica, devemos romper as ligações históricas com a psicopatologia clínica de modo que as variedades da orientação sexual, amorosa, comportamento sexual e anseios sexuais possam ser exploradas e apreciadas.
AUTOR
Jorge Câmara
Médico Psiquiatra, Psicanalista \ Membro Titular da Sociedade Portuguesa de Psicanálise (SPP) \ Director da Revista Portuguesa de Psicanálise (RPP) \ Membro da Société Européenne pour la Psychanalyse de l’Enfant et de l’Adolescent (SEPEA)
E-mail — jorgecamar@gmail-com
REFERÊNCIAS
1.Friedman, R. & Downey, J. (2002). Sexual orientation and psychoanalysis: Sexual Science and clinical practice. New York: Columbia University Press.
2.Houssier, Florian (2018) Freud Adolescent, Éditions Campagne Première
3.Moss, D. (2002). Internalized homophobia in men. Psychoanal. Q., 71(1) : 21-50.
FICHA TÉCNICA
Título original — Close
Título português — Close
Ano — 2022
Duração — 105 min
País — Bélgica – Países Baixos – França
Direção — Lukas Dhont
Argumento — Lukas Dhont e Angelo Tijssens
Produção — Michael Dhont e Dirk Impens
Fotografia — Frank van den Eeden
Música original — Valentin Hadjadj
Elenco — Eden Dambrine – Gustav De Waele – Émilie Dequenne – Léa Drucker – Kevin Janssens – Marc Weiss – Igor Van Dessel – Leon Bataille
SINOPSE
Close é um filme subtil e sensível sobre a amizade de dois jovens adolescentes e da construção da identidade em cada um deles. A confusão de línguas está presente. Como nomear o afeto masculino nas relações entre pares? Está latente neste filme o modo como se apresenta a construção dos estereótipos e a homofobia internalizada nos grupos e em cada um dos personagens.