O AMOR E AS SEXUALIDADES: INFINITAS POSSIBILIDADES — The New Girlfriend (2014)
— ERANE PALADINO —
A questão do transgênero discutida de forma delicada…
Se a linguagem e a cultura são determinantes na formação psíquica das pessoas, trazer ao discurso questões que, até então, não poderiam ser vistas ou ditas, pode ter um caráter transformador. Apesar das intensas tentativas ao longo dos séculos de padronizar comportamentos e se excluir diferenças, a diversidade tem aberto seu caminho, quebrando o modelo cristalizado e rígido de moral e de família, que acorrenta laços afetivos e a sexualidade.
É com esta proposta que François Ozon apresenta Uma Nova amiga, uma adaptação livre do conto da escritora inglesa Ruth Rendell. O filme se inicia com o casamento de David e Laura, um jovem casal como tantos outros e a madrinha Claire, a grande companheira de infância e adolescência da noiva. O surgimento de um câncer precoce em Laura e a vinda de um bebê levam Claire a prometer à amiga estar sempre ao lado de David para ajudá-lo no que fosse necessário. Após sua morte, numa das visitas, Claire surpreende David vestido com as roupas da esposa, enquanto cuidava de seu filho. O constrangimento o leva a justificativas apoiadas em uma possível necessidade de manter a presença da mãe para seu filho.
Com o tempo e a convivência, ambos desenvolvem uma intimidade que permite, a cada dia, David descobrir-se e expor-se publicamente como Virgínia. Da tensão inicial surge uma cumplicidade com uma dose de atração e erotismo que parece desvendar em Claire seu lado homossexual, encantada pela porção feminina do amigo. Apesar das situações inusitadas, o relacionamento entre eles ganha força sexual e afetiva.
Sem esbarrar num clima panfletário, a narrativa se desenvolve trazendo de maneira natural uma reflexão cuidadosa sobre o desejo e suas infinitas possibilidades.
Vale reafirmar que estes referenciais tão arraigados nas sociedades judaico/cristãs impuseram valores que influenciaram marcadamente a ciência, a medicina e a psiquiatria até poucas décadas. Elizabeth Roudinesco (4), psicanalista e historiadora contemporânea alerta, em seu livro “Por que a Psicanálise?”, que é importante se evitar o reducionismo, muitas vezes estimulado pelas ciências positivistas, na tentativa de normatizar categorias de comportamento e discriminar o que pareça estranho. Este modo de pensar reduz os sujeitos a sistemas fechados que desconsideram as subjetividades e singularidades.
Um exemplo claro e didático se apresenta em 1953 na primeira edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (2). A homossexualidade, neste caso, ficava incluída nos distúrbios sociopáticos da personalidade, como um desvio sexual envolvendo comportamento patológico. Em 1968 passou a pertencer à classe dos Desvios sexuais e somente a partir da terceira edição do DSM em 1987 foi finalmente retirado do Manual. O transexualismo, por sua vez, surge na terceira edição, classificado como uma disforia de gênero, sendo revisto em 1994 com o diagnóstico de transtorno de gênero.
Este processo de patologização da homossexualidade e do transgênero, foi delineado formalmente nas primeiras discussões, no século XIX, por autores como Krafft-Ebing, na Alemanha. Estes entendiam esta prática associada ao desvio sexual, à degeneração e psicopatia. Sob a influência do positivismo e de ideias desenvolvimentistas, Freud (3) escreveu em 1905 os “Três Ensaios sobre a sexualidade” e apontou como aberrações sexuais os desvios, as inversões (ou o que chamou hermafroditismo psíquico) e o comportamento perverso.
Por outro lado, sua teoria sobre Desenvolvimento Sexual, Complexo de Édipo e castração, trouxe a importância das experiências emocionais da infância como bases para a vida psíquica. Tendemos a repetir estas matrizes apoiadas nas identificações estabelecidas nestas primeiras vivências. E em nosso percurso, buscamos novas soluções para as inevitáveis marcas dos conflitos vividos. É a experiência da castração que nos possibilita o contato com nossos limites e com a incompletude. A partir desta constatação, de alguma forma, somos impelidos à busca incessante de satisfação, em direção a outras possibilidades, já que a expectativa de realização pelo prazer total se perdeu e ficou impossível. Este olhar pode transcender o normal e o patológico como únicas referências possíveis.
O inusitado em “Uma nova amiga”, surge também na atração de David/Virgínia por Claire, algo que extrapola o modelo “heteronormativo” previsto e coloca em pauta a questão de gênero, um tema contemporâneo complexo e desafiador aos pensamentos cartesianos.
Na ordem do dia, a filósofa Judith Butler (1), define gênero como “um modo de abraçar ou concretizar possibilidades, um processo de interpretar o corpo”. Nos dias de hoje, este debate visa desconstruir a padronização do modelo biológico e anatômico para definir sexualidade e considera a constituição da identidade e do gênero uma orientação dinâmica atravessada pela construção da história pessoal, das relações e da cultura.
François Ozon foi ousado, mas de maneira delicada conduz o espectador a pensar e refletir sobre as implicações dos desejos e escolhas feitas pela vida. Denuncia também as hipocrisias sociais, os tabus que tendem a inibir infinitas saídas psíquicas para as nossas questões.
Como uma obra inacabada, caminhamos pela vida na busca de soluções mais ou menos criativas para nossas angústias. Em nossos projetos de vida, o amor, o trabalho, as relações, etc. podem permitir a concretização de alguns sonhos, mas trazem sempre à luz as arestas da realidade.
Nesta luta, vemos a cada novo desafio a tentativa da reinvenção de nós mesmos, numa trajetória de aprendizado sem fim. Ou como diz Butler(1): “Como corpos, nós somos sempre algo mais, e algo outro, do que nós mesmos”.
AUTORA
Erane Paladino
Psicanalista \ Professora do Instituto Sedes Sapientiae, São Paulo \ Blog — eraneblog.wordpress.com.br \ Autora do livro “O Adolescente e o conflito de gerações na sociedade contemporânea” (2006) S. Paulo: Casa do Psicólogo. E-mail — erane@uol.com.br
REFERÊNCIAS
1.Butler, J. (2016). Desfazendo gênero. São Paulo: UNESP.
2.DSM 1, 1953.
3.Freud, S. (1905/1987). Três ensaios sobre a teoria da Sexualidade. S. Paulo: Imago.
4.Roudinesco, E. (2000). Por que a Psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar.
FICHA TÉCNICA
Título original — Une Nouvelle Amie
Título inglês — The New Girlfriend
Título português — Uma Nova Amiga
Ano — 2014
País — França
Duração — 105 min
Direção — François Ozon
Roteiro — François Ozon
Produção — Eric Altmayer e Nicolas Altmayer
Fotografia — Pascal Marti
Música — Philippe Rombi
Edição — Laure Gardette
Figurino — Pascaline Chavanne
Elenco — Anaïs Demoustier – Raphaël Personnaz – Romain Duris – Audrey Quoturi – Isild Le Besco – Elyna Berger – Jena-Claude Bolle-Reddat – Jonathan Louis – Michèle Raingeval
SINOPSE
Claire (Anaïs Demoustier) tinha Laura como sua melhor amiga. Parceiras desde a infância, as duas eram inseparáveis. Quando Laura fica doente e morre, Claire se aproxima de seu marido, David (Romain Duris), e surpreende-se ao descobrir o segredo íntimo do viúvo. (https://www.adorocinema.com/filmes/filme-223933/)