CRER PARA VER — ‘Petite Maman’ (2021)

— ANA BELCHIOR MELÍCIAS —

‘Ver para crer’ alinha-se habitualmente com o ceticismo “científico” e até com o universo dito “adulto”. A psicanálise propõe, no entanto e inversamente, o paradoxo, a multiplicidade de dimensões, o manter-se em incerteza, em capacidade negativa, como instrumento privilegiado de trabalho. A intersubjetividade da relação e da compreensão analítica em profundidade, é um ato de fé, como propõe Bion (3), na sua ligação a O, o inatingível, o incognoscível, o inesgotável da experiência emocional.

A proposta deste filme é, nesse sentido, bioniana — é necessário crer para ver. Crer na imaginação, na magia e na peregrinação interior para acedermos à realidade e nos lançarmos no futuro. Andarilhar pelo interior, recolher a história, sonhar e fantasiar, partir do enigmático, suportar o não-saber e manter-se perguntador, como qualquer criança saudável, poderá então favorecer “ver”.

Abarcamos em nós a ancestralidade e as matrizes originárias. E as histórias das suas histórias — cada nascimento traz consigo várias constelações edípicas. Mas também a transgeracionalidade dos não ditos e segredos das tra(u)mas familiares. Como nos podemos entender a nós mesmos sem investigarmos os objetos que nos habitam?

“Céline Sciamma promove o encontro através de uma fenda temporal, que se abre com a mesma naturalidade de uma brincadeira de faz de conta.” (4)

A imaginação é possível. A dor/sofrimento também. O tema da morte nunca é ligeiro. E a representação do luto tem sido um dos temas mais caros e complexos no cinema. A realizadora, não o esconde ou camufla, acompanhando Aberastury (1), pois a morte vem trajada da dor da separação, para poder assim ser vista e elaborada. Para poder assim criar-se uma narrativa e um sentido. Para, como disse Freud, se dar início ao natural trabalho do luto e não se enquistarem melancolias paralisadoras.

Sciamma não protege Nelly, de 8 anos, da dor da morte da sua avó, da dor do “último adeus não ter sido bom”. As derradeiras despedidas, principalmente quando não sabemos que o são, deixam um sabor amargo na alma. Não a poupa à dor do desaparecimento brusco da mãe por não aguentar o seu próprio luto. Não lhe omite a dor de uma doença na infância.

Todos estes temas se apresentam como um puzzle e requerem de Nelly uma viagem no tempo, para a infância da mãe, para a percepção da mãe da mãe que não coincide com a vivência da sua avó, para a magia da imaginação que lhe abrirá a realidade. “No reino da imaginação absoluta, somos jovens muito tarde.”(2)

O luto pela avó e a ausência da mãe, Marion, levam Nelly a investigar a depressão atual, e provavelmente passada. Sabemos que a depressão da mãe é a mais severa pandemia em termos da saúde mental. Neste assunto não há vacina e tem sido parca a profilaxia e minimização de estragos. A criança (e quanto mais pequena pior, justamente no avesso do senso-comum) sente-se narcisicamente culpada pela tristeza da mãe, absorvendo como esponja essa dor, na tentativa vã de vir a ter, não um objeto danificado, mas um bom objeto amoroso, passível de a amar e de poder ser amado. Um objeto reparado dos danos que teme ter causado em fantasia.

O filme parece um nado à superfície, mas o mergulho é profundo, introspectivo e, sem que nos apercebamos, acorda as nossas Marions – mães, pais, avós – e, com eles, a linha do “tempo, esse grande (e implacável) escultor”, parafraseando Yourcenar.

A narrativa é contida, intimista, depurada. As palavras servem para ‘mobiliar o silêncio’, espaço negativo cheio e profundamente partilhado de cumplicidades e (des)entendimentos. Sciamma não dá respostas, convida-nos a acompanhar com naturalidade Nelly de 8 anos, e experienciar a vivência do seu/nosso impulso epistemofílico — “Onde era a tua cabana? Vocês não me contam o que verdadeiramente importa de vocês”. Descoberta da infância da mãe e da relação da mãe com a sua mãe, o processo do luto traz a descoberta, mais ‘desnarcisada’, de que as mães também têm mães.

Começamos com várias despedidas, mas não a única que Nelly gostaria de ter feito. Uma residência sénior, um quarto vazio, uma mãe em choque, uma bengala, um abraço entre os pais e uma casa por desfazer. A casa da avó, onde a mãe de Nelly, Marion, passou a infância.

“A casa é o nosso canto do mundo. Ela é, como se diz amiúde, o nosso primeiro universo. É um verdadeiro cosmos.”(2)

No trajeto para essa casa, Nelly come salgadinhos com mini mordidinhas sucessivas, religando-me a uma recordação prazeirosa de algo que também fazia. Como um ‘bebé sábio’ (5), torna-se mãe da mãe, nutrindo-a com alimento e com afeto no abraço enternecedor que lhe dá enquanto ela dirige o carro silenciosa. No quarto de infância da mãe, partilham livros, brinquedos, cadernos escolares e até medos — a sombra na parede de uma onça que visitava Marion todas as noites. Nelly ainda não a consegue ver…

Não suportando o luto, Marion parte sem aviso, deixando Nelly com o pai, que aproveita então para se debruçar sobre a infância dele: o jogo Jokary (ténis individual) que alude à falta de irmãos — nem ela, nem o pai, nem a mãe usufruíram da salutar companhia de uma fratria; os medos do pai que lhe segreda ter medo do seu pai. Há um certo alívio de haver um pai presente para a filha e um homem capaz de conter a dor da sua mulher, e ainda um pai do pai, pois do pai da mãe nada sabemos a não ser que aos 8 anos de Marion ele já lá não estava.

Nelly pode então, nesse espaço tão definidor e estruturante da infância que é o ar livre ao redor da casa, investigar independentemente, sem o olhar do adulto, na sua ‘capacidade de estar só’, sozinha em companhia e não solitária. Debruça-se sobre a natureza — galhos, pedrinhas, sementes. Um dia, descobre uma menina chamada Marion, como a mãe, e de 8 anos, como ela. Está a construir uma cabana no bosque, como aquelas familiares nos contos-de-fada, e passam a acompanhar-se na criação de um espaço — a cabana — “raiz axial da função de habitar (…), condensação da intimidade do refúgio (…). As cabanas “nos devolvem moradas do ser, casas do ser, onde se concentra uma certeza do ser”, seguindo Bachelard (2).

Na sua indagação sobre mães e filhas, sobre a infância da mãe, sobre o amor dos pais, ao chegar a casa da nova amiga, Nelly percebe imediatamente que viajou para o tempo em que a sua mãe tinha a sua idade. E naturalmente, viaja agora entre a casa confortável e habitada por Marion na infância e a (mesma) casa agora desabitada da sua avó, a ser desmanchada pelos pais.

E como ambas parecem saber que “a morte e o sono são filhos do mesmo pai, mas um não sabe brincar” (6), Nelly e Marion de 8 anos, brincam como duas irmãs: constroem a cabana no bosque, fazem panquecas, jogam, conversam, atravessam o lago a remar e contemplam juntas a despedida da infância, onde é o brincar que permite o acesso à realidade (7).

Nascemos e morremos. Entre esses dois eventos, há o continuum da vida. E muitos filmes ligam, com sensibilidade, os inícios aos fins.

A bengala que pede à mãe como recordação da avó no início, não é a bengala da velhice da sua avó, mas a bengala da doença invalidante da mãe da sua mãe.

O adeus que não conseguiu dizer à avó na residência sénior, consegue dizer no dia em que a avó vai levar a sua mãe Marion de 8 anos, para “ser operada e não ficar como a avó”. Tocante expressão de uma verdadeira transformação, física e psíquica, da transgeracionalidade.

Diz adeus à avó. Reencontra a mãe.

Marion-adulta retorna a casa, mais capaz de pensar o seu sofrimento, se desculpa pela ausência súbita, e liberta Nelly da sua tristeza: “Não acho que seja sua culpa, você não inventou a minha tristeza”.

Ao poder apropriar-se e pensar a sua história e o seu luto, Nelly consegue ver a ‘onça-sombra’.

Terminada a cabana-túmulo, esteticamente colorida com folhas, viajam de barco até à pirâmide-túmulo onde se sentam, em contemplação, filha e mãe, ambas de 8 anos, usufruindo da inevitável despedida que implica a vida e o crescimento — a entrada na latência e a tarefa que esta propõe de encontrar lugares/representações no mundo da cultura para o brincar e para a fantasia.

Ainda passarão juntas a última noite dos 8 anos e Nelly apagará junto à petite maman Marion as velas do seu nono aniversário.

AUTORA
Ana Belchior Melícias
Psicanalista da Sociedade Portuguesa de Psicanálise (SPP) \ Analista da Criança e do Adolescente \ Docente do Instituto de Psicanálise \ Formadora do Método Bick
E-mail — mail@anamelicias.com

REFERÊNCIAS
1.Aberastury, A. et al. (1984). A percepção da morte na criança e outros escritos. Porto Alegre: Artes Médicas.
2.Bachelard, G. (1989). A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes.
3.Bion, W. (1991). As transformações: a mudança do aprender para o crescer. Rio de Janeiro: Imago.
4.Duque, F. (2021). Pequena Mamãe A fantasia para compreender a realidade – https://vertentesdocinema.com/petite-maman/
5.Ferenczi, S. (1993). O sonho do bebê sábio. In Psicanálise III. obras completas de Sándor Ferenczi. São Paulo: Martins Fontes.
6.Nagrelha (Gelson Caio Manuel Mendes), In: Desastres Naturais por António Araújo – Expresso, 9 de Dezembro de 2022.
7.Winnicott, D. W. (1975). O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago.

TRAILER

FICHA TÉCNICA
Título original — Petite Maman
Título português — Pequena Mamãe
Ano — 2021
País — França
Duração — 72 minDireção — Céline Sciamma
Roteiro — Céline Sciamma
Produção — Bénédicte Couvreur
Fotografia — Claire Mathon
Música — Jean-Baptiste de Laubier
Edição — Julien LacherayElenco — Joséphine Sanz – Gabrielle Sanz – Nina Meurisse – Stéphane Varupenne – Margot Abascal

SINOPSE
Depois de perder a avó, Nelly (Joséphine Sanz) de 8 anos, vai com os pais desfazer a casa desta, onde sua mãe Marion (Nina Meurisse) cresceu. No bosque, encontra uma menina da sua idade (Gabrielle Sanz) a brincar com uma cabana. A relação entre as duas apresenta com sensibilidade surpreendentes questões.