DUAS FORMAS DE ARROGÂNCIA — Dogville (2003)

— ELSA COUCHINHO —

Dogville é uma pequena localidade, habitada por quinze almas junto a uma mina desactivada, com uma loja cuja montra exibe pequenas figuras de cerâmica acumulando pó, habitada por uma mulher negra livre mas impregnada da mentalidade esclavagista, por um escritor que não escreve, um médico hipocondríaco, um cego que diz ver…

O realizador Lars von Trier confunde os limites entre teatro e cinema, entre espaço público e espaço íntimo: “In his pitiless view, everyone lives in a fundamental state of isolation, but no one is ever alone. The illusion of intimacy is sustained by the shaky close-ups that have become hallmarks of his intrusive, unnerving camera style, but even the most secret moments seem at the same time to occur in full public view. “ (1)

O espectador é levado a interrogar-se sobre o que está para além do visível e do que é dito. Tal como as paredes das casas, também os sistemas sociais que organizam esta comunidade são invisíveis, estabelecem fronteiras e hierarquias. No caso de Dogvillle eles são o puritanismo, o esclavagismo e o machismo. 

Uma outra dimensão presente em todas as relações humanas é a dimensão inconsciente. Os jogos de luz e de sombras, remetem para a dinâmica consciente/ inconsciente, revelam o que o véu do puritanismo oculta, um lado sombrio, violento e cruel. 

Numa época em que o mundo é percorrido por numerosas massas de refugiados, que procuram escapar da ameaça das guerras, de regimes totalitários, de catástrofes ambientais, da fome e da pobreza, é essencial uma reflexão sobre a forma como se acolhe quem procura abrigo.

Grace procura refúgio em Dogville mas encontra a desconfiança e o medo, pode continuar a sua fuga ad aeternum pelas áridas montanhas rochosas, pode permanecer na cidade à qual nunca irá pertencer se provar o seu valor ou pode sucumbir na mina (seio exaurido, morto).

Na terra dos cães ser-se um ser humano não basta. Um refugiado deve provar que tem um valor para troca e Grace tem duas semanas para se tornar uma mais-valia. É evidente que o seu valor é diminuto dado que os serviços que irá prestar não são necessários, ninguém precisa de ajuda.

Com a recuperação económica e o alívio pelo fim da IGGM, os Loucos Anos 20 tingem-se de um colorido maníaco, que se traduz numa atmosfera de euforia, protegendo o colectivo humano da experiência depressiva e traumática do pós-guerra.

O colapso da Bolsa de Valores dará início à Grande Depressão, colocando milhões de seres-humanos confrontados novamente com a ameaça à sobrevivência e à subsistência, a que acresce a experiência traumática não elaborada da guerra.

Nos Estados Unidos da América esta época é magistralmente ilustrada nas narrativas de John Steinbeck cujo ambiente reconhecemos ao entrar em Dogville e na sequência de fotografias do final do filme.

Uma comunidade que imaginamos ter vivido um período áureo em que a mina (seio ideal) fornecia abundância de recursos e que, após o seu esgotamento, parece refugiar-se na arrogância que nega quer a dependência quer a situação empobrecida em que se encontra. A arrogância que oculta os sentimentos de inferioridade (2), de vulnerabilidade e insegurança, que vai organizando vínculos -L, que se traduzem na incapacidade de amor para com o objecto, na intolerância face à bondade deste e na dinâmica sádica (vínculo H) que irá irromper.

Uma arrogância que protege contra aspectos da realidade, contribuindo para manter sentimentos de controlo, poder e superioridade.

Dogville é um exemplo de patologia social, a dinâmica grupal é reveladora de uma incapacidade de internalização e de identificação a um bom objecto, daí a ausência de empatia, a inveja, a hipocrisia e o cinismo. A disponibilidade empática de Grace, a sua generosidade e a sua afectividade são sentidas como humilhantes e intoleráveis, expõem a dependência, a vulnerabilidade e a hipocrisia individuais e grupais.

Tom procura ocupar o lugar de um líder messiânico, invoca uma missão moral, pretende ser o guardião dos valores. Ambiciona ser escritor, afirma-se escritor, mas o funcionamento perverso é estéril, incapaz de criar e de amar. Aparentemente democrático e diplomata, instrumentaliza os ideais e os valores de forma a manobrar o outro. Um jogador de xadrez. Dispõe as peças e depois torna-se um observador, como se não tivesse responsabilidade pelos acontecimentos: “Tom era como uma aranha: dá suporte enquanto tece a teia”.

Testemunhamos a fuga de Grace, a sua tentativa de se vincular amorosamente à cidade e aos seus habitantes e a forma como se vai emaranhando numa teia sádico-masoquista, dinâmica descrita por Freud (3) quando refere que “o conceito de sadismo vai de uma atitude simplesmente ativa, depois violenta ante o objecto sexual, até o vínculo exclusivo da satisfação com a subjugação e o mau tratamento desse objeto” assim como, o “masoquismo não é senão um prosseguimento do sadismo, voltado contra a própria pessoa”. Ou seja, o masoquista é um sádico.

Grace foge de um pai arrogante, condescendente e cuja forma de vida se caracteriza pela brutalidade e violência, um gangster. Foge, talvez, na expectativa do encontro com um bom seio, mas o que encontra é uma mina desactivada, uma cidade exaurida e rejeitante. 

No diálogo com o pai, Grace confronta-se com a sua própria arrogância e omnipotência que a impossibilitaram de se proteger da teia sádico-masoquista. Como se procurasse uma forma de triunfar sobre o pai identificando-se e aliando-se a um ideal materno, com disponibilidade e recursos infinitos, projectando no pai todos os aspectos destrutivos. As clivagens que sustentam a idealização impedem a integração quer dos aspectos amorosos quer dos aspectos agressivos do self e do objecto.

É a partir do diálogo com o pai que Grace enfrenta a sua própria arrogância e se desfazem as idealizações. Chegou a vez de emergir das sombras o seu sadismo.

Para sobreviver psiquicamente tem de haver limites para o Amor e para o Ódio, para crescer psiquicamente é ainda necessário o sujeito responsabilizar-se pela sua destrutividade e sofrer as dores depressivas.

Para preservar a esperança é necessário que a crueldade tenha limites, o limite do reconhecimento do outro como ser humano. Na cidade dos cães apenas o cão sobrevive, único ser cuja destrutividade não é intencional e por isso, não é cruel.

AUTORA

Elsa Couchinho 

Psicanalista, membro associado da Sociedade Portuguesa de Psicanálise (SPP) e da International Psychoanalytical Association \ Psicanalista da Criança e do Adolescente \ Docente do Instituto de Psicanálise 

E-mail — elcouchinho@gmail.com

REFERÊNCIAS
1) Scott, A.O.”Dogville”: It fakes a village. in: https://www.nytimes.com/2004/03/21/movies/dogville-it-fakes-a-village.html
2) Money-Kyrle, R. (1963). Megalomania in The Collected Papers of Roger Money-Kyrle, The Harris Meltzer Trust, Londres: 2015. pp. 280-281
3) Freud, S. (1905). Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade. pp. 52-53
4) Filme discutido no dia 06.12.22 no III Grupo de Reflexão “Saúde Mental & Cinema” da Sociedade Portuguesa de Psicanálise, coordenado por Ana Belchior Melícias e Elsa Couchinho.

TRAILER

FICHA TÉCNICA
Título original — Dogville
Título português — Dogville 
Duração — 177 min
Ano — 2003
País — Dinamarca, Suécia, Reino Unido, França e Alemanha 
Realizador — Lars von Trier
Argumento — Lars von Trier
Fotografia — Anthony Dod Mantle
Edição — Molly Marlene Stensgard
Figurinos — Manon Rasmussen
Produção — Xénia Maingot, Lene Nielsen, Pia Nielsen, Charlotte Pedersen e Tina Winholt
Cinematografia — Anthony Dod Mantle
Produção — Vibeke Windeløv
Direção de Arte — Peter Grant e Simone Grau Roney
Design de produção – Peter Grant
Cenários— Simone Grau Roney 
Maquilhagem — Anja Dahl, Marleen Holthuis, Robert McCann e Mari Vaalasranta
Elenco — Nicole Kidman – Harriet Andersson – Lauren Bacall – Jean-Marc Barr – Paul Bettany – Blair Brown – James Caan – Patricia Clarkson – Jeremy Davies – Ben Gazzara – Philip Baker Hall – Siobhan Fallon – John Hurt – Udo Kier – Chloë Sevigny – Stellan Skarsgard – Miles Purinton – Zlejko Ivanek.

SINOPSE
Uma pequena localidade isolada nas montanhas acolhe uma foragida. Ao longo de duas semanas a comunidade revelará todo o seu sadismo e crueldade.