ENTRE DESAMPARO E AMOR — Jojo Rabbit (2019)

— DANIEL DELOUYA — 

Admirável como o diretor Neozelandês, Taika David Cohen, mais conhecido como Taika Waititi, conseguiu tecer o drama de uma vida privada e familiar com um cenário cultural, sócio-político, do nazismo. 

Parece-me que dois eixos atravessam essa obra: um eixo vertical que na psicanálise designamos de desamparo, do qual o sujeito se defende convertendo o estado de impotência em seu oposto, a onipotência, numa oscilação entre o medo insuportável e o alívio na superação fanática, como assistimos claramente nos treinos da juventude nazista. O outro eixo é horizontal, que vale designar, simplesmente, e de forma imprecisa de humano, onde o reconhecimento da própria fragilidade, a identificação com o mesmo no outro semelhante, torna o outro um objeto de inclusão, o que chamamos de amor, e assim faz nascer a esperança na vida em comum, em sociedade. 

No primeiro eixo, os ideais se sobrepõem aos sujeitos, esses se tornam, no extremo – como o filme os designa cinicamente – de clones de uma ideologia, nesse caso o nazismo. Nessa ideologia, os subversivos merecem a forca, e as outras espécies, outros ‘clones’, o extermínio. No segundo eixo, é o valor do sujeito enquanto tal, é sua singularidade que merece cuidado e amor; simbolizado no laço de cadarço, e culminando na paixão amorosa que se anuncia pelas borboletas no ventre, e a dança que os celebra, celebra a vida.    

A visão do diretor, da qual eu divirjo, é clara e já na própria escolha do nome, Jojo o coelhinho, que contrasta diametralmente com o nome da novela que o inspirou, a partir de sugestão de sua mãe judia: Caging Skies, O céu que nos assombra, da escritora belga americana, Christine Leunes. Taika crê na conversão da ternura inocente da criança amada, e o coelhinho com que se identifica, para o eixo do amor e a esperança. É onde se situa o amor da mãe pelo filho e da irmã pelo irmãozinho, ambos ancorados no amor ao homem, do marido e do namorado Jonathan, representados por Rosi, Inga, Elsa e que, por fim, alcança os meninos Yorki e Jojo. É o que deve vencer o fanatismo. Esse fio perpassa todo o filme, o que nos anima e alegra… deveria mesmo?

Vamos passear rapidamente pelas personagens… O amigo imaginário de Jojo, Hitler, é costurado à medida do próprio Jojo menino de dez anos… não só na semelhança dos olhares assustados, inocentes e reativos dos dois, mas também nos trejeitos desengonçados do Hitler, uma espécie de palhaço e que pouco tem a ver com as personagens cinematográficas de Hitler da história. As falas nazistas, enfáticas e iradas, de adesão ao combate pela ideologia nazista são todas forjadas – encenadas e cômicas – numa espécie de esforço teatral de superação do seu ânimo natural. Os seus uniformes militares não se ajustam ao corpo infantil dos dois, do menino Jojo e do meninão Hitler.

As outras personagens nazistas também são, em certa medida, cômicas, humanas e são irônicas e cínicas em relação à própria ideologia nazista como é o caso do Captain K, cuja desesperada depressão é afagada pela bebedeira e pela espera do fim da guerra e do nazismo. A ironia não falta também à figura límpida e esquisita do chefe da Gestapo e que nisso é também atípica em relação a seus pares no cinema do período nazista. A exceção talvez seja, entre outras personagens marginais, a da ridícula tenente nazista que se orgulha por ser fonte digna dos clones, contribuindo com 18 filhos para a causa nazista. 

Antes de passar para a trama que tece as outras personagens centrais, queria lembrar que a idade de dez anos é uma idade de passagem entre, de um lado, a latência em que se forjam as identificações no plano social e político e, de outro, a puberdade na esteira da temida sexualidade adolescente. Nessa idade as paixões sociais e amorosas se confundem, são difusas e mal articuladas. O que o filme retrata fielmente e de forma diferente em Yorki e em Jojo.

A ambivalência ao pai é em certa medida o motor do impulso nazista em Jojo. O pai é um desertor da guerra nazista e ele e a mãe atuam em setores distintos contra o regime, o pai frontalmente nas forças de resistência e a mãe na clandestinidade da vida cotidiana do regime. Jojo sabe e não quer saber das posições dos pais, mas a mãe, terna e sábia, tolera e sabe conduzi-lo, confiando no amor do menino por ela, a reconhecer a realidade nazista e sobretudo o desvia aos poucos do fanatismo para o amor e a vida que nele borbulham, mas aos quais teima em resistir. Os triângulos amorosos pai-mãe-Jojo, Jonathan-Elsa-Jojo, Inga-Elsa-Jojo, Rosi-Elsa-Jojo, Hitler-Jojo-Elsa, Jojo-mãe-Captain K, Yorki-mãe-Jojo, todos se conjugam fielmente para contornar a alucinação fanática nazista de Jojo para o humilde plano do amor e da vida.

O que se assiste no cenário íntimo de Jojo e junto aos seus próximos, em meio às tragédias inevitáveis – o extermínio da família de Elsa, a morte de Jonathan, a delação e o enforcamento da mãe, a perda do paradeiro do pai, etc., caminham para um desfecho de final feliz. E o filme retrata e nos faz entender que tudo isso e mais coisas se repetem, paralela e semelhantemente no cenário político, no desencadeamento bélico que culmina na derrota da Alemanha e seus aliados, a liberação dos campos etc., e assim, só nos resta, como o casal Jojo-Elsa, encher o peito de liberdade, de vontade de dançar e celebrar a vida que retorna, por fim, ao que deveria ser… Será mesmo? Ou seria só nos sonhos/filmes? Não há dúvida, é uma bela e amável película. 

Embora não tendo a oportunidade de ler o best-seller que inspirou o diretor, acredito que o filme seria outro caso adotasse o espírito de seu título O céu que nos assombra. No combate entre os dois eixos que mencionei, da negação do desamparo que desemboca no fanatismo, de um lado, e, de outro, a saída humana, de reconhecimento do sujeito e de sua inclusão em prol da realização amorosa e da alegria de viver, a história tem, por enquanto, dado, em grande parte, vitória ao primeiro protagonista, ao primeiro eixo. 

É uma das faces do mal-estar na cultura. Crises que eclodem no curso da realização de nossos ideais, tanto no universo privado, como no plano sócio-político tendem a gerar entre outros, soluções totalitárias e reações fanáticas. Basta lembrar as grandes crises dos inícios do século XX e XXI, dos anos 1929 e 2008 que acenderam as ondas do fanatismo.

Nossa inserção na cultura como no círculo privado são condicionais. É o desamparo que nos faz obedecer para garantir um espaço de inclusão, de amor. A licença em realizar nossas opções e vontades depende de seguirmos certas restrições e regras, caso contrário ficamos excluídos. Ao se inserir na vida social da cultura e da civilização essa licença é ditada não mais pelos adultos de nossa casa de infância e puberdade, mas por personagens anônimos que chamamos de ideais e que têm nas instituições os meios de vigilância e de punição. Acontece que os ideais que regem a civilização têm uma inércia própria, negam progressivamente o desamparo humano, tornam-se vorazes de saber, dominar e adquirir, e ao nos recrutar para essa empreitada nos prometem a felicidade, a segurança e a aquisição de todos os bens… esse é o fanatismo que aniquila aos poucos qualquer atenção às nossas singularidades e vida.

AUTOR
Daniel Delouya
Psicanalista e membro efetivo com funções didáticas da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP) \ Ex-presidente da Federação Brasileira de Psicanálise (2015-17) \ Autor de vários livros, o último Análise, teimosia de sintoma e migração (2021). Blucher.
E-mail — danieldelouya@gmail.com

TRAILER

FICHA TÉCNICA
Título original — Jojo Rabit
Ano — 2019
Países — U.S.A. – Nova Zelândia – República Checa
Duração — 108 min
Realizador — Taika Waititi
Argumento — Taika Waititi, baseado no romance Caging Skies de Christine Leunens
Produção — Carthew Neal – Taika Waititi – Chelsea Winstanley
Fotografia — Mihai Mălaimare Jr.
Música — Michael Giacchino
Edição — Tom Eagles
Elenco — Roman Griffin Davis – Thomasin McKenzie – Taika Waititi – Rebel Wilson – Stephen Merchant – Alfie Allen – Sam Rockwell –  Scarlett Johansson

SINOPSE
Alemanha, durante a Segunda Guerra Mundial. Jojo (Roman Griffin Davis) é um jovem nazista de 10 anos, que trata Adolf Hitler (Taika Waititi) como um amigo próximo, em sua imaginação. Seu maior sonho é participar da Juventude Hitleriana, um grupo pró-nazista composto por outras pessoas que concordam com os seus ideais. Um dia, Jojo descobre que sua mãe (Scarlett Johansson) está escondendo uma judia (Thomasin McKenzie) no sótão de casa. Depois de várias tentativas frustradas para expulsá-la, o jovem rebelde começa a desenvolver empatia pela nova hóspede. (retirada de https://www.adorocinema.com/filmes/filme-258998/)