A DOR MAIOR — The Son’s Room (2001)

— CATARINA REBELO NEVES —

Com Wilfred Bion apreendemos que a riqueza de um dado fenómeno depende da capacidade de observação desse fenómeno mental, a partir de um maior número de pontos, de vértices possíveis. Ou seja, que o apreender pela e com a experiência está na possibilidade de aumentar o número de pontos de observação sobre um facto.

Foi sobre estes múltiplos prismas que voltámos à La Stanza del Figlio de Nanni Moretti (2001), quando Giovanni, – Moretti desempenhando o papel de psicanalista diante de uma das suas pacientes, Rafaella nos recorda Croce (3) segundo o qual: “A arte é visão ou intuição. O artista produz uma imagem ou um fantasma; quem aprecia a arte volta o olhar para o ponto que o artista lhe indicou, observa pela fenda que este lhe abriu e reproduz dentro de si aquela imagem.”

Deste lugar, nesta película, sentimos, um acentuado carácter de “verosimilhança” – o que é raro – o que nos permite, ainda hoje, esquecer que Moretti não é, na realitá, um psicanalista.

Percorremos, acompanhámos ao longo dos anos o cinema Morettiano, fazendo-nos sempre recordar Blanchot (2) quando nos diz que “a resposta é a infelicidade da pergunta”, o que remete para a “capacidade negativa” de Bion, ou seja, para a capacidade de dizer ’não’ às respostas dadas e de prosseguir, indagando.

Neste filme encontrei, desde o início, um paralelo entre a “descoberta” da psicanálise e a descoberta do cinema – ambas com estreitas associações com a capacidade humana de sonhar – que surgiram aproximadamente no mesmo momento histórico.

Com Winnicott (7) pudemos pensar o sonho como um “fenómeno transicional” em que os sonhos se constituem como “mistérios, equiparados à imaginação e ao mundo situado entre a realidade e a fantasia”. Vemos a experiência cinematográfica como evocadora da “área da ilusão” e enquadramos o cinema também como um mundo situado “entre a realidade e a fantasia” e os filmes como os seus mistérios.

No “Quarto do Filho”, num domingo de manhã, um paciente angustiado solicita a visita de Giovanni. Perante este pedido, o analista acaba por aceder ao pedido do analisando e adiar a corrida para a qual tinha acabado de desafiar o filho. Conta Moretti em entrevista que no início lhe surgiu a ideia de interpretar um psicanalista, ou melhor, como a vida pessoal e profissional do psicanalista se entrecruzam. Mais tarde ocorreu-lhe confrontar este personagem com o sofrimento maior: a morte de um filho, contra a qual ele seria completamente impotente.

Esta é uma obra que transmite o sentimento da dor inerente à perda, daqueles que simbolicamente falando, se podem dizer: seres expulsos do paraíso… Do paraíso que haviam construído e que nos é revelado. Seres que possuíam o mais importante e o perderam subitamente… O que fica? – Perguntamo-nos: além de uma tremenda perda? A desolação no seu estado puro, o vazio, a incompreensão, o terror… o terror de perceber que não foi “apenas” um pesadelo, o querer acordar deste e não conseguir, a dúvida do como, quando e se, será possível acordar desse pesadelo um dia? Algum dia? O terror de nunca mais acordar desse pesadelo, ou esse pesadelo dar conta da perda da possibilidade de sonhar a vida, mas, também a aterrorizante dúvida: haverá vida nessa dor?

Coloca-nos a questão: como recordar sem percorrer uma vez mais o fio que une a recordação à dor da perda que a causou? Como sobreviver às tensões que a tragédia provoca entre e dentro daqueles que nela se veem caídos, enleados, quando se encontram ligados pela tragédia, mas desligados pela dor que repetidamente recordar desencadeia… Como se desenlaça mãe, irmã, quando fica vazio o ‘Quarto’ do filho? E como se desenlaça Moretti, enquanto personagem na dupla condição de pai e psicanalista? Como, enquanto sujeito individual, nos poderíamos desenlaçar desta dor? E como o fazemos enquanto analistas? O que nos permite, autoriza, a cuidar, a tratar, daqueles que nos procuram com tais vazios? E quando esse vazio nos habita? O que nos permite cuidar das perdas pessoais e, enquanto analistas, continuarmos a ser o “continente” que as perdas dos outros necessitam, procuram, esperam “sem Memória, sem Desejo e sem (necessidade de) Compreensão”, mas, com Fé, como é preconizado por Bion (1), no que se refere ao estado mental do analista.

São estas, algumas das questões que Moretti nos coloca, e às quais felizmente não responde… Porém, dá-nos o mais belo: o privilégio de partilharmos o percurso, através dos distintos processos de mudança que, após a perda, cada uma das personagens percorre, incluindo os pacientes.

Neste ponto evocamos Freud (4) que nos “Estudos sobre a Histeria” havia já aproximado a noção de “Trabalho do Luto”, da noção mais geral de “Elaboração Psíquica”.

Assim, a propósito desta narrativa percorremos um caminho já percorrido, incluindo o trabalho do luto inerente à elaboração de uma perda, no processo da cura analítica.

Ao ampliar a noção de elaboração psíquica e centrando-nos na personagem interpretada por Moretti, sentimos que este nos coloca uma questão fulcral, “a todos nós”, psicanalistas: Como se sobrevive às identificações constantes, nalguns períodos maciças, mas necessárias, da parte dos pacientes e se preserva a nossa saúde mental, o nosso equilíbrio psíquico? Como é influenciada a vida pessoal, pela vivência analítica? Como e quanto nos transforma a prática quotidiana da psicanálise? Como condiciona, determina a construção da nossa própria narrativa pessoal? Seria esta construção possível sem o desenvolvimento na mente do analista de uma capacidade mnésica suficientemente eficaz para possibilitar a evocação na presença dos seus pacientes das suas narrativas, mas simultaneamente permitindo um “esquecimento” automático, ao nível consciente, de toda a experiência mnésica associada a estes?

Foram estas – entre tantas outras reticularmente associadas – as questões que mais nos ligaram a este filme e cuja temática nos levou a equacionar os fatores que permitem a manutenção de uma memória não saturada no analista e no analisando.

Não renegamos, mas sim, reinventamos a nossa identidade psicanalítica, quando nos revemos numa “Psicanálise” que privilegia a observação do mundo contemporâneo para aferir neste, o seu lugar, o seu papel, a sua função e colocar-se ao serviço do indivíduo e do seu desenvolvimento.

Detemo-nos também na noção de trauma psíquico que diversos psicanalistas referem como uma espécie de ferida, ou rasgadura na “pele psíquica”. Uma ferida que se dá quando os mecanismos que protegem a mente não são capazes de assegurar a manutenção do seu equilíbrio emocional.

No “Quarto do Filho”, Moretti está perante a perda de um filho e diante de uma paciente com marcados traços obsessivos que teme que, interrompendo o processo analítico, se torne esquizofrénica, ou seja diríamos – e aplicável às várias situações descritas – perante a iminência do rompimento da pele psíquica do sujeito, lançando-o num mundo, pelo menos, aparentemente caótico e deixando-o, muitas das vezes, temporária ou permanentemente com uma personalidade quase irreconhecível.

Sigmund Freud (5) descreveu o sentimento de desamparo subsequente a uma experiência traumática dizendo que “o ego sente-se desamparado, atordoado e abandonado diante de um aluvião de excitações demasiado poderosas para que os processos mentais do Ego as possam manejar”.

Um pouco mais tarde, Ferenczi (6) observava que um acontecimento potencialmente traumatizante era “uma experiência exageradamente excitante, ameaçadora ou perturbadora”.

Melanie Klein considerava o psiquismo humano, o nosso mundo interno, povoado por objetos internos; segundo os autores da escola kleiniana, os objetos internos, bons ou maus, seriam os responsáveis, na fantasia inconsciente, por todos os acontecimentos que o sujeito experiência. Deste modo, a vivência de uma experiência traumática seria equivalente ao sentimento de se ter sido abandonado pelos bons objetos internos que nos protegem e alimentam e de termos ficado à mercê de objetos maus, odiosos; porque tomados como os responsáveis pelo acontecimento traumático.

Na noção de trauma há uma ideia base que pensamos configurar-se como alicerce de todas as abordagens ao trauma, a da vivência de uma experiência que foi assimilada pela mente ou personalidade como excessiva. O “excesso” é o fator comum a qualquer vivência traumática. A mente humana é limitada na sua capacidade para tolerar as emoções e os pensamentos. Este limite é variável de pessoa para pessoa e para uma mesma pessoa ele sofre variações muito significativas, em função de ‘n’ fatores. Em síntese, aquilo que acontecerá a uma dada mente quando confrontada com este excesso depende principalmente das características e condições particulares, num determinado momento e contexto, da mente atingida.

Inerente a todas estas situações, subsiste, ou será necessário recriar a vivência da “Inquietação” presente nas palavras, na melodia e na voz de José Mario Branco, contudo ausente na personalidade da personagem obsessiva Rafaella, que vemos como incapaz da “capacidade negativa”. Capacidade que nos surge como condição necessária em alguém analisado: a capacidade de lidar com o crescendo de ansiedade que as dúvidas, a incerteza, acarreta. O Ser-se um ser inquieto, que se constitui para nós como uma possível definição do que é alguém, um Ser analisado…

Terminamos, subscrevendo Sausse, quando este define os analistas como pacientes que nunca se curaram. Seres que prezam a inquietude advinda de serem permanentemente questionados pela vida…

AUTORA
Catarina Rebelo Neves
Membro Associado da Sociedade Portuguesa de Psicanálise e da International Psychoanalytical Association \ Doutoramento em Ciências da Vida \ Mestrado em Psicologia Clínica do Desenvolvimento \ Professora Auxiliar Convidada da Universidade de Lisboa \ Assistente Editorial Revista Portuguesa de Psicanálise. E-mail — crebeloneves@gmail.com

REFERÊNCIAS
1.Bion, W.R. (1991). Elementos em Psicanálise. Rio de Janeiro: Imago. Edição original, 1963.
2.Blanchot, M. (1984). O Livro por vir. Lisboa: Relógio d’Água.
3.Croce, B. (1866-1952). Breviario di Estetica. I.
4.Freud (1895). Estudos sobre a Histeria. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. (1969). Rio de Janeiro: Imago.
5.Freud (1926). Inibição, Sintoma e Angústia. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. (1969). Rio de Janeiro: Imago.
6.Ferenczi, S. (1933). Confusão de língua entre adultos e a criança. Obras Completas IV. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
7.Winnicott, D. W. (1975). Objectos transicionais e fenómenos transicionais (1951). O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago.

TRAILER

FICHA TÉCNICA
Título original — La Stanza del Figlio
Título inglês — The Son’s Room
Título português — O Quarto do Filho
Ano — 2001
Duração — 99 min
País — Itália
Realização — Nanni Moretti
Argumento — Nanni Moretti – Heidrun Schleef – Linda Ferri
Produção — Nanni Moretti – Angelo Barbagallo – Federico Fabrizio
Fotografia — Guiseppe Lanci
Música — Nicola Piovani
Montagem — Esmeralda Calabria
Figurino — Maria Rita Barbera
Maquilhagem — Gianfranco Mecacci
Elenco — Nanni Moretti – Laura Morante – Jasmine Trinca – Giuseppe Sanfelice – Stefano Accorsi – Sofia Vigliar – Silvio Orlando

SINOPSE
Vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cannes 2001, esta película italiana “O Quarto do Filho” aborda a devastadora experiência da perda de um filho. Nanni Moretti é Giovanni, um psicanalista que reside e trabalha na pequena cidade de Ancona, em Itália. Casado com Paola (Laura Morante) têm dois filhos: Irene (Jasmine Trinca) e o jovem Andrea (Giuseppe Sanfelice). A sua vida transcorre tranquila, dividida entre a família e o consultório, até que uma tragédia a transforma completamente. Numa manhã de domingo, Giovanni recebe uma ligação urgente de um paciente, e deixa de ir correr com o filho, como havia prometido. Andrea vai, então, mergulhar com os amigos.