UM SILÊNCIO RUIDOSO — The Silence of the Sky (2016)

— SUSANA MUSZKAT —

Filmes são como sonhos: tem infinitas possibilidades de sentidos. Freud já afirmava que os sonhos são a via régia para o inconsciente! Um sonho, por exemplo, num processo de análise, pode ser compreendido de inúmeros modos e em diferentes contextos. Às vezes seus diversos elementos podem voltar numa associação de pensamentos, até mesmo anos depois, ganhando novos significados. Nada é linear, nada é definitivo. Sonhos são como teias, cuja possibilidade de expansão é infinita.

Assim são os filmes.

Às vezes assistimos a um filme e saímos do cinema sem saber muito bem o que pensar sobre ele. Ou então, ele pode nos impactar ou perturbar sem que saibamos muito bem explicar o porquê. No entanto, como muitas outras experiências na vida, o filme vai se processando, se conectando com nossos registros de experiências emocionais, adquirindo novos sentidos. É frequente que, tempos depois, sem que tenhamos tido qualquer intenção deliberada, um filme ressurja como elemento de metáfora provendo sentido para alguma situação vivida. Filmes são como um thesaurus – o dicionário de sinônimos – de emoções e pensamentos, onde através dos variados elementos, ampliamos nosso vocabulário subjetivo. Ou seja, filmes, como livros ou quaisquer outras produções artísticas, têm sentidos múltiplos e inesgotáveis para cada espectador.

Assisti ao ‘Silêncio do Céu’ algumas vezes, e em cada uma delas pensava coisas diferentes, captava novos elementos. Meus sentimentos e impressões mudavam. Também troquei impressões sobre o filme com amigos. Essa troca resulta invariavelmente em ampliações, novas construções e associações férteis. É um processo de fecundação.

É ainda, uma necessidade imprescindível ao ser humano para que este se constitua como tal: a interlocução/trocas significativa com outro ser humano.

Este é um filme marcado pelo silêncio. E desde o título, sabemos da importância deste elemento na trama, embora ainda um tanto enigmático.

O estupro na cena inicial quase não tem sons. São sons mudos. O marido assiste ao ato e tampouco emite sons. Fica paralisado, mudo.

No filme há falas, mas não muitas, e essencialmente, nenhuma fala onde vejamos intimidade na relação entre o casal. Vamos conhecendo Diana e Mário através de suas ações e pensamentos individuais transmitidos em off.

O silêncio marca o isolamento, a solidão em que vivem, definindo a história em dois planos distintos: o primeiro é o do mundo factual, do cotidiano da família em sua prosaica rotina. Mas, vale sublinhar, tudo se passa como num cenário bem arrumado, com script pré-definido. Não vemos conflitos, brigas, chateações com as crianças. É um retrato de família onde falta densidade de vida de verdade.

O segundo se passa na mente de cada protagonista, em silêncio, isoladamente, de forma não compartilhada. Nesse plano predominam as violências, os temores, as dúvidas, os desejos de vingança.

Onde está o mal-estar? O mal-estar pode muitas vezes se manifestar por meio dos desentendimentos, rivalidades, violências explícitas, abusos que vemos numa família. Mas nada disso se passa entre Mario, Diana e seus filhos. Será o estupro o mal-estar do filme?

Esse é, sem sombra de dúvida, explícito enquanto ato. Mas esse não seria o mal-estar do casal e sim uma tragédia vivida em sua família.

Nesta família, tudo se passa entre eles como um comercial de “Doriana”, expressão muito usada no Brasil para referir algo com aparência de contos-de-fadas, onde tudo parece perfeito. Evidentemente, denota também o caráter de falsidade desta improvável situação. As conversas são superficiais, não há interações amorosas significativas. Os pais desempenham suas funções buscando e levando os filhos à escola, às aulas de tênis, servindo o café da manhã, cumprindo um roteiro bastante protocolar. Até mesmo uma mãe evidentemente brasileira, fala com seus filhos num portunhol — corruptela onde se mistura o português do Brasil com castelhano do restante da América Latina, de forma meio improvisada — que nos causa desconforto e a faz parecer mais como uma cuidadora estrangeira de duas crianças uruguaias, exceto por um único e quase burocrático “bom dia”.

Toda a tranquilidade, no entanto, tem caráter encobridor, isto é, funciona como fachada que oculta os verdadeiros e perturbadores pensamentos e vivências dos protagonistas.

Nesta história, o mal-estar é o silêncio; e o silêncio é a violência.

Uma criança quando nasce se encontra num estado de total dependência. Ela vivencia coisas que não tem a menor condição de compreender. O mundo é um lugar desconhecido e ela é submetida a estímulos tanto vindos do exterior quanto do interior dela mesma. Esses estímulos são também desconhecidos e podem ser mais ou menos assustadores e angustiantes. Sem uma mãe/pai, sem um adulto com uma mente que acolha este bebê e vá transformando as intensidades assustadoras (ainda que pareça inverossímil que um bebezinho viva tudo isso), ele se sente solto no espaço do isolamento e do desespero. O outro, primordialmente amoroso e voltado a compreender e atender às necessidades de um bebê, é o que o salva de saídas autísticas, psicóticas, violentas, depressivas e até da morte.

A família, ou o casal, além dos cuidados básicos, tem também uma outra função essencial, análoga a essa que descrevi para o bebê: ser o espaço que suporta e acolhe os momentos de loucura, as falhas, as angústias, o desamparo, os terrores e as necessidades emocionais uns dos outros. Um casal, ao se unir, tem um acordo, em grande parte inconsciente, que garante o atendimento dessas necessidades na dupla. Podem ser acordos mais ou menos saudáveis. Alguns promovem crescimento conjunto, são férteis e outros podem ser destrutivos causando adoecimento. Os cuidados básicos do cotidiano também são organizadores e trazem estabilidade interna aos indivíduos e à família como grupo. Mas a alma não se alimenta de relações exclusivamente burocráticas e protocolares. Sem relações de trocas verdadeiras de intimidade e acolhimento, o sujeito vive como que no silêncio do céu. No isolamento que leva à loucura. “O meu medo é o céu!” diz o personagem ao final. O céu é o terror da vivência de vazio.

Diana e Mario vivem num mundo mental isolado e enlouquecedor, tendo a ilusão de que o que os enlouqueceria seria compartilhar o que os assusta, quando é justamente o contrário.

O filme é um suspense onde paira a sensação de tragédia iminente. O espectador acompanha a dissociação contrastante dos dois planos de eventos, onde o que se vê não é o que se passa. Essa dicotomia, desconexão, é a nota de mal-estar que vai tomando conta do espectador.

Na postulação de 1930, Freud descreve a condição de permanente tensão entre o sujeito e o social. É necessário que haja uma dose de repressão (interna e/ou externa) e de contenção dos impulsos originários do mundo interno, para que seja garantida tanto a sobrevivência deste, quanto a manutenção da vida organizada em sociedade. O grupo social é elemento repressor, mas é também elemento protetor dos indivíduos.

Assim, temos que: o sujeito, através de uma espécie de contrato social não verbal, é responsável pela continuidade da vida civilizada em sociedade, e, por outro lado, o social é garantia da vida do indivíduo. A isso chamamos de pacto civilizatório.

O contrato familiar, e o casamento como instituição social fazem parte deste tipo de contrato que a um só tempo protege o sujeito e garante a manutenção da forma de organização social. É um complexo e permanente esforço de equilíbrio entre essas forças, e os sintomas, como a violência, é sinal do desequilíbrio em um dos polos. É justamente o caso do casal em questão.

Coabitam e dividem as funções parentais, num clima de absoluta e surpreendente cordialidade que oculta a verdade dos sentimentos e nos apresenta um casamento vivido em paralelo, sem penetrações, nem mesmo sexuais.

A única cena sexual é o estupro.

Assistimos ao silêncio inquietante e opressor mantido por Diana sobre o ocorrido, bem como ao silêncio que Mario, mantém com Diana sobre seus próprios fantasmas, e principalmente, sobre ter sido testemunha impotente da violência sofrida por ela.

Esse é um fator intrigante e enigmático no filme e podemos conjecturar a respeito: teria ela identificado o agressor como seu ex-namorado e então, por culpa ou por proteção ao casamento, mantido silêncio? Teria ele calado por um espírito de ambivalência hamletiano vivendo ao mesmo tempo o horror e a identificação com o estuprador, atendendo a um desejo de puni-la por ter sido de outro homem?

Espeta, em seguida, sua mão nos cactos. Símbolo da vivência de castração? De assistir passiva e impotentemente à sua mulher ser penetrada por outro homem? Ou uma punição pelo desejo vedado?

Não sabemos; podemos somente levantar hipóteses. Se fosse numa sala da análise, conversaríamos, trocaríamos impressões que poderiam gerar transformações e sentidos singulares deste Mario e desta Diana.

Eles tampouco exploram ou trocam seus pensamentos e sentimentos mais profundos um com outro. Cada um tem sua própria história que acontece em silêncio.

Eles estão casados isolados, como se mantivessem um pacto de “silêncio a serviço da paz”. Assim, pensam evitar os abalos próprios da vida.

Talvez o momento de maior intimidade seja quando cantam Corcovado juntos… mas não há desdobramentos. A música termina e morre.

Há uma ilusão, de que o silêncio seja garantia de estabilidade, de um equilíbrio interno. Mas isso é falso.

O silêncio que exclui e isola o outro é a violência.

A ideia de que tudo esteja sob controle, cria um congelamento. Eles ficam presos a funções, conversam como autômatos, como personagens e não como indivíduos conversariam numa relação onde as coisas e a vida acontece…, e onde, ao ver o companheiro todo ensanguentado, simplesmente diz: “entramos?”, como se fosse a coisa mais natural deparar-se com o marido ensanguentado dentro do carro à noite.

Desta maneira, produz-se uma negação da qualidade de Outro do sujeito, em sua singular imensidão misteriosa. Talvez como a imensidão e o infinito do céu.

O outro é o céu que aterroriza.

O Mal-Estar é condição intrínseca da vida. A plenitude ou paz absoluta é exclusividade da morte.

AUTORA
Susana Muszkat
Psicóloga e Mestre em Psicologia Social pela Universidade de São Paulo \ Psicanalista efetivo e docente da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP) \ Analista de Casal e Família \ Autora dos livros Violência e Masculinidade (2011) Casa do Psicólogo \ Co-autora de Violência Familiar (2016) Blucher, entre outras publicações e capítulos de livros sobre psicanálise, violência de gênero e família.
E-mail — sumuszkat@gmail.com

REFERÊNCIAS
Apresentado a convite de Luciana Saadi, a 07/03/2018, na abertura do Ciclo “O Mal-Estar na Cultura” na Cinemateca de São Paulo, na companhia de Marcelo Coelho, jornalista da Folha de São Paulo.

TRAILER

FICHA TÉCNICA
Título original — O Silêncio do Céu
Título inglês — The Silence of the Sky
Países — Brasil – Chile
Ano — 2016
Duração — 102 min
Direção — Marco Dutra
Roteiro — Lucia Puenzo – Sergio Bizzio – Caetano Gottardo
Produção — Diego Robino e Rodrigo Teixeira
Fotografia — Pedro Luque
Música — Guilherme Garbato e Gustavo Garbato
Edição — Eduardo Aquino
Elenco — Carolina Dieckmann – Leonardo Sbaraglia – Chino Darín – Mirella Pascual – Álvaro Armand Ugón – Roberto Suárez – Paula Cohen – Gabriela Freire – María Mendive – Susana Groisman – Walter Rey

SINOPSE
Diana (Carolina Dieckmann) foi vítima de um estupro dentro de sua própria casa, enquanto uma faca era apertada contra seu pescoço. Seu marido, Mario (Leonardo Sbaraglia) ia a entrar ao quarto, quando viu a sua esposa sendo violada por dois homens e ficou escondido, sem fazer nada. Ela não conta a Mario o que aconteceu, nem ele conta a ela o que viu. A incomunicabilidade evidencia conflitos mais antigos do casal. Mario tenta enterrar os fatos, e salvar o relacionamento, que já estava em crise, e planeja uma vingança. (retirado de — https://pt.wikipedia.org/wiki/O_Silêncio_do_Céu)