DAS MARGENS À FOZ — The Water (2022)

— ELSA COUCHINHO —

O rio Orihuela com o seu fluxo constante, umas vezes discreto outras vezes avassalador, desenha o curso das superstições, do patriarcado e do machismo, numa história ancestral que se faz presente na primeira longa metragem de Elena López Riera.

Nas margens do rio, numa pequena povoação espanhola, um grupo de adolescentes vagueia ao longo do Verão. O meio rural oferece-lhes pouco estímulo quanto a expectativas e sonhos para o futuro. Assim como o rio se escapa, também a maioria deles sonha com a saída: “ficar, é ficar condenado”.

O contexto social empobrecido é uma base frágil para construir projectos de autonomia e independência face à família, é como uma represa onde os movimentos de individuação e subjectivação encontram um espaço limitado pelas margens da cultura juvenil e de comportamentos de risco.

Ainda assim, é nessas águas que se desenha a dinâmica da construção dos diversos elementos identitários, acompanhada pela experimentação nas relações de amizade e nas relações amorosas, bem como na busca de sentido para a história familiar.

Como o rio que fertiliza e nutre os pomares de laranjas, a pulsão de vida faz-se presente na vitalidade com que os adolescentes dançam e se vinculam amorosamente. Transitam entre a música popular (língua dos pais) e a música electrónica (a sua própria língua). Inscrevem na pele as tatuagens que podem dar sentido às cicatrizes.

E, tal como o rio pode transbordar e destruir, também a pulsão de morte pode transbordar para o prazer reduzido à excitabilidade e a movimentos destrutivos como comportamentos delinquentes, o abuso de substâncias ou rupturas familiares.

José, o “estrangeiro”, parece ter cumprido o sonho de todos numa cidade onde os músicos tocam tocam nas ruas e o London Eye corporiza o prazer da independência, ainda numa representação infantil do processo de autonomia.

Na relação com Ana ele pode desmistificar essa saída e enfrentar a sua derrota. Não chegou a Londres, não partiu. Fugiu? Foi preso? Foi em busca de uma mãe ausente? Foi uma fuga prematura para escapar às exigências paternas?

A derrota do regresso à terra e à casa paterna parece ter-se organizado como um limite à sua impulsividade e omnipotência, dando-lhe o tempo necessário para (re)encontrar um pai exigente mas protector, que lhe mostra e ensina como construir a sua independência, através do cuidado com que as mãos amassam o gesso e unem os tijolos, regam o laranjal, que com ternura cuidam dos pombos e os lançam no céu e que, na iminência do desastre, o abraçam.

A gota fria anuncia elevada precipitação e o risco de inundação. O rio transborda por causa do betão ou dos fantasmas?

Diz a lenda que a água vem porque o rio se apaixona por uma mulher e como não a pode ter, leva-a… A lenda brota nas falas das mulheres entrevistadas. Uma fala que desfia medos, fantasmas e também o desejo e o perigo de ser objecto de desejo.

“Se a mulher tem água dentro…” – Se a mulher acolhe dentro de si o sémen… Se a mulher é Eva… Se a mulher aquieta bebés com o seu canto/ reza, se com ervas cuida e harmoniza o corpo, se lhe desperta o desejo e o consuma… Feiticeira, bruxa, puta… Fogueira! Água!

A pomba solta no céu é perseguida por bandos de pombos que disputam a sua resistência, a sua habilidade, o mais forte ganhará a pomba. A pomba é de todos até que o mais forte a apanhe.

Para o bando de pombos, é duvidoso que a mulher tenha a sua própria sexualidade, a sua subjectividade. Para o bando que se orienta nas coordenadas do machismo e do patriarcado, o feminino não existe senão por referência a si mesmo. A liberdade sexual das mulheres é sentida como perigosa e ameaçadora. O mistério de gerar vida e/o conhecimento serão uma emasculação. Eva e a perda do Paraíso – mito que sobrevive e se renova dando forma ao patriarcado e ao machismo.

A família de Ana é perigosa. Uma avó bruxa que aquieta bebés com as suas rezas, curandeira de males com rezas e chás, que transita tranquilamente entre o mundo dos mortos e o mundo dos vivos. Uma avó que se apaixonou por um homem e que deixou a água entrar fora do casamento. Castigada por essas liberdades pela comunidade e pelo marido que sobre ela exerceram a sua violência. Será um legado transgeracional?

Como a avó, a mãe de Ana engravida na adolescência e é abandonada pelo pai da sua bebé. É uma mãe jovem, que parece prolongar a sua adolescência e se confunde com as amigas de Ana. A diferença geracional e os limites do papel parental esbatem-se.

Ana cresceu numa comunidade que ostraciza as mulheres da sua família, onde os homens as podem usar para o seu prazer mas a quem não se devem vincular amorosamente. O perigo que essas mulheres transportam parece representado na tatuagem do escorpião cuja lenda refere não poder escapar à sua natureza destrutiva.

O desejo de partir sustenta-se na sua vontade de continuar a estudar, adquirir competências para se autonomizar. Este Verão é o tempo de sonhar com essa partida mas também de organizar a sua história familiar e encontrar a sua individualidade dentro desta.

É na avó que Ana encontra simultaneamente o sentido e o mistério. O que se explica e o que permanece na bruma do desconhecido. A paixão por um homem e o prazer do sexo, a violência doméstica e a sobrevivência a esta. A convivência com os mortos. As ervas que curam. As rezas que embalam. A fé. A inabalável afirmação do que se é.

O feminino de Ana parece ter-se organizado entre as superstições, a mitologia e as identificações que correm na dinâmica transgeracional. O processo da adolescência que esboça a distância face à família, permite outras identificações bem como a possibilidade do contraste entre o mundo da infância e o vasto mundo em torno. As trocas com o grupo de amigas e o namoro com José abrem um espaço potencial para re(pensar) e elaborar a sua história.

“Sou a mulher de 1670. Sou a minha avó. Sou a minha mãe.” Ana descobre o fio de Ariadne que atravessa várias gerações de mulheres. Enumera todas as inundações registadas desde o século XV até 1987. Essas catástrofes que pareciam exigir o sacrifício de uma mulher da comunidade. Ana já não tem medo. Pode construir a sua narrativa de acordo com a sua subjectividade. Ana vai contar a sua história.

AUTORA
Elsa Couchinho
Psicanalista Associada da Sociedade Portuguesa de Psicanálise e da International Psychoanalytic Association \ Psicanalista de Crianças e Adolescentes \ Docente do Instituto de Psicanálise
E-mail — elcouchinho@gmail.com

TRAILER

FICHA TÉCNICA
Título original — El Agua
Título inglês — The Water
Título português — A Água
Ano — 2022
Duração — 104 min
País — Suíça – Espanha – França
Realização — Elena López Riera
Argumento — Elena López Riera – Philippe Azoury
Produção — Eugenia Mumenthaler – David Epiney
Fotografia — Giuseppe Truppi
Música — Mandine Knoepfel
Edição — Raphael Lefèvre
Elenco — Luna Pamies – Alberto Olmo – Nieve de Medina – Bárbara Lénnie – Irene Pellicer – Nayara de Lucas – Lidia María Cánovas – Pascual Valero

SINOPSE
Numa aldeia espanhola assolada por recorrentes inundações, os mitos e as superstições procuram dar sentido à brutalidade destrutiva da água.