ESTRANHEZA E COMPAIXÃO — Border (2018)
— LUCIANA SADDI —
Tina trabalha como policial nas docas de Estocolmo. É guarda de fronteira, tem como atribuição fiscalizar bagagens e passageiros. Sua aparência é estranha, principalmente pelos traços grosseiros, que muitas vezes torna indistinguível a diferenciação entre gêneros. Atingida por um raio na infância – reza a lenda familiar –, desenvolveu uma espécie de sexto sentido que a torna capaz de “ler as pessoas” e detectar mentiras apenas pelo olhar e pelo olfato – o que sempre representa vantagem na sua profissão. Suas suspeitas se mostram invariavelmente corretas após investigação. Border é o termo que usamos para quem vive na fronteira. Border é a própria fronteira.
Até que Tina identifica um criminoso em potencial, mas não consegue reunir provas para justificar sua intuição, passando, assim, a questionar seu dom ao mesmo tempo em que fica obcecada pelo suspeito, Vore. Ela precisa descobrir qual o segredo de Vore. Inexplicavelmente, ambos possuem características fisionômicas semelhantes e que causam estranheza. A câmera, próxima dos personagens, percorre ângulos incomuns e revela, lentamente, aspectos um pouco animalescos dos protagonistas, que lembram os extintos Neandertais.
A investigação de Tina resulta em uma jornada de autodescoberta e, também, na descoberta de Vore. Torna-se uma dolorosa caminhada rumo a segredos e verdades – a exemplo do trabalho analítico – em que a policial se fortalece no processo de investigação e, ao mesmo tempo, se torna mais empática aos sofrimentos humanos. No interior dessa trama há ainda outra em curso, paralela, da qual Tina é peça fundamental: trata-se de desvendar uma possível quadrilha de vendedores e/ou abusadores sexuais de crianças e bebês. O prodigioso faro da guarda de fronteiras é recurso fundamental para apanhar os criminosos e descobrir como os crimes são realizados.
Border é um filme que une conteúdo e forma de maneira exemplar. Em relação ao conteúdo somos apresentados a personagens estranhos, quase deformados, com habilidades animalescas, envolvidos em uma trama de investigação e suspense. Aparentemente, o único prazer de Tina é “farejar” os maus elementos e os segredos que passam pela fiscalização de passageiros e bagagens. Em muitos momentos Tina parece ser fria, distante e indiferente; do tipo que cumpre suas obrigações com rigor, mas nada sente.
No início da trama somos apresentados à sua vida doméstica. Um marido autocentrado, preocupado apenas com seus cachorros e prazeres. A relação entre eles é de falsa intimidade. Nenhuma atração ou sexo. É como se Tina tivesse desistido de querer, desejar, amar, e estivesse conformada com agressões e solidão a dois. A casa malcuidada, quase suja, precária, transmite sensação incômoda de descuido e falta de amor. É, por sinal, a mesma sensação que temos quando a câmera a escrutina: abandono e estranheza. Há também o pai da guarda de fronteira, que vive num asilo de quem a protagonista cuida com carinho, ainda que com certa formalidade. Ao longo do filme descobrimos que ela foi adotada. E Tina irá também buscar a verdade sobre sua adoção.
Border narra o percurso que vai do conformismo desafetado à autonomia e responsabilidade pela própria vida. A transformação da guarda de fronteiras se dá na relação com Vore. Desse encontro sexual e amoroso –no qual ela continua intrigada – surgem o amor-próprio, a autoconfiança e um saudável questionamento sobre sua origem familiar. Erotismo e paladar se desenvolvem lado a lado. Um mundo novo se revela. Tina parece estar feliz e se sentir livre pela primeira vez. Ela se delicia com as texturas do corpo, com as potencialidades de prazer que a vida erótica proporciona, com a descoberta de novos alimentos e com a integração à natureza, como se voltasse ao habitat natural. Tina desabrocha, apodera-se de seu desejo e dispensa o antigo companheiro.
O encontro amoroso com um novo parceiro é, antes, um encontro consigo própria. Surge, aí, a descoberta de suas capacidades e independência, e a apropriação erótica do próprio corpo a leva a uma posição mais ativa no mundo. A partir de então, o repertório pessoal da personagem se expande. O filme pode ser visto como metáfora do trabalho psicanalítico. Quanto mais nos conhecemos, mais fortes e livres nos tornamos, e também mais capazes de incomodar e de questionar o status quo. Esse é o movimento de Tina, que o diretor nos convida a acompanhar de perto com deslumbre e emoção.
Sustentar as próprias verdades, ter voz e autonomia percorre caminho paralelo à investigação edípica: quem eu sou? De onde vim? Para onde vou? Que família é essa? Pertenço ou não pertenço ao meu grupo? Perguntas que crianças e adultos saudáveis se fazem durante a existência sem ter necessariamente respostas. Tina foi adotada e quer respostas sobre sua origem, sobre as marcas em seu corpo e sobre as diferenças entre ela e sua família – diferenças que antes passavam desapercebidas, uma vez que eram negadas.
Observa-se também o movimento natural dos amantes em direção ao isolamento, decorrente da fantasia universal dos apaixonados que subjaz na crença infantil de serem feitos de matéria especial, diferentes dos demais da espécie humana. Feitos um para o outro, somente. A fusão os torna especiais. Os amantes vivem nas bordas da realidade, são únicos. Border, qual a fronteira do amor? Border, na paixão, o eu e o outro se confundem.
A curiosidade da policial também se dirige ao amante e à estranheza excitante que ele desperta. É um homem que tem muito a ensinar e algo a dizer. No final do filme, haverá uma revelação tão inquietante quanto assustadora. O mistério é a emoção que impregna Border do começo ao fim. A presença de Vore potencializa o mistério – trata-se de um homem feio, transgressor, que vive de acordo com suas próprias regras, muito diferente de Tina e que a leva a perguntas fundamentais nos relacionamentos: Quem é você? O que quer de mim? São questionamentos eternos, ainda que inconscientes, sobre nossos primeiros vínculos de amor. Procuramos desvendar o enigma de nossos pais ou o pensamento sucumbe. Caso a capacidade de pensar e perguntar não seja solapada, o impulso para o conhecimento, a curiosidade da criança pequena sobre seus pais e sobre a sexualidade poderá se transferir para amplos aspectos de sua vida. Ou não, a depender dos processos de familiarização e da dor originada em tais processos.
Em relação à forma, o filme rompe com os tradicionais gêneros cinematográficos por reunir quase todos os gêneros ao mesmo tempo. Drama, tragédia, comédia, suspense, policial, terror, jornada, autoconhecimento, erotismo e sexualidade. São infinitas as possibilidades de leitura, de camadas de sentido sobrepostas, compostas, condensadas e justapostas que o jovem diretor, Ali Abassi, é capaz de produzir em quase todas as cenas, além da permanente sensação de estranhamento ao transitar entre a fantasia, o realismo fantástico e o realismo sem se fixar em uma categoria. Border, na fronteira dos vários gêneros consagrados pelo cinema.
Já assistimos filmes sobre monstros, sobre Frankenstein, vampiros, zombies, King Kongs ou até mesmo filmes com heróis mais disformes e indefesos, como “Homem Elefante” ou “O Corcunda de Notre Dame”. Border, embora traga algo de monstruoso e incômodo pela esquisitice de seus personagens, vai além. Os personagens principais são inqualificáveis, não há categoria para eles, assim como não há categoria para o próprio filme. Não fica difícil estender o mesmo raciocínio para todos nós. Basta olhar de perto, do mesmo modo como a câmera faz, assim como os psicanalistas fazem diariamente em seus consultórios, para saber que cada ser humano é uma categoria inqualificável, insubstituível, única, singular. Somos mistura, sempre estranha aos outros, de tantas qualidades, características, histórias, dores, detalhes e em constante metamorfose. Abassi insiste em nos mostrar de perto tais características e transformações; é como se apelasse pelo reconhecimento de humanidade naquilo que é quase não humano, e, dessa maneira, provoca um jogo sagaz de identificação e desidentificação no espectador. Viver e ser diferente da norma. Border subverte padrões de comportamento, gênero, biologia e sexualidade em cenas que, algumas vezes, causam certa aversão.
Ao assistir Border nos permitimos à feiura, vestimos a pele do bizarro e experimentamos como vivem os que sofrem preconceitos em nossa sociedade: homossexuais, obesos, transgêneros, miseráveis, negros, orientais, hermafroditas, refugiados – todos aqueles que são diariamente excluídos e aviltados, para quem não há compaixão. O filme também nos desperta para um inquietante questionamento sobre fronteiras. Qual a distância, se é que existe, entre humano e animal? Entre feroz e terno? Homem e mulher? Fronteiras móveis questionam padrões. Border expõe uma série de fronteiras pouco delimitadas.
AUTORA
Luciana Saddi
Psicanalista da Sociedade Brasileira de São Paulo (SBPSP) \ Mestre em Psicologia Clínica PUC-SP \ Fundadora do Grupo Corpo e Cultura \ Autora de Educação para a morte (Ed. Patuá) \ Coordenadora do Programa Ciclo de Cinema e Psicanálise da Diretoria de Cultura e Comunidade (SBPSP) em parceria com o Mis (Museu da Imagem e do Som) e Folha de S.Paulo.
E-mail — lusaddi@uol.com.br
FICHA TÉCNICA
Título original — Gräns
Título inglês — Border
Título português — Na Fronteira
Ano — 2018
Países — Suécia
Duração — 110 min
Realizador — Ali Abassi
Roteiro — Ali Abassi – Isabella Eklöf – John Ajvide Lindqvist, baseado num conto com o mesmo nome, de John Ajvide Lindquist, na sua antologia Let the Old Dreams Die.
Produção — Nina Bisgaard – Peter Gustafsson – Petra Jonsson
Fotografia — Nadim Carlsen
Música — Christoffer Berg, Martin Derkov
Edição — Olivia Neergaard-Holm, Anders Skov
Figurino — Elsa Fischer
Maquiagem — Natalia Aguilar – Robin Alderskans – Malin Andersson – Anders Bratås – Daniel Carrasco – Sara Englund – Thomas Foldberg – Pamela Goldammer – Morten Jacobsen – Mia Joksimovic – Göran Lundström – Cristina Malillos – Helena Olsson – Pierre Olivier Persin – Inga Ross – Johanna Ruben – Rogier Samuels – Floris Schuller – Åsa Sjölin – Erica Spetzig – Hara Vasiliadi – Oskar Wallroth
Elenco — Eva Melander – Eero Milonoff – Jorgen Thorsson – Ann Petrén – Sten Ljunggren
SINOPSE
Tina é uma policial de fronteira que trabalha no porto fiscalizando bagagens e passageiros. Depois de ser atingida por um raio na infância, ela desenvolveu uma espécie de sexto sentido capaz de ler as pessoas apenas pelo olhar — o que sempre representou uma vantagem na sua profissão. Mas tudo muda quando ela identifica um criminoso em potencial e não consegue achar provas para justificar sua intuição.