ESTRANHAS FORMAS DE ENTRANHAS — Strange Way of Life (2023)
— SAMANTHA NIGRI —
A work of art does not answers questions, it provokes them; and its essential meaning is in the tension between the contradictory answers.
Leonard Bernstein (1)
Em tempos em que a complexidade da vida é solapada por uma forma peculiar de “des-comunicação”, representada em primeira linha pela escrita “à las redes sociais”, mas que se espraia em nossas subjetividades, a última curta-metragem de Pedro Almodóvar – Uma estranha forma de vida – traz um potente “quê” a mais, um respiro em meio à atmosfera sufocante dos anos 20 do século XXI.
Esse “quê” tem relação com a arte de contar um determinado acontecido. Arte que o diretor espanhol realiza com maestria.
Diante da inexistência de um único e definitivo relato sobre o que se passa entre nós e o mundo que nos cerca, o cinema, essa incrível invenção humana, segue a máxima winnicottiana (2) que considera “o brincar” como uma atividade séria marcada pelo prazer que advém da significação das coisas. E quanto mais exercitamos a capacidade de dar sentido, de fazer ligações entre o vivido e o que conseguimos representar dele, mais chances teremos de seguir como sujeitos pensantes e de não sucumbirmos à crueza da existência.
Imaginar, roteirizar, filmar, editar; todo o processo de criação de um filme é composto pelo mote de se pensar em como, de qual ângulo, enquadre, e caminhos o diretor vai escolher para contar a sua história. História que nas mãos de outro teria sabor de outrem. É necessário que o cineasta tenha um jeito muito seu, algo que vai desenvolvendo com o tempo, que se constitui num “vir-a-ser”. Esse funcionamento não é adquirido sem um mínimo de ousadia e mal-estar. Fazer e viver cinema são funções dessa engrenagem. Fazer e viver psicanálise também. E as películas de Pedro Almodóvar exalam o seu cheiro, marca forte que mobiliza as entranhas do espectador, convidando a um certo tipo de trabalho mental.
“Uma estranha forma de vida” desconcerta “almodóvarmente” em diferentes aspectos, um deles é particularmente caro ao olhar psicanalítico: o de instigar o imaginário do espectador num ponto de tensão máxima do conceito freudiano (3) do unheimliche (o estranho, o infamiliar), já que uma inquietude evoca sensações temidas e desejadas ao mesmo tempo. Aos olhos daqueles que costumam se alojar no conforto das “certitudes”, traz desconforto.
É do conhecimento daqueles que seguem a filmografia do diretor espanhol que seus processos criativos costumam partir de uma notícia que lhe chamou atenção, ou uma cena que lhe veio à mente. Guarda o que lhe causa interesse pelo tempo que for necessário, deixando gestar possíveis histórias que se escondem por trás desses fragmentos. Neste filme, o espectador é fortemente convocado a imaginar a história que resultou nos seus 31 minutos de duração. Em tempos de filmes que duram em torno de 3 horas (“Os delinquentes”, “Napoleão”, “Oppenheimer”, entre outros), onde há lugar para uma longa história detalhada, “Uma estranha forma de vida” nos deixa em contato com as entranhas das nossas próprias associações, seja para o bem, seja para o mal…
Assim como num romance, a longa metragem nos leva geralmente a caminhos progressivos de significação e só ao final, digerimos. Aqui temos algo diferente: uma “estranha” (no sentido freudiano) forma de comunicação promove a ativação do processo criativo do espectador, que fica sem rota de fuga ao se deparar com um Almodóvar contando a história do reencontro de dois homens que viveram uma tórrida paixão há 25 anos e que o “destino” convoca novamente após um crime cruzar as suas vidas.
O fato de o filme compreender no formato de curta metragem uma paixão que permaneceu silenciada por 25 anos, amplia a dimensão sensorial do vivido com forte carga de erotismo. O ambiente, o faroeste americano, endossa a convocação de tantas outras fantasias relacionadas aos nossos “tempos pós-coloniais”, sendo um personagem mexicano e o outro, americano. E assim segue cada detalhe do filme, funcionando como uma espécie de “resto diurno” que pode tornar-se o vestígio de uma determinada cadeia associativa, que poderia render ela própria, outro filme.
Há uma condensação de elementos na história arranjados de tal forma que produzem um forte desejo de continuidade. Talvez sintamos um pouco da vontade ardente que os dois amantes viveram na falta um do outro durante tantos anos. Todo o filme parece se reportar ao que ficou da ruptura em cada um. Faz pensar na força dos encontros intensos dos dois amantes, homens jovens e livres das amarras “ditas civilizatórias” que seguem o seu caminho, separados na maturidade. Mas o encontro reverbera ao longo da vida.
Almodóvar nos conta esse amor homoerótico, mas o seu contar honra todo o tipo de encontros humanos que permanecem vida a fora, ou melhor seria: vida a dentro… Pensemos no encontro analítico: intenso e livre de enquadres esperados, justamente por seu enquadre tão singular… O que fica em cada analisando após cada sessão? O que se segue após a trajetória analítica, para onde e por onde caminham as nossas intensidades e as nossas mais recônditas contradições? Saímos desse curta, como saímos ou deveríamos sair de cada sessão de análise… Desbravando novos caminhos, tocados pelo antes impensável…
Voltando ao filme. Paira uma tensão no ar, que instiga um chamado ao trabalho psíquico do espectador, que fica à deriva se pretende obter respostas e aquela sensação confortável de início, meio e fim de filmes mastigados. O que se passa nos trinta minutos é um tempo muito sentido pelos personagens, cheio de lembranças e desejos de um futuro na cabeça, um tempo onde está presente o reencontro e o desencontro dos dois.
Como uma antítese provocadora do nosso tempo a aridez do oeste americano empoeirado, mas dotado de fortíssimas cores na fotografia — o filme foi produzido pela Associação Yves Saint Laurent, que potencializa a fotografia e o figurino do universo de Almodóvar, remetendo ao ensaio de Agamben (4) “O que é o Contemporâneo?” —, estimula a capacidade fantasmática de cada um, arrebatada desde o início, quando o fado de Amália Rodrigues que dá título ao filme (5), toca na voz quente de Caetano Veloso (6), enquanto Silva, chega a cavalo na cidade, com um olhar saudoso e emocionado, procurando Jake, que é o xerife da cidade. Uma tomada com o jovem ator Manu Ríos, tocando a canção dublada por Caetano, prepara o ambiente emocional para o que vem a seguir. A voz única do cantor brasileiro parece erotizar o fado, usualmente mais triste, entremeando o conflito que vai eclodir no final do filme, entre um trabalho de luto e um estado melancólico dos personagens pelo que viveram e não puderam continuar.
Silva é mexicano e tem um filho que é suspeito do assassinato da cunhada de Jake, que é americano. Silva busca Jake, carregando o desejo de reviver o amor atravessado pela tentativa de salvar o filho. Os dois homens lidam de forma diferente tanto com a paixão vivida quanto com o desenlace do crime perpetrado. Jake busca conter aquilo que o desejo não contém e que Silva sustentou pelos dois durante todos os anos, em um silêncio que rompe num rugido que condensa o forte reencontro sexual dos dois amantes junto das cenas finais, onde Jake fica aprisionado por Silva, após tentar prender seu filho.
Entre cores e texturas, a estética homoerótica convida os espectadores à mobilização de suas próprias fantasias sexuais, potencializadas freudianamente pela bissexualidade que nos constitui, e envolve a todos como cúmplices do desfecho final – entre pai, filho e ex-amante, ou poderia ser entre ex-amante, filho e xerife, ou entre dois amantes e um filho assassino da própria amante… São incontáveis os elementos que compõem essa bela narrativa, permeada de infinitas reflexões.
Vivemos em tempos “algoritmizados” onde a marca do assolamento de mensagens, notícias e/ou fatos – sejam esses fakes ou almost – nos aprisionam em circuitos fechados que se reforçam a cada click. “Uma estranha forma de vida” nos liberta dessa rede rígida. Mesmo que se assista à entrevista que Almodóvar dá em seguida ao curta (apenas nas salas de cinema, não no streaming), os ímpetos associativos já estarão plantados em nossas mentes. Pois que, em algum momento da vida, já estivemos ou estaremos imersos em nossas estranhas formas.
O diálogo compilado abaixo espera instigar e não demover o leitor de assistir ao filme:
Os dois homens brindam.
Silva — Ao nosso reencontro!
Jake — Ao que você quiser.
…
Jake — Quanto tempo durou aquela loucura?
Silva — Dois meses. E não foi uma loucura. Quando bebo eu me lembro de cada segundo e detalhe daqueles sessenta dias.
Jake — Penso que você bebe demais. Deixei de beber. (segurando uma taça de vinho). Agora estou me contradizendo…
Silva (erguendo a taça para mais um brinde) — Às suas contradições, então!
AUTORA
Samantha Nigri
Psicanalista membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro (SBPRJ) \ Uma das coordenadoras do Programa de Rádio Perguntar & Pensar parceria da Rádio MEC e SBPRJ \ Membro da equipe editorial da Calibán – Revista Latino Americana de Psicanálise – publicação oficial da FEPAL.
E-mail — sanigri@uol.com.br
REFERÊNCIAS
1.Leonard Bernstein (Citação no início do filme Maestro, 2023, direção de Bradley Cooper) — “Uma obra de arte não responde à perguntas, ela as provoca; e seu significado essencial está na tensão entre as respostas contraditórias.”
2.Winnicott, D. W. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975.
3.Freud, S. O infamiliar (Das Unheimliche). In Obras Incompletas de Sigmund Freud; 8, “O infamiliar e outros escritos”, Autêntica Editora, 2019.
4.Agamben, G. O que é o contemporâneo? E outros ensaios. Chapecó: Argos, 2009.
5.Amália Rodrigues – Estranha forma de vida. Álbum O Melhor de Amália, sub-intitulado “Estranha Forma de Vida”. 1985. Gravadoras EMI – Valentim de Carvalho. https://open.spotify.com/intl-pt/track/2Osr1484uvaGNh85VUOBzY?si=3a37c4bcfce94285
6.Caetano Veloso – Estranha forma de vida. Álbum Fados by Carlos Saura: The original Soundtrack. 2007. Gravadora Parlophone Portugal. https://open.spotify.com/intl-pt/track/3gXxA7TvXT64TDuXZ3Wrnq?si=e14afcef46e543b4
FICHA TÉCNICA
Título original — Strange Way of Life
Título português — Estranha Forma de Vida
Ano — 2023
País — Espanha
Duração — 31 min
Autor da obra original – Annie Proulx
Roteiro — Pedro Almodóvar
Direção — Pedro Almodóvar
Produção — Pedro Almodóvar – Augustín Almodóvar – Esther Garcia
Produtor associado — Anthony Vaccarello – Bárbara Peiró – Diego Pajuelo
Fotografia — José Luis Alcaine
Música — Alberto Iglésias
Elenco — Pedro Pascal – Ethan Hawke – Manu Rios – George Steane – Jason Fernandez- José Condessa – Pedro Casablanc – Sara Sálamo
SINOPSE
O filme gira em torno de dois pistoleiros, interpretados por Pedro Pascal e Ethan Hawke, que viveram um romance no passado e se reencontram após 25 anos. Silva (Pascal) decide cavalgar pelo deserto para visitar Jake (Hawke), que é o xerife de Bitter Creek, e a partir daí eles vivem uma tarde de intimidades, reconciliação e lembranças. No entanto, no dia seguinte, descobre-se a conexão dos dois homens com um crime local, sugerindo que há mais no encontro da dupla do que apenas um reencontro. (https://observatoriodocinema.uol.com.br/ficha-tecnica/estranha-forma-de-vida/)