AMOR E MORTE — She Danced Only One Summer (1951)
— MARIA JOSÉ VIDIGAL —
A cura não vem do esquecer, vem do lembrar sua dor. Freud
O filme sueco de 1951, “Ela só dançou um verão” foi dirigido por Arne Mattsson e adaptado ao cinema do romance de Per Olof Ekström.
Foi em Paris que vimos este filme, tal como também a “Laranja Mecânica” porque, na época salazarista, estes filmes não eram passados num Portugal puritano e atrasado. Devido à cena de nudez que contém, mas também ao seu violento anticlericalismo, o filme foi lançado nos Estados Unidos apenas em 1955 e foi proibido na Espanha franquista e em Portugal.
Se bem que tivesse visto este filme há muitos anos (talvez há mais de 60), não mais o esqueci, sobretudo as cenas mais carregadas de emoção porque há outras que ficaram mais esfumadas…
Göran Stendal, que acabou de completar o seu ano na universidade, foi passar as férias de verão no campo com o seu tio Persson, que vivia numa aldeia à beira dum lago, para ajudá-lo nas tarefas rurais. Pouco depois de sua chegada, conheceu Kerstin, uma camponesa de 17 anos. Os dois jovens apaixonaram-se à primeira vista, mas Kerstin estava ainda dependente de seus pais e o Pastor da vila, um homem muito severo, influenciado pelas idéias conservadoras de Henric Schartau, só vê perversidade no ser humano e tentou influenciar a relação entre os dois jovens. Nessas condições hostis, Göran e Kerstin permaneceram juntos e Göran até considerou que podia tornar-se um camponês, para passar a vida com Kerstin.
O filósofo francês Jean Guitton compara a evolução do Amor, no decurso da vida do Homem, com as Catedrais. Assim, o amor dos jovens é como uma Catedral Românica – base larga, bem assente na terra, é terra-corpo. À medida que se envelhece e quando se tem muita idade, é como uma Catedral Gótica – a base está mais estreita, e passam a dominar as “agulhas” que se erguem para o céu, isto é, o espírito, as ideias, o sonho passam a ter uma relevância prioritária.
Os nossos jovens eram belos, embriagados por um amor profundo, de uma sensualidade pura. Nada mais existia para eles, senão aquele momento, aquele espaço, nem sequer o Mundo, nem a Universidade.
E lembro a imagem daqueles corpos nus que nadavam na lagoa, rodeados por um ambiente verdadeiramente paradisíaco. As árvores que se debruçavam e beijavam as águas calmas, os pássaros que voavam de uma margem para a outra em voo precipitado e um ou outro pássaro maior (milhafre?) de vôo planado, aumentavam o encanto daquela paisagem de sonho.
A intensidade da magia tinha a ver com a beleza e a fragilidade daqueles corpos jovens, quando se beijavam, mergulhavam e faziam corridas de natação, em gargalhadas contagiantes…
Ficou-me na memória a ternura envolvente que os unia, como se nada mais existisse no Mundo, era a dança do Amor e da Juventude.
Saíram do banho e, depois de vestidos, partiram numa motocicleta em velocidade louca, tal como também voavam os longos cabelos louros da jovem. Passaram por uma festa campestre e dançaram… os dois num só corpo.
Ao regressarem da festa, sofreram um acidente, no qual Kerstin não sobreviveu, acidente causado pelo carro do Pastor, que Göran não reconheceu. Não se sabe se o Pastor estava consciente da tragédia que tinha causado. No funeral de Kerstin, ele falou muito asperamente sobre a imoralidade dos jovens, da sexualidade sem freios e foi o tio Persson, muito mais tolerante, que fez um terno elogio da jovem, tão precocemente desaparecida…
E o jovem, pálido como a morte, pensava “quando os meus lábios tocaram os teus, eu sabia que a morte já estava no teu corpo”.
Até o pequeno mundo da plateia do cinema chorou aquela morte trágica, tão inesperada.
Duas coisas são infinitas: o Universo e a estupidez humana. Einstein
O tema central do filme retrata a dificuldade vivida pelas gerações mais jovens em encontrarem o seu lugar numa sociedade puritana.
A cena do banho, em que os dois estão nus, confere ao seu amor romântico e desesperado, uma sensualidade inesperada e a sua nudez, numa belíssima paisagem natural, abre a porta para o encantamento e a magia da liberdade.
A religião, pela intervenção do Pastor, é fortemente questionada. Várias cenas do filme evocam simbolicamente o domínio do divino sobre os indivíduos, por meio de ângulos baixos onde o céu ocupa amplamente o plano de fundo. Em última análise, é um simples camponês — o tio — que oferecerá uma mensagem de amor, tolerância e consolo.
O drama é ampliado pela fragilidade e beleza dos dois jovens, pela paisagem em que se movem, pela intensidade da emoção, pela ternura perceptível dos olhares que trocam, tudo contribui para tornar esta cena uma das mais comoventes do cinema.
O filme é enquadrado por um belo preto e branco e, principalmente, a luz natural envolve magicamente as cenas. O drama é ampliado pela fragilidade e beleza dos dois jovens.
Freud, ateu e materialista, viu a religião como uma neurose, associada à ilusão, considerando-a como “vertente patológica” e, de um modo geral, como uma “neurose obsessiva universal”.
Em 1907, no artigo “Actos Obsessivos e Práticas Religiosas” compara a neurose obsessiva a uma religião frustrada.
Tal como Charcot, Freud interessou-se pelas possessões demoníacas e em 1897, encomendou ao seu editor “Malleus maleficarum”, o manual publicado em latim, em 1487, por Jacob Sprenger e H. Krammer e depois, utilizado pela Inquisição, com a aprovação do Papa Inocêncio VII, para mandar para a fogueira, as supostas feiticeiras.
Mais tarde (1909), em discussão com Heller, numa reunião na Sociedade de Psicologia, expôs as suas ideias, fazendo do diabo a personificação das pulsões sexuais recalcadas. Por fim, em 1923, publicou um artigo “Uma neurose demoníaca do século XVII”, na qual estudou a história de Christoph Haizmann, pintor da Baviera, que foi exorcizado, depois de ter sido seduzido pelo diabo, ao qual se seguiu depois uma crise de convulsões.
Nesse episódio, Freud verificou os benefícios da psicanálise, capaz de curar as neuroses, em vez das práticas ocultas e religiosas que se aplicavam. A Igreja teve logo uma atitude hostil contra a sua prática, mas sobretudo, porque a psicanálise assentava numa concepção da sexualidade e da família inaceitável para a Igreja.
Em 1891, o Papa Leão XIII valorizava as investigações científicas, contra o obscurantismo e foi neste contexto de oposição muito forte ao freudismo, que passaram a ser aceites os princípios da Psiquiatria Dinâmica.
Em 1921, o Padre Agostinho Gammelli, médico e aluno do psiquiatra Kraepelin, pretendeu integrar os trabalhos da Psicologia na Neo-Escolástica. Fundou a Escola de Psicologia Experimental na Universidade Católica do Sagrado Coração, em Milão.
No entanto, o combate contra o freudismo, assumiu uma posição nitidamente mais política, com a intervenção do Padre Wilhelm Schmidt, que exerceu, de 1927 a 1939, a função de Director do Museu Pontifical de Etnologia de Latrão, em Roma. Voltou-se contra as obras de Freud “Totem e Tabu” e “O Futuro de uma Ilusão”.
Todavia, no início, a Igreja Católica Romana estava atenta à implantação das ideias de Freud. Começou em 1921, como já referi anteriormente e prosseguiu entre as duas guerras mundiais, com uma cruzada anti-freudiana e também judeofóbica do Padre Wilhelm Schmidt, figura de proa da Escola Antropológica de Viena.
Para Freud, em qualquer relação amorosa, quer o homem quer a mulher transportam consigo outras personagens que foram muito importantes e determinantes ao longo das suas evoluções, isto é, do passado ao presente.
Em 1937, Freud conheceu Lou Andreas Salomé e ficou deslumbrado (apaixonado?) pela sua inteligência e cultura brilhantes.
Lou era filha de um general, aristocrata alemão, do exército dos Romanov. Foi um Pastor, brilhante e culto, que a iniciou na leitura dos grandes filósofos. Recusou o casamento, deixou a Rússia e partiu, com a mãe, para Zurique. Teve acesso ao mundo intelectual com que sonhava e interessou-se pela Teologia e pelas Artes. Foi o seu interesse pelo narcisismo de Nietzsche que a preparou para o encontro com a Psicanálise.
Entretanto casou com um alemão, professor numa Universidade, casamento esse que não foi consumado e dele se separou, passando a viver com o seu primeiro amante Georg Ledebourg, fundador do Partido Social-Democrata. Esta 2ª ligação terminou após um aborto e a sua renúncia em ser mãe.
Instalou-se em Munique, onde conheceu o jovem poeta Rainer Maria Rilke.
“Amo as horas nocturnas do meu ser / em que se afundam os sentidos.”
Lou Andreas Salomé na sua obra “Minha Vida”, diz que o corpo do homem e da mulher são indissociáveis um do outro, facto incontestável da própria vida. A ruptura com Rilke não pôs fim ao amor que os unia o que levou Freud a escrever (1937): “Ela foi ao mesmo tempo a musa e a mãe zelosa do grande poeta […] que foi tão infeliz na vida”.
É admirável como uma mulher, num período muito conservador, tinha uma liberdade de pensamento e de comportamento, que se adapta perfeitamente ao tema central deste filme.
AUTORA
Maria José Vidigal
Psiquiatra \ Psicanalista, foi Membro Didacta da Sociedade Portuguesa de Psicanálise e, posteriormente, Membro Honorário da PsiRelacional \ Diretora do Centro de Saúde Mental Infantil \ Mais de 14 livros publicados.
E-mail — mariajosevidigal@sapo.pt
REFERÊNCIAS
1.Roudinesco, E. e Plon, M. (2000) — Dicionário da Psicanálise em França, Zahar. (Librairie Arthème Fayard, 1986).
2.Rilke, R. M. (2001). Amo as horas nocturnas, in Elegias de Duíno e Os Sonetos a Orfeu (tradução Paulo Quintela). Asa.
FICHA TÉCNICA
Título original — Hon Dansade en Sommar
Título inglês — She Danced Only One Summer
Título português — Ela Só Dançou Um Verão
Ano — 1951
País — Suécia
Duração — 103 min
Realizador — Arne Mattsson
Argumento — Volodja Semitjov baseado no romance Sommardansen de Per Olof Ekström
Produção — Lennart Landheim e Gunnar Lundin
Fotografia — Göran Strindberg
Música — Sven Sköld
Edição — Lennart Wallén
Elenco — Ulla Jacobsson – Folke Sundquist – Edvin Adolphson – Irma Christenson – John Elfström – Nils Hallberg – Gunvor Pontén – Berta Hall
SINOPSE
Terminado o ano na universidade, Göran passa as férias de verão com seu tio para ajudá-lo no trabalho do campo. Pouco depois de sua chegada, conheceu Kerstin, uma camponesa de 17 anos. Os dois jovens apaixonam-se, mas a moral severa do pastor que só vê perversidade no ser humano, choca-se com a sensualidade e o amor romântico, até que um acidente marcará o desfecho trágico.