O OLHAR QUE CEGA — Equus (1977)

— MARINELA ROSADO —

O filme Equus realizado em 1977 por Sidney Lumet é a adaptação cinematográfica da peça de teatro escrita e encenada por Peter Schaffer em 1977, baseada num acontecimento real (numa pequena vila em Inglaterra um jovem de 17 anos cegou 6 cavalos com um estilete de metal).

O filme polémico para a época, pela nudez total (quer masculina quer feminina) é um drama psicológico, centrado na relação terapêutica entre o jovem Alan, que está internado numa instituição psiquiátrica para jovens e o psiquiatra Dysart que o acompanha.

Dysart através da narração vai “desvendando” a vida, as relações familiares e os conflitos internos de Alan (que estão na base do seu ato desesperado), o desenvolvimento do processo terapêutico, mas também a crise existencial que ele próprio atravessa ao confrontar-se com o seu envelhecimento e a sua mortalidade, que o leva a questionar diferentes partes do seu percurso de vida. O seu casamento estéril, já sem chama, sem intimidade e sem olhar. A sua paixão pela Grécia Antiga vivida nas férias (três semanas por ano) e através das fotografias, de esculturas e de livros de arte. A sua atividade clínica (o significado de cura versus normalização) e a sua capacidade de ajudar os outros.        

Alan é um adolescente de 17 anos, tímido, isolado, sem amigos, que trabalha durante a semana numa loja de eletrodomésticos e ao fim-de-semana num estábulo cuidando de cavalos. Filho único de um casal de extratos sociais diferentes que diverge na educação de Alan, sobretudo a nível religioso.

Pouco se sabe da infância de Alan, mas a descrição do seu primeiro contacto com um cavalo quando tinha 6 anos é reveladora de uma infância solitária, com pouca liberdade ou espaço para o prazer — Alan está numa praia a brincar sozinho, dentro de um enorme castelo de areia que construiu e de onde não consegue sair sem a ajuda de um cavaleiro, que o leva numa cavalgada libertadora, interrompida e violentamente reprimida pelo pai. Alan descreve uma memória, um devaneio, um sonho?

A mãe muito religiosa é uma mulher frágil, muito contida, que transmite ao Alan uma visão redutora da sexualidade (factos biológicos) e fortemente ligada às suas crenças religiosas, o que se  confirma mais tarde na origem demoníaca que atribui à problemática de Alan: “Depois veio o Diabo”. 

A relação de proximidade com Alan é estabelecida através da partilha da sua religiosidade. Durante a infância de Alan, todas as noites antes de dormir, contava-lhe passagens e histórias da Bíblia que enalteciam o cavalo, tal como a história do Prince (o cavalo que ninguém cavalgava) e a visão pagã da cavalaria cristã, em que o cavalo e o cavaleiro eram um “Só” como representação divina. Esta educação foi criando em Alan uma forte ligação entre a religião e a figura equina — Deus passa a existir em todos os cavalos.

O pai ateu, um homem austero (proíbe Alan de ver televisão) com dificuldades na comunicação e intimidade com o filho e com a sua própria sexualidade (que esconde do filho quando justifica a sua presença num cinema pornográfico com questões de trabalho).

O único movimento de proteção que tem da influência religiosa da mãe, que considera nefasta, é quando substitui a imagem de Cristo no calvário acorrentado (que Alan venera todas as noites no quarto, antes de dormir) por um cavalo branco, curiosamente com rédeas e freio na boca.

Esta substituição de uma imagem por outra (já com forte carga religiosa) aos 12 anos de Alan, mantem e alimenta a religiosidade dele agora dirigida para o cavalo Equus (símbolo de força, sensualidade, liberdade). 

A sexualidade infantil organizada em torno destes elementos religiosos não permite uma reorganização com a chegada da adolescência, contaminada desta forma a força pulsional de Alan é canalizada para os cavalos e é vivida nos rituais de sacrifício à noite no seu quarto (um sótão sem porta) em que se “confunde“ com o cavalo e mais tarde nas cavalgadas noturnas em que nú se “funde“ com Equus e vive em êxtase as suas paixões.

O olhar de Deus que tudo vê é substituído pelo olhar de Equus. 

A força de Alan vem desta fusão com o poder do cavalo, e quando não consegue consumar a relação sexual com Jil (a jovem companheira do trabalho que cavalga à luz do dia), entra em conflito com o seu Deus Equus, cujo olhar se torna insuportável, levando-o, em ruptura psicótica, a cegar os cavalos e assim destruir a parte de si que “ousou” voar e ver.

Os encontros iniciais com o psiquiatra, em que Alan revela o seu lado insubmisso e insano (ao debitar os anúncios de TV que não podia ver e ao tentar fechar a sua cabeça numa gaveta), parecem ter um impacto importante em Dysart que na terceira noite tem um sonho. Neste sonho, passado na Grécia Antiga, ele é o Sacerdote Supremo de um ritual de sacrifício em que as crianças são esventradas e o seu “interior” é exposto para ser interpretado. À medida que o ritual decorre, a dúvida surge e ele é invadido por uma agonia que não pode mostrar pelo risco de ser apunhalado pelos sacerdotes ajudantes.

Este sonho é revelador da angústia e dúvida que vive no seu trabalho clínico.

No processo terapêutico de orientação psicodinâmica (num trabalho diário e dedicado) Dysart através do recurso a “facilitadores” (jogo de pergunta e resposta, hipnose, “pílula da verdade”) vai quebrando a resistência de Alan, ajudando-o a aceder a memórias traumáticas, mas é a criação de uma relação terapêutica de confiança e de intimidade que vai permitir a Alan partilhar vivências, conflitos internos e sair do caos em que está mergulhado.     

Contudo, as angústias existenciais de Dysart não ficam apaziguadas, pelo contrário, o “contacto” com a intensidade da vivência religiosa/sexual com que Alan preenche o vazio afetivo, desperta nele um fascínio/inveja que intensifica as suas dúvidas sobre a legitimidade e eficácia do seu trabalho no tratamento de Alan — a normalização e o ajustamento social de Alan a uma sociedade de consumo, dessacralizada, em que o cavalo será substituído por uma motorizada e mais tarde por um carro e as cavalgadas noturnas por apostas nas corridas de cavalos. A adaptação de Alan/ Dysart significará a perda do elo com as suas paixões?

O filme termina como começou, com as reflexões de Dysart — Alan está liberto dos seus pesadelos. Equus é agora um cavalo de carga que trota ao longe. Mas passou a existir na boca de Dysart uma corrente afiada que não sai. 

Os Deuses matam e morrem.

AUTORA
Marinela Rosado
Médica psiquiatra, com formação em Psicodrama e Terapia Familiar.
E-mail — marinela.rosado@gmail.com

REFERÊNCIAS
Filme discutido no dia 15.11.2022 no Grupo de Reflexão “Saúde Mental & Cinema” da Sociedade Portuguesa de Psicanálise, coordenado por Ana Belchior Melícias e Elsa Couchinho.

TRAILER

FICHA TÉCNICA
Título original — Equus
Título português — Equus
Ano — 1977
País — E.U.A.; Reino Unido
Duração — 125 min
Argumento — Peter Shaffer
Direcção — Sidney Lumet
Assistente de Realização — David Tringham
Direcção de Fotografia — Oswald Morris
Direcção de Arte — Simon Holland
Cenários — Gunther Bartlik
Figurino — Gerry Holmes
Edição — John Victor Smith
Produção — Lester Persky & Elliott Kastner
Efeitos especiais — Kit West
Música — Richard Rodney Bennett
Maquilhagem — Ron Berkeley & Ken Brooke
Elenco — Richard Burton – Peter Firth – Colin Blakely – Joan Plowright – Harry Andrews – Eileen Atkins – Jenny Agutter – Kate Reid – John Wyman – Ken James – Ela Mai Hoover – Patrick Brymer

SINOPSE
Um adolescente de dezassete anos é acolhido numa instituição psiquiátrica após um surto psicótico. Ao longo do filme observamos a construção da relação terapêutica entre o adolescente e o seu psiquiatra e a forma como ambos constroem um espaço de descoberta, dúvida e transformação sobre os seus percursos existenciais.